Entrevista. João Lacerda Matos: “Conhecemos melhor os últimos 15 anos da ditadura e muito pouco para lá disso”
Logo no primeiro episódio de “Vento Norte”, há um diálogo subtil mas essencial que nos ajuda a compreender o contexto histórico e a situarmo-nos no tempo. Esse diálogo dá-se entre o então General Gomes da Costa, após ter sentido o sabor do desaire português na Primeira Guerra Mundial, e a personagem Adolfo Mascarenhas. “Tivemos notícias sobre o que se passou no Porto”, diz o general. “O norte sabe sempre erguer-se quando o país precisa de rumo. É assim desde o nascimento da nação”, responde Adolfo. “Mas não correu bem”, continua Gomes da Costa. “Aprendemos com os erros”, termina Adolfo. O episódio histórico a que se referem é a “Monarquia do Norte”, uma contra-revolução em plena 1ª república que restaurou por uns breves 25 dias a monarquia no norte de Portugal, com base no Porto.
Estamos no ano de 1919. O corpo expedicionário português chegava da 1ª Guerra Mundial, mas sem sentir o sabor da vitória dos aliados, com o resultado de 10.000 mortos, milhares de feridos e a dignidade e confiança profundamente abaladas graças à mortífera batalha de La Lys. O cenário não era favorável a uma república recente com sucessivas quedas de governo, que tinha de lidar, ao mesmo tempo, com as consequências económicos e sociais da guerra e que, verdade seja dita, não estava a cumprir, em pleno, com as suas promessas liberais no que diz respeito aos direitos sufragistas das mulheres. Num Portugal ainda pautado pela fidalguia aristocrática — a realidade das grandes famílias em oposição aos criados e criadas de servir e a restante população — claro que esta seria uma facção que gostaria de restaurar a estabilidade da velha ordem. Internacionalmente, a Revolução Russa já havia ocorrido e, paralelamente ao movimento bolchevique, as forças anarquistas ganhavam expressão. As mulheres lutavam pelos seus direitos, essencialmente o direito ao voto, e nascia a vontade de poderem estudar e terem acesso às universidades. É este o clima histórico e social da série “Vento Norte — que estreou a 28 de Abril na RTP — clima esse que assistiu ao início do modernismo português, numa época propícia a mudanças de fundo. É neste contexto que surge a família Mello, de origem aristocrática, de Braga, em conjunto com Gomes da Costa, monárquico e crítico da 1ª república, que comandou a segunda divisão do Corpo Expedicionário Português na Guerra e avança com as tropas, a partir de Braga, sobre Lisboa, para fazer o 28 de Maio de 1926, que originou a ditadura militar.
Paralelamente ao lado político, a série não deixou de parte — e muito bem — os ventos e as dinâmicas sociais. Quando se foca este tempo histórico, não se vai muito mais além do que se dizer, apenas, que a república foi uma queda sucessiva de governos. Além do lado político que antecedeu a revolução do 28 de Maio, havia uma vontade da série retratar, como o próprio argumentista João Lacerda Matos diz, a “história de uma família clássica e da relação dessa família clássica com os empregados, ou seja, os dois núcleos dentro de uma mesma casa.” Neste ponto em particular, é interessante a relação amorosa entre Tomaz Mello e Joana, uma das “criadas” da família [utiliza-se somente o termo criada porque, antigamente, era mesmo a expressão utilizada] e a forma como a família reage a essa mesma relação. Outros dos pontos interessantes prende-se com a posição liberal e a vontade de emancipação das mulheres. Isabel, mulher do Dom Mello, tem, por si só, uma posição mais liberal sobre a vida do que, propriamente, o marido, e é curioso como incentiva o estudo e o acesso à faculdade das filhas das próprias empregadas. É esta dicotomia entre o conservador e o liberal, e a forma como as próprias gerações mais novas reagem a isso, que também está muito bem conseguida, sem esquecer o clima do início dos “loucos anos vinte”, personificado por Margarida Mello e a sua paixão pelo cinema.
Muitos dos conceitos políticos e sociais que ainda discutimos hoje em dia e que, por sua vez, ainda são susceptíveis de confronto, tiveram início nesta altura histórica. A série, por isso mesmo, não é alheia ao clima político e social em que vivemos hoje, no início dos anos 20 do séc.XXI. Por essa mesma razão, o argumentista avisa, “conhecemos melhor os últimos 15 anos da ditadura e muito pouco para lá disso”. Convém, por isso mesmo, recordar como tudo começou. Foi a partir de Braga que Gomes da Costa saiu para dar uma nova cara à conjuntura política de então. Vai ser curioso constatar em próximas temporadas se, depois, o rumo da situação foi tão consensual assim entre quem fez a própria revolução. Os argumentistas da série que passa, às quartas-feiras à noite, na RTP1, são João Lacerda Matos e Raquel Palermo. A CCA falou por telefone com João Matos, de quem partiu a ideia original em conjunto com Almeno Gonçalves e João Cayatte, na entrevista que se segue.
Porquê o interesse neste período histórico de Portugal? Como surgiu a ideia do conceito?
Trata-se de um período que ainda não tinha sido alvo de uma série, portanto, fazia sentido fazer uma história sobre essa altura. Havia, depois, muita história para contar, principalmente, na zona de Braga — havia muita coisa a acontecer, tanto social como politicamente. Era necessário, depois — sentíamos essa necessidade — contar um pouco da história do que foi o período anterior ao golpe militar de 1926 que instaurou a primeira ditadura na Europa. Era uma preocupação nossa, numa altura em que se fala tanto do ressurgimento da extrema direita, contar às pessoas como é que surgem estes movimentos que, às vezes, parecem estar do lado correcto mas, depois, se revelam estar do lado oposto. Já tínhamos a ideia — ideia essa que vinha de alguns anos — de fazer uma história de uma família clássica e da relação dessa família clássica com os empregados, ou seja, os dois núcleos dentro de uma mesma casa e, portanto, foi juntar as duas ideias. Foi assim que surgiu.
O que esta época tem de interessante é que, tanto nacional como internacionalmente, nasceram muitos conceitos que comandaram todo o século XX e com os quais ainda nos debatemos hoje. Foi a viragem de um mundo antigo para a era moderna. A emancipação feminina é um exemplo, e é curioso esta série demonstrar mulheres com personalidade forte e com um pensamento liberal, até.
A preocupação também era essa. Pretendíamos criar, não só, o background do lado histórico — muito marcado pelo lado político, da revolução do golpe militar — mas havia o lado das mulheres e o lado dos costumes que era, igualmente, muito importante para nós. Por isso é que há algumas histórias como, por exemplo, a da herdeira do Diário de Notícias, que cruza esta história e a forma como as mulheres se unem para terem mais presença e poder na sociedade. Isso é algo que vamos ver ao longo dos episódios, até ao final da primeira temporada — ver como as mulheres conseguem ir ganhando destaque. Cada uma delas tem uma história forte e têm uma razão muito forte de ser e existir — de levar para a frente os seus objectivos — e isso foi sempre, também, uma preocupação.
A emancipação feminina, do início do século XX, em Portugal, não é algo que seja muito abordado. Não conhecemos bem os nomes das portuguesas que deram a cara por essa luta.
Temos pouca informação sobre isso, acho que sim. Agora, colocando numa série, fica mais visível.
Já num outro paradigma da sociedade e dos comportamentos, temos a Margarida que é a personificação dos loucos anos em 20, em Portugal.
Sim, a Margarida é não só os loucos anos 20 — que existia mais em Lisboa do que em Braga e, por isso, o conflito dela é sair de Lisboa, o que ela não quer, porque sente que vai abandonar essa vida mais mundana da capital — como também, no fundo, a história do cinema em Portugal. Temos a história de uma ascensão do cinema que começa nesta altura. Temos, também, por outro lado, a história da Mariana, que é um bocadinho a história daquela cidade, a de Braga, que tem muita religiosidade e, ao mesmo tempo, um lado pagão, de vícios muito activo. A Mariana encarna muito esse lado das hipocrisias sociais. Como a própria diz, durante o dia faz as hóstias e, à noite, está no bordel. Na verdade, são duas mulheres que mostram um pouco o quotidiano e todo esse mundo que se vivia nessa altura.
Teve de fazer pesquisa histórica, em específico?
Sim, tivemos, sem dúvida. A equipa de escrita fez uma pesquisa histórica para cada um dos momentos, encontrando alguns acontecimentos históricos como a greve dos trabalhadores da indústria dos chapéus, em Braga, e depois dos têxteis. Encontramos algumas questões históricas mesmo à volta do Gomes da Costa que ajudaram muito na construção da história. Todas as séries que são baseadas em factos históricos têm de ter uma pesquisa e, ao mesmo tempo, têm de ter uma certa liberdade para o seguinte: usar as coisas tal como aconteceram e foram encontradas quando possível e, onde dramaturgia ganha espaço, poder sair um pouco dos factos históricos e dar a liberdade à ficção para contar o outro lado da história. Esse lado pode surgir animado por figuras que são históricas mas, claro, sem haver, necessariamente, registo que tenham estado a fazer aquilo naquele momento. Sabe-se qual é o espírito do tempo, estão dentro do espírito do tempo, mas os momentos não são, necessariamente, históricos. Há uns que são de ficção porque, lá está, é uma série de ficção.
Como é uma série que retrata o norte, o Minho especificamente, no início do século XX, houve uma preocupação na utilização de expressões ou certas palavras mais utilizadas de então?
Havia a preocupação, quanto às personagens mais populares, que usassem algumas expressões que são de época, uma vez que são do início do século e até meados do século. Mas também é verdade que, normalmente, o que se pretende é não condicionar, demasiado, os actores com um texto bastante marcado por palavras pouco naturais para os próprios. É mais fácil e acho que, aí, o elenco fez um grande trabalho — o facto dos actores terem ido à procura não só dos termos mas, também, dos sotaques e dos ritmos das conversação locais. Acho que isso foi muito bom, eles poderem ter ido para Braga e estarem em Braga durante bastante tempo, o facto de terem contacto com pessoas que são locais de Braga e que os ajudaram, também, a perceber até onde poderiam ir nesse género de trabalho. É claro que é preciso ter marcas de diálogo, marcas de termos de época mas, também, convém que seja legível e entendível para o público de agora. De alguma maneira, tem de existir um compromisso entre as duas coisas. Acho que, neste caso, o compromisso é entre não só o sotaque do minho mas, também, algumas expressões ou algumas formas de falar. Às vezes, nem é só a expressão, é a forma de falar. Uma forma de falar mais correcta, outras vezes, diria eu, mais severa ou, até, mais clássica, ajuda a criar esse ambiente de época.
Outro lado curioso da série é o retrato dos movimentos e atentados anarquistas, não só de origem portuguesa, mas vindos da Galiza.
Sim, existiam esses movimentos que vão aumentar muito durante a década de 20 e, depois, a seguir, no final da década de 20, vai haver, até, uma cisão entre o movimento anarquista e comunista. Esta era, portanto, a altura certa para trazer o lado do norte de Espanha que, ali, tem muita influência, não só pelas trocas culturais mas, também, económicas, muitas vezes, trocas de passagens de fronteira. Nós temos essas duas linhas. Temos, por um lado, a linha do anarquista que vem da Galiza para fazer um atentado em Portugal e, portanto, para trazer a luta anarquista para Portugal, mas, ao mesmo tempo que isso está a acontecer, há também o negócio de contrabando com a Galiza. Essas duas questões espelham a ideia de não haver fronteiras ou, então, das fronteiras serem, muitas vezes, as margens de um rio. Nunca quisemos que fosse uma série, apenas, sobre a realidade portuguesa. Quisemos que fosse uma série do norte, o “Vento Norte” é o norte da península, é toda aquela zona que vem desde a Corunha até cá baixo ao Porto. Essa, portanto, é a nossa área de influência na história e, por isso mesmo, temos todos esses pontos de contacto.
Já fazia falta, de novo, uma série sem ser Porto, Lisboa.
Sim, exactamente, essa foi umas das preocupações. Por isso se escolheu, desde logo, Braga como cidade central para esta história e será sempre Braga. Mesmo que venham novas temporadas, Braga estará sempre no centro da história porque é uma família de Braga.
Mas quanto à família, uma dúvida. Trata-se de uma família com raízes históricas ou baseada numa família de raízes históricas?
Não, a família é completamente de ficção. É uma família baseada em algumas características das famílias do norte de Portugal e do Minho, em particular. É uma família que vai beber tradições de alguns proprietários de algumas das casas que são utilizadas na história. Já que estamos a gravar em locais como, por exemplo, o “Palácio dos Biscainhos”, claro que temos de saber a história de algumas destas pessoas. A família, no entanto, os criados e tudo o que anda à volta da família, tudo isso é de ficção. Porquê? Por que é uma história, não é? Na verdade, é um romance histórico e, num romance, a definição é mesmo essa, é criar personagens que são de ficção, personagens que vão, através dos seus comportamentos, encarnar aquilo que era o espírito da época e as atitudes da época. Aí é que é preciso ter atenção porque as personagens vivem a sua vida, têm os seus conflitos, mas não devem ou não podem sair do registo de época em que estão.
Alguns dos conflitos que as personagens têm são, claramente, conflitos de época. O Dom Mello, o Dom Afonso Mello, teria, com certeza, um conflito com o filho mais novo. Ambos são de uma família que é nobre, que tem um título e que teve raízes fortes na monarquia. Ele teria, com certeza, discussões com ele sobre o porquê de andar mais metido com miúdos da burguesia e do povo a jogar futebol. Era um desporto muito mal visto naquela altura, por ser um desporto muito conotado à classe operária. Como diria, aliás, Dom Mello, um desporto de brutos. Esse género de situações, se calhar hoje, numa história contemporânea, não faria muito sentido. Era, se calhar, ao contrário. O Dom Mello até iria querer que o filho fosse jogador de futebol mas, naquela altura, fazia todo o sentido querer que o rapaz crescesse mais depressa e fosse estudar para ser o sucessor da família. Aí é que se cruza a ficção e a realidade. É ter personagens que tenham uma densidade e complexidade suficientes para poderem parecer reais e isso é que, quando se consegue, é nosso verdadeiro objectivo.
A necessidade de se fazer uma série sobre a primeira república e os anos antecedentes da ditadura, terá alguma correlação com o momento especial que vivemos agora?
Sem dúvida! É bom perceber que a série começou a ser escrita e idealizada antes da pandemia e crise económica consequente. Já na altura, em 2019, tínhamos, claramente, a visão de que havia um certo saudosismo de regimes mais autoritários nalguma parte da população — não muita felizmente — e que muito desse saudosismo estava alicerçado em ignorância em relação aos regimes mais autoritários. Veio depois, entretanto, a crise económica por causa da pandemia e, esse género de soluções mais radicais, parece ter crescido um bocadinho nalguma parte da sociedade, como uma resposta rápida e brutal a questões que não se resolvem de um dia para o outro.
O paralelismo com o Portugal de 1919 até 1926 pode ser feito nesse sentido e, a verdade, é que o Gomes da Costa era um militar e era, essencialmente, um patriota, mas acabou por ser muito manipulado por outras forças que, no fundo, queriam o poder absoluto. Entre elas estava António de Oliveira Salazar que, na nossa série, aparece com uma força que nem está muito reportada na história. Em temporadas seguintes continuaremos a ver como é que o poder foi tomado por pessoas que, claramente, não tinham como principal objectivo a defesa do país mas, sim, a defesa dos seus interesses e dos interesses das pessoas que os apoiavam. É, no fundo, nesse sentido que eu acho que o paralelismo é directo. Temos de estar atentos porque, às vezes, as pessoas que têm um fundo de bondade como é, por exemplo, o caso de Dom Mello, ou que têm, até, um lado patriótico e até de severidade e conservadorismo, mas com peso e medida como, por exemplo, a personagem do Adolfo, acabam por ser manipuladas e vítimas das circunstâncias. Aí sim, há, sem dúvida alguma, um paralelismo óbvio e, também, a tentativa de trazer a discussão para o dia a dia. As pessoas, vendo a história, têm de ser elas próprias a fazer a ponte sem ser preciso dizer-lhes. Tem de ser o público a fazer essa ponte e perceber, “olha , em 1926 isto não correu muito bem.”
As pessoas queriam, de facto, o melhor para o país e, depois, tivemos uma ditadura de quase 50 anos. A preocupação também começou por aí, haver uma enorme ignorância sobre como as coisas tinham começado, porque é que tinham começado e depois como continuaram. Conhecemos melhor os últimos 15 anos da ditadura e muito pouco para lá desses 15 anos, que é a maior parte — são mais de 30 anos de regime, de Estado Novo. Era, também, uma preocupação contar uma história que, de uma maneira muito lúdica, cativasse as pessoas — dando-lhes uma história pela qual se apaixonassem — mas que passasse, também, essa mensagem, “já agora, vamos falar sobre este assunto”.
No caso do Gomes da Costa, o que mais prendeu a sua atenção na pesquisa e preparação da personagem para a série? Convém relembrar que mesmo tendo sido Presidente após Mendes Cabeçadas, foi afastado por Óscar Carmona, tendo ido para o exílio nos Açores. É Óscar Carmona que volta, novamente, a colocar Salazar como Ministro das Finanças, com uma configuração de poder mais reforçada.
O que nos prendeu mais foi o lado patriótico e um pouco ingénuo do Gomes da Costa. Ele acaba por ser manipulado e ultrapassado pelos políticos que o rodeiam. É ele que sai de Braga e avança sobre Lisboa, convicto que está a fazer o que é melhor para Portugal. Mas é logo ultrapassado pelos políticos. Essa é uma história que fica reservada para a segunda temporada.