Entrevista. José Valente: “Todo o meu percurso criativo e artístico foi e é motivado pelo meu desassossego”
José Valente continua a desenvolver uma intensa actividade musical. O violetista, que é considerado um dos mais inovadores da sua geração, lança hoje “Águas paradas não movem moinhos”, um disco de homenagem a José Mário Branco.
Este álbum surge no sentido de celebrar o 80.º aniversário do cantautor português. Idealizado pelo compositor e violetista José Valente, este projecto cria uma relação entre a música erudita e a canção de intervenção e onde o músico e compositor afirma, à Comunidade Cultura e Arte, que “este trabalho é o primeiro onde não assumo a origem da inquietação na totalidade, uma vez que esta é partilhada pelo autor das canções, José Mário Branco.”
Lista das músicas que compõem “Águas paradas não movem moinhos”:
1 – Eu Vi Este Povo a Lutar (Confederação)
2 – Travessia Do Deserto
3 – Ser Solidário
4 – Nevoeiro
5 – Quando Eu For Grande
6 – Eu Vim De Longe, Eu Vou Pr’a Longe (Chulinha)
7 – Prólogo
8 – Inquietação
9 – Águas Paradas Não Movem Moinhos
10 – Os Meninos De Amanhã
Para a construção deste novo álbum, José Valente convidou cinco violetistas da nova geração de músicos clássicos: Sofia Silva Sousa, Miguel Sobrinho, João Tiago Dinis, José Miguel Freitas e Edgar Perestrelo. Esta é a primeira vez que se constitui um sexteto de violas para a criação de um disco. A Comunidade Cultura e Arte teve a oportunidade de entrevistar o violetista José Valente a propósito do lançamento deste seu novo trabalho discográfico:
Como surgiu a ideia de criar um disco de homenagem ao José Mário Branco?
Foi algo que surgiu quase sem querer, numa conversa com a minha produtora. Quando me apercebi que o 25 de Abril seria celebrado dentro de portas durante a 1.ª quarentena (2020), compus o arranjo de “Eu vi este Povo a lutar”. A minha intenção era organizar um ensemble de violas online. Cada elemento filmaria em sua casa a execução da sua parte. Depois juntar-se-iam os vários registos para fazer um vídeo que se divulgaria no 25 de Abril. Felizmente a minha produtora dissuadiu-me desta intenção e o arranjo ficou na gaveta.
Posteriormente trocámos novamente impressões sobre o que fazer com esta música. E assim nasceu a ideia: iríamos homenagear a obra fantástica de um músico que me diz muito pessoalmente. E com este pretexto incentivaríamos também o nascimento de um ensemble inédito com um positivo potencial de crescimento artístico e profissional.
Dizes numa entrevista que sofres muito com o quotidiano dos outros, e que te causa mesmo angústia a ditadura de massas. Foi também graças a esta “Inquietação”, como nos diz a música de José Mário Branco, que fizeste este disco?
Todo o meu percurso criativo e artístico foi e é motivado pelo meu desassossego, pela minha inquietação e pelas suas ramificações subjetivas que me fazem encarar o estado da arte (global e pessoal), como o estado da sociedade atual. Este disco não é exceção. É verdade que o quotidiano dos outros, que a ditadura de massas, que a ditadura das tendências, me provocam algum sofrimento e irritação. Vivemos dentro de um regime por vezes asfixiante, que delimita diariamente os parâmetros da nossa liberdade equivocada.
Desde do início do meu crescimento artístico que me sinto estimulado pelo desafio criativo e pela hipótese de incentivar dúvidas. Contudo, este trabalho é o primeiro onde não assumo a origem da inquietação na totalidade, uma vez que esta é partilhada pelo autor das canções, José Mário Branco. Neste ponto de vista, o confronto com a conjuntura ficou um pouco mais leve, comparativamente a outras obras como “Os Pássaros estão estragados” (Jacc Records, 2015) ou “Serpente Infinita” (Respirar de Ouvido, 2018).
Em “Águas paradas não movem moinhos” há também uma proposta técnica muito aliciante: como inventar arranjos de canções conhecidas e belas, inserindo-as (as canções) dentro do contexto da música de câmara, da música erudita.
Além disso, este álbum foi a oportunidade de, como já referi, iniciar um processo, no meu entender, muito importante: inaugurar um ensemble único nas suas características e profissionalizá-lo. Neste caso, um sexteto de violas d’arco. Este é apenas o primeiro disco. Mais virão.
Tendo em conta o vasto repertório do José Mário Branco, foi fácil escolher o alinhamento deste álbum? Como é que foi feita a escolha destas 10 músicas?
Não foi fácil, mas também não foi difícil. A seleção foi acontecendo. O primeiro passo foi a escuta da discografia completa de José Mário Branco. Depois, começaram a surgir algumas preferências óbvias: por razões pessoais (“Eu vim de longe, Eu vou pr’a longe”), pelas qualidades do material musical (“Ser Solidário”), pela beleza maravilhosa das melodias (“Quando eu for Grande”), pela importância das próprias canções dentro da história da música portuguesa (“Inquietação”). Há canções como “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades” ou “Sant’Antoninho” que acabaram por não ficar no disco por razões externas à nossa proposta. E outras como “Queixa das Almas jovens censuradas” que não incluí porque não consegui desenvolver um arranjo suficientemente bom a tempo de gravar.
O conjunto de instrumentos que compõem este disco é inédito ou muito pouco usual em Portugal. Como é que chegaste à conclusão que fazia sentido ser só 6 violas d’arco?
É possível que o desejo de juntar 6 violas d’arco tenha alguns antecedentes práticos. Já tinha composto, por várias vezes e em obras anteriores, para quartetos e sextetos de violas d’arco, que depois gravava sozinho (ou seja, gravava cada parte, cada viola separadamente). Com isso adquiri alguma experiência tanto na composição como na execução deste tipo de formações.
Entretanto, apercebi-me que a minha obra poderia alcançar outros objetivos mais amplos além do desenvolvimento de uma visão artística meramente conceptual, suscitada pela inquietação explicada numa resposta anterior. Compreendi que, além da reflexão constante sobre a condição humana dentro desta e outras circunstâncias, também seria interessante alavancar novos paradigmas específicos para o meu instrumento, a viola d’arco. O meu contributo poderia ser ainda mais específico, desestabilizador e partilhável (no sentido em que outros músicos ou equipa poderiam participar neste trajeto).
Formar um sexteto de violas d’arco enquadra-se perfeitamente neste intento e, por isso, este ensemble é, digamos, uma consequência deste segundo propósito.
O teu último disco, “Trégua”, foi gravado com a Orquestra Filarmónica Gafanhense, um coletivo de 55 músicos, e com o saxofonista e Maestro Henrique Portovedo. Agora, em “Águas paradas não movem moinhos”, há apenas seis músicos. Como foi trabalhar com tantos músicos e agora estares numa lógica mais intimista?
Ambas as experiências foram e são muito importantes para a minha evolução artística. É preciso explicar que apesar dos contextos serem bastante diferentes, há um ponto em comum: o músico. Em ambas as situações, eu assumi a direção artística, a composição, a orquestração e a interpretação. Estes foram e são projetos ambiciosos, talvez arriscados, mas idênticos na procura de uma expressão singular e autêntica, que se tenta concretizar com muita qualidade. Ambos os desafios se desenvolveram porque combinei múltiplos esforços. Todas as pessoas que integraram as equipas foram essenciais para a construção destas oportunidades únicas e pertinentes. Desde dos músicos à produção, ao meu booker que, não estando diretamente envolvido, foi e é sempre um conselheiro importante. Quero enaltecer o quanto a minha equipa e, sobretudo, a minha produtora, têm sido determinantes para esta fase do meu percurso.
Trabalhar com uma banda filarmónica é, obviamente, completamente diferente de trabalhar apenas com mais 5 pessoas. Há um princípio agregador que está presente em todos os meus processos de trabalho e que é definitivo para o sucesso ou insucesso dos projetos: a nossa obrigação é tentar fazer a melhor obra de arte possível. Ou seja, colocamos sempre a música em primeiro lugar. Logo, o ónus está sempre na superação, dentro dos limites que desenham o próprio projeto. Pode acontecer que, num ou outro momento, um ou outro elemento se equivoque sobre a verdadeira razão porque participa na construção de uma obra. É normal aparecer aqui ou acolá alguém que se julga mais importante do que a música. Geralmente a própria música e a engrenagem exigente que esta comporta, acaba por encaminhar essa pessoa para o foco certo.
No caso de “Águas paradas não movem moinhos”, deixo um grande elogio aos violetistas que constituem 6 Violas: Miguel Sobrinho, Leonor Fleming, Edgar Perestrelo, Sara Farinha e Tânia Trigo; além de Sofia Silva Sousa, João Tiago Dinis e José Miguel Freitas (que gravaram o vídeo promocional). Estes têm sido absolutamente exemplares e incríveis na disponibilidade, entrega e qualidade com que têm abraçado este sexteto. Para mim é um prazer e um privilégio testemunhar, através dos meus arranjos e do palco, ao seu generoso talento.
A inovação musical e a disrupção de paradigmas são conceitos que tentas sempre explorar ou são coisas que acontecem naturalmente quando partes para um novo trabalho musical?
Aquilo que me seduz e me estimula a criar não é necessariamente um desejo de ser disruptivo. Numa entrevista relacionada com a estreia de “Trégua” afirmei que a dúvida é sempre bem-vinda. De certa forma, a arte, a música, proporciona-me um acesso fascinante à dúvida e, consequentemente, à hipótese de estar sempre a crescer enquanto artista. Por outro lado, a minha personalidade é inventiva, sensível à criação. Quando toquei com o Paquito d’Rivera, ele deu-me um conselho muito útil: é preferível dedicarmo-nos a algo que realmente adoramos e que achamos que podemos fazer bem. Nesse sentido, estar sempre em busca de desafios, de um próximo passo que seja, de preferência, dissemelhante ao anterior, é provavelmente aquilo que eu acho que consigo fazer bem. Pelo menos, desta forma, o meu contributo para com a comunidade/sociedade é autêntico e honesto.
Em que sentido é que o Município de Serpa, Musibéria, Antena 2, CESEM – Centro de Estudo de Sociologia e Estética Musical (Arquivo José Mário Branco) apoiaram este “Águas Paradas Não Movem Moinhos”?
O Centro Musibéria desejou fazer parte deste disco praticamente desde do seu início. Este centro é um equipamento cultural fantástico. Extremamente transparente e genuíno no entendimento da sua função dentro do Município de Serpa. Gosto muito de trabalhar com toda a equipa do Musibéria e acho que é recíproco. Fizemos em conjunto o meu disco premiado “Serpente Infinita” e, a partir daí, estabeleceu-se um diálogo profissional entre nós que, espero, se mantenha profícuo por muitos anos. “Águas paradas não movem moinhos” foi gravado durante uma residência no Musibéria, foi captado, misturado e masterizado pelo André Espada, técnico de som do Centro. O disco será publicado pela editora do Musibéria, Respirar de Ouvido. Este será um disco Antena 2, logo a Antena 2 apoia na divulgação do mesmo. O CESEM ajudou-nos com o fornecimento de imagens em boa definição e cede-nos um espaço para ensaiar. Eu acho este arquivo uma pérola para a investigação. Recorri a imensa documentação acessível através do site do arquivo enquanto compunha os arranjos.
Num artigo que escreveste para o Gerador dizes que “Ao longo dos anos observei que existe, infelizmente, uma hierarquia de visibilidade dentro do meio musical. Generalizando, a engrenagem é encabeçada pelos cantores pop/comerciais/música para as massas; depois seguem-se todos os outros cantores e a música intermédia, uma música comercial ligeiramente sofisticada; depois a música instrumental e, finalmente, a música erudita.”. Como tem sido este caminho no meio da música em Portugal, tendo em conta que o José Valente contraria, com o seu trabalho, esta hierarquia de gosto e mesmo assim consegue destacar-se no panorama da música em Portugal?
Não consigo fazer uma avaliação sobre a relevância do meu caminho dentro da cena artística portuguesa ou da hierarquia que expliquei. É-me indiferente, para não dizer desnecessário, preocupar-me em demasia com o destaque que o meu percurso tem ou deixa de ter. Isso não significa que eu não faça uma leitura sobre este trilho e sobre a sua visibilidade entre os demais, dentro da atual conjuntura. Sou obrigado a fazer essa observação, não só para conseguir responder, de acordo com a minha ética, às inúmeras solicitações, mas também porque sei que com o aumento de reputação, surgem desafios cada vez mais estimulantes e algumas armadilhas.
Gostei muito de uma definição utilizada pelo Miguel Halpern, sobre a minha música, no Jornal de Letras. Segundo ele eu sou um músico “não alinhado”. Acho que estas palavras definem bem o meu trabalho.
Como músico não alinhado, não tenho referência comparativa. Logo, não posso afirmar que as dificuldades, as particularidades inerentes a este caminho me sejam exclusivas.
Posso apenas explicar a urgência que me leva a criar: eu sou um músico dependente. Estou sempre com música na cabeça. Preciso da música como quem precisa de ar. E é isso que me instiga a persistir, a ser resiliente e a tentar construir algo que é relevante para mim e para os outros. Talvez este desejo musical, esta vontade constante e obcecada em descobrir outras perspetivas artísticas, outras vias de como alcançar a beleza, seja a semente responsável pela minha relação com os mais variados estilos musicais e músicos. Sou da opinião que na composição musical, em pleno séc. XXI, o fundamental não é tanto a produção de vocabulários, mas sim a expressão de discursos claros e implicativos. Na minha música é o discurso, é a direção expressiva que comanda a peça musical. Se pretendo ser um músico livre, não devo negar quaisquer estilos de música nem restringir a minha obra a uma inclinação estética, por muito que esta seja conotada de contemporânea ou coroada como importante pela opinião geral.
Tens alguma história que queiras partilhar sobre a gravação ou composição deste disco?
Aconteceram várias peripécias agradáveis. O grupo trabalhou muito bem, de forma bastante intensa durante as gravações. Houve sempre boa disposição e respeito mútuo, algo que é decisivo para o bem-estar deste tipo de processos.
Num arranjo, escrito numa tonalidade qualquer, num certo momento uma das violetistas estava a ter dificuldades para afinar uma passagem. A certa altura, numa tentativa (falhada) de a ajudar, propus uma mudança de dedilhações, de forma a que a violetista pudesse aproveitar a corda solta lá (o que daria garantias em termos de afinação). Acontece que, na tonalidade e passagem em questão, a nota em causa nunca poderia ser tocada com corda solta, uma vez que esta se tratava de um lá bemol. Rimo-nos quando ela me avisou e eu me apercebi do quanto a minha sugestão estava errada. Mas o engraçado nesta história, é que cometi o mesmo erro várias vezes, durante o mesmo ensaio e a mesma música! De tal ordem que o lá bemol se tornou numa espécie de private joke.
Também foi muito bonito conhecer as personalidades de cada violetista durante a residência. Todos se entreajudaram. Todos se complementaram. Por exemplo, no último dia da residência, uma das violetistas arrumou e limpou a cozinha da casa onde ficámos hospedados. Sem dizer nada a ninguém. 6 Violas também se define a partir destes gestos e desta atitude.
O concerto de apresentação deste novo disco acontece dia 28 de Maio, pelas 21h30, no auditório da CCOP, no Porto. Em palco, estarão José Valente, Leonor Fleming, Tânia Trigo, Sara Farinha, Miguel Sobrinho e Edgar Perestrelo. Os bilhetes custam 12€ em pré-venda (à venda na bol.pt ) e 15€ no dia do espectáculo.