Entrevista. Jorge Palma: “A informação em geral tem uma visão muito desfocada da realidade global”

por Rui Alves de Sousa,    22 Agosto, 2021
Entrevista. Jorge Palma: “A informação em geral tem uma visão muito desfocada da realidade global”
Jorge Palma / Fotografia de Tiago Miranda

Não há melhor forma para descrever quem é Jorge Palma que não seja pelas suas canções. Muitas ficaram no ouvido de várias gerações (“Frágil”, “A Gente Vai Continuar”, “Encosta-te a Mim”, e muitas, muitas outras), e outras merecem ser (re)descobertas. É o caso das que estão incluídas em álbuns brilhantes como “Acto Contínuo”, “Asas e Penas” e “Quarto Minguante”, que partilham terreno com alguns dos trabalhos do músico que hoje são verdadeiros clássicos (“Bairro do Amor” e “Só” fazem até parte dos “discos de cabeceira” de muitos artistas que se seguiram a Palma).

Como sempre, Jorge Palma não está parado. Viu há uns meses ser lançada a “Canção de Vida”, composta para Carlos do Carmo e que fez parte do seu derradeiro trabalho “E Ainda…”, sendo uma das melhores faixas. Também escreveu para Camané (em breve veremos o resultado) e, como já há alguns anos, anda a trabalhar num novo álbum. É um processo moroso, que se torna ainda mais complicado quando se é um artista com tantas solicitações. Mas em breve talvez tenhamos um novo single, lá para o final do ano.

Conversei com Jorge Palma em sua casa, na sala repleta de livros, discos e filmes, em parte ocupada por um piano de cauda, papeladas várias, prémios e ofertas de vários tipos. Se a habitação de uma pessoa revela algo sobre ela própria, no caso de Jorge Palma vemos um mundo cheio de histórias, das referências “roubadas” (porque os grandes artistas não copiam, como disse Picasso) que inspiraram as canções.

Aqui está transcrita uma parte de quase 50 minutos de conversa, que pode ser escutados na íntegra no 100.º episódio do podcast À Beira do Abismo, disponível em todas as plataformas.

Portugal ainda é um país cheio de “tradições atrás de contradições”?
Isso é do meu primeiro álbum. Já foi mais tradicionalista. É mais as contradições. As contradições sucedem-se. Mas isso não é só em Portugal. A tradição em alguns lugares ainda tem um peso grande. Somos um país um bocado passivo. Então e se compararmos Lisboa com Paris e Nova Iorque, é evidente que há mais conservadorismo. Mas vamos andando. Portugal tem coisas muito boas, outras nem tanto.

Em 2017 fui a um dos concertos comemorativos do “Só”, no Centro Cultural de Belém, e lá o Jorge apresentou uma canção nova…
O “Amor Digital”. Já levou muitas voltas aqui em casa, na minha cabeça. Mas essa será uma das primeiras que eu gravo. Já sei inclusivamente quem são os músicos que vão participar nessa música. Vai ficar muito bem, com um quarteto “jazzy”.

Na “Canção de Vida”, o Jorge escreveu que “crescemos desvendando a nossa voz”. Quando é que percebeu que tinha desvendado realmente a sua voz?
Foi aos poucos. Sobretudo desde a adolescência e depois cada vez mais, já na idade adulta… não só fisicamente (risos), a ver o que é que conseguia fazer, e esforçando-me bastante, por exemplo, para conseguir que a minha voz… eu sou tenor baritonizante, como dizia o Zé Mário Branco… e eu queria cantar agudos. Forcei e fiz muito bem porque tenho uma extensão de voz razoável. Queria cantar lá para cima, como o Mick Jagger ao Elton John, aos Beatles, ao Robert Plant e essa gente toda. Por outro lado, desvendando a minha voz interior. Fui criando as minhas ideias, os meus valores já estavam mais ou menos estabelecidos desde o princípio da adolescência.

E mantiveram-se sempre?
Sim, [há] alguns valores que não prescindo. A começar pela liberdade.

Hoje os portugueses ainda prezam a liberdade como antes?
É fundamental as pessoas terem uma ideia sobre o que era viver numa ditadura. Desde os meus 13, 14 anos que lutei à minha maneira pela minha liberdade. Comecei a ser cada vez mais irreverente e a marimbar mais nas tais tradições, a quebrá-las o mais possível. Constitucionalmente e aparentemente… pelo menos podemos dizer aquilo que queremos, no Ocidente. Mas há outro tipo de formas de ditadura. Estou a pensar nos media. Há ditaduras disfarçadas… é complicado.

Mas pensando no caso da pandemia e na desinformação que gerou?
Nesse campo eu acredito na Direção-Geral de Saúde e nos cientistas. Acho um bocado caricata a posição dos negacionistas. Mas eles têm a liberdade de serem negacionistas.

Mas eu estava mais a referir a forma como por vezes os media pegaram na pandemia.
Não frequento as redes sociais. Ouço os canais de televisão, não só os portugueses. E então no princípio da pandemia eu mamava tudo o que era notícia. CNN, Sky News, os canais franceses e italianos… a informação em geral tem uma visão muito desfocada da realidade global. De vez em quando há uma notíciazinha sobre o Iémen ou o Sudão do Sul ou o Afeganistão (que neste momento está em foco por razões óbvias)… mas não sou perito em política internacional. Oiço os comentadores. Mantenho-me informado, mas há muitas zonas do mundo que nem sequer são mencionadas, ninguém quer saber. De um ponto de vista humanista, antes de uma terceira [dose da] vacina no hemisfério norte, tratava-se do hemisfério sul. Há países sem vacinação…

No início desta pandemia as pessoas diziam que íamos abrir os olhos e ser mais compreensivos, mas isso não aconteceu.
Sim, e houve um ponto em que eu fui relativamente ingénuo, não me lembro em que altura, em que eu acreditei que isto ia mudar mentalidades, abrir uma generosidade da parte dos países mais ricos, inclusivamente das farmacêuticas. Mas estava a ser muito ingénuo, de facto. Isto é um grande negócio.

Não foi ingénuo. Tinha esperança…
Sim. O Saramago considerava-se um “otimista cético”. E tenho uma canção em que digo isso. A cegueira não ajuda em nada. Não podemos [fazer] como canta o Carlão, “assobiar para o lado”. Para estarmos bem com a nossa consciência devemos, na medida das nossas capacidades, tentar espalhar as nossas ideias, se acreditamos nelas.

Vi umas entrevistas em que falava do processo de “despir” as suas músicas dos vários instrumentos das gravações originais para os arranjos ao piano do álbum “Só”, e de como funcionavam melhor nessa forma, como o caso da “Canção de Lisboa”…
Ela está num disco de 84, o “Asas e Penas”. Fiz uma orquestração grande, e a canção funciona bem com ela, mas também a solo. Não é uma preocupação, mas é uma ideia que existe em mim, de que as músicas, por mais instrumentos que tenham e formas diferentes de se vestirem, que eu consiga executá-las a solo, no piano ou na guitarra ou em ambas. Esta não dá muito jeito tocar na guitarra por causa das sequências harmónicas. No piano funciona perfeitamente.

O meu arranjo preferido do “Só” é o do “Jeremias, o Fora-da-Lei”. Aquilo deve ser muito difícil de tocar!
Tem a sua dificuldade técnica. Eu tinha acabado o curso superior de piano no ano anterior. Estava a tocar peças difíceis: Liszt, Rachmaninoff, Scriabin, Chopin, Bach… eu aproveitei que os dedos estavam em forma e fiz alguns arranjos com mais dificuldade. Podia ter continuado a praticar uma hora por dia, mas não fiz isso.

Porquê?
A seguir ao “Só”, em 91, não sei porquê, atirei-me de pés e cabeça para o rock n’ roll… agora quero voltar a estudar essas peças. Não estou no ponto para tocar o “Jeremias” tão bem como a gravei. Mas a música presta-se mais para uma guitarra folk.

Mas eu peguei nisto porque há algumas músicas que funcionam muito bem com o arranjo original. “O Gigante na Jaula de Vidro”, tem aquele saxofone, que é brilhante.
O saudoso Rui Cardoso…

O que é que se recorda da criação e gravação dessa música?
Esse disco [“Quarto Minguante”] foi o único em que não fui eu só a comandar a direção que tomámos. Os arranjos foram colectivos. Claro que eu tinha a última palavra, mas os revestimentos das músicas tiveram uma grande influência dos meus parceiros na altura. Sempre dei grande espaço aos músicos de jazz para o improviso. Por melhores que sejam as minhas ideias… um músico como o Rui Cardoso, um jazz man e um grande improvisador, ele soprava cá para fora coisas que eu nunca iria escrever. E esse solo foi completamente improvisado por ele, em saxofone soprano. Esse álbum não era de todo comercial.

Mas o Jorge, nos seus discos, nunca cedeu a exigências comerciais.
Naturalmente que tenho escrito canções que são mais orelhudas, felizmente para mim e para as pessoas, que podem cantarolá-las e cantá-las comigo nos concertos (risos).

Agradeço ao André Sebastião e ao Tiago Branco, ambos do Bairro da Música, que possibilitaram a concretização desta entrevista.

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