Ken Loach: “A necessidade de resistir é cada vez maior por causa das alterações climáticas e do aumento da extrema direita”
Percebe-se que o realizador britânico é um homem de convicções. Sejam elas políticas, estéticas ou simplesmente de vida. Aos 83 anos mantém uma atividade invejável com um cinema simples e direto, de um certo realismo social, servido por uma mensagem e valores políticos que lhe tem rendido os mais relevantes prémios: duas Palmas de Ouro em Cannes (em 2006, com Brisa de Mudança, e em 2016, com Eu, Daniel Blake). Ainda este ano passado mostrou também em Cannes este belíssimo Sorry We Missed You, que em Portugal recebe o título Passámos Por Cá. O título serve também como a mensagem informal do correio expresso deixada em caso de não estar o destinatário. É nesse reino que navega este novo filme carregado de mensagem que aborda a cultura ‘uberista’ de trabalho precário, de quem trabalha por conta própria, sem horários nem apoios, como o caso de Ricky (o não ator Kris Hitchen) ou a cuidadora informal Abby (a também não atriz Debbie Honeywood).
A oportunidade de uma entrevista surgiu no festival de San Sebastian, onde atualizámos as suas principais preocupações políticas e sociais, numa saborosa aula de Economia Política. Tivemos até a oportunidade de o confrontar com os desenvolvimentos políticos em Portugal, embora se perceba que faz falta um maior envolvimento para atualizar a ideia que ainda persiste de um certo isolamento político do nosso país no fórum europeu. A nossa entrevista acabou por seguir esse tom de auscultar o sinal dos nossos tempos.
Disse há algum tempo que estaria a fazer o seu último filme, mas parece que nos tempos que correm existem cada vez mais temas importantes e realidades para revelar em filme. Concorda?
Absolutamente. Existem tantas histórias para contar.
São estranhos tempos estes…
São tempos críticos. Toda a questão das alterações climáticas é muito urgente, tal como o aumento da extrema direita. Algo que se quer ignorar porque as intenções é continuar com uma sobreprodução e exploração do trabalho. O problema é que o gang Jair Bolsonaro, Donald Trump, Boris Johnson, Nethanyahu parece estar a ficar cada vez maior. A necessidade de resistir é cada vez maior.
Como é que desenvolve os seus projetos. Parte com alguma ideia em mente?
Uma vez mais, é ao falar com o Paul (Laverty), nas várias conversas que vamos tendo. Por exemplo, este filme foi uma ideia do Paul. No trabalho as pessoas mantém um ar feliz e positivo, mas quando chegam a casa colapsam, ou pelo menos relaxam e não têm de continuar com esse papel. É aí que o stress começa. A nossa ideia foi o stress que provoca quando ambos os pais são trabalhadores precários.
É interessante porque esse trabalho precário é o que vai mantendo os índices de emprego mais altos. No fundo, esconde também o que está paredes meias com o desemprego.
Exatamente. O nosso governo tem muito orgulho em dizer que está em pleno emprego, ou seja, que não existe desemprego. Isso é verdade, mas dois terços dos novos empregos na última década são precários. O que gera um aumento brutal das pessoas que necessitam de benefícios sociais, porque os salários não suportam o lado mais básico da vida. Temos 14 milhões de pessoas na pobreza e mais de quatro milhões de crianças na pobreza. Temos sete milhões de pessoas em pobreza persistente e 1,5 milhões que não consegue comprar produtos essenciais. Isto é brutal. E isto de pessoas que estão a trabalhar, mas que não conseguem comprar produtos básicos.
No fundo, o que se percebe, e o seu filme mostra isso, muitas vezes os próprios trabalhadores são os primeiros a aceitar essa situação. Acha que o seu filme pode fazer algo para mudar este estado de coisas?
Acho que eles sabem que estão a ser explorados, o problema é como é que resistem a isso. Quando estamos na pobreza a nossa força vai toda para a sobrevivência.
O realismo dos seus filmes faz-nos por vezes confundir e pensar que estamos a ver um documentário. De que forma chega a este estado?
Uma vez mais, tem a ver com a escrita do guião. Mas gostamos de nos rodear de pessoas em que acreditamos. Por exemplo, o Ricky que faz de Chris, chegou a ser ator há alguns anos atrás, mas na verdade é um canalizador e guia uma carrinha. No filme percebemos que ele está muito próximo daquela vida de motorista de entregas.
O mesmo se passa com a mulher dele, a trabalhar como cuidadora informal…
Precisamente. A Debbie é uma professora assistente. Mas evoca aqui esse problema tantas vezes esquecido dos cuidadores informais. É essa unidade entre ambos que vemos no filme e acreditamos, não só na sua unidade como célula familiar, mas também nas suas crises de stress.
O Ken acompanhou um largo período da História, desde a Inglaterra no pós-guerra, Margareth Thatcher, Tony Blair e outros. Surpreende-o aquilo que se passa hoje em dia?
Quando a Thatcher chegou ao poder, juntamente com Ronald Reagan, em que perseguiam a mesma política, o que aconteceu era inevitável. Baseou-se a economia no mercado livre, que se traduz basicamente na competição entre grandes empresas internacionais, numa competição para manter os preços baixos, e que acabam por atacar os custos do trabalho e, consequentemente, destruir os sindicatos, porque pretendem que os trabalhadores se mantenham vulneráveis. Por isso têm de encontrar novas maneiras de os empregar. Porque se uma empresa se recusar a pagar o subsídio de férias e subsídio de doença, cortam também os seus custos, o que faz com que as outras empresas as sigam nessa política, se não terão mais custos. Esta competição constante para reduzir os direitos dos trabalhadores e ao seus rendimentos é inevitável se baseada no mercado livre. Está implícita no sistema e escrita no documento fundador da União Europeia para o mercado livre. Portanto, o que está a acontecer é inevitável.
Este é um problema global. Como pensa que o Reino Unido irá enfrentar o problema no meio desta crise do Brexit (ou do hard Brexit)?
No meu entender, o Brexit é sobretudo uma distração. É uma distração, porque estas questões do trabalho precário, que é o tema que tratamos neste filme, é algo que está instalado no centro da União Europeia e existe por toda a Europa. Se sairmos, e os partidos de direita ficarem no poder, continuará a existir depois da União Europeia. O Brexit é quase uma questão tática para a esquerda.
Em que sentido?
Porque os objetivos estratégicos vão restaurar os direitos dos trabalhadores e investir em indústrias públicas para facilitarem a passagem dos principais meios de produção para o setor público. De certa forma, planificar a economia para travar as alterações climáticas, pois se não a planificarmos não poderemos travar essas alterações.
Uma aposta no investimento público, portanto.
Sim, sobretudo onde nas indústrias antigas onde o investimento púbico desapareceu. Bem como a reforma dos transportes, a integração do transporte ferroviário com o rodoviário, pois precisamos disso para defender o clima. Essa é uma questão que tem de ser feita, estejamos na União Europeia ou não. Portanto, esta questão do Brexit é uma discussão entre dois lados da direita: um lado diz que queremos estar na Europa, como forma de segurar os mercados; a outra diz que queremos estar fora da Europa para podermos manter os salários baixos, impostos baixos nas grandes empresas, sem necessidade de seguir a magra regulamentação de proteção do meio ambiente e dos direitos dos trabalhadores. É, portanto, um conflito de ambos os lados da direita.
É incrível como os seus filmes não envelhecem. Como o seu primeiro filme para cinema, Kess (1969). Qual é o seu segredo?
Tudo começa com o guião, na verdade. Sobretudo com o Paul (Laverty), o meu habitual colaborador. Somos amigos e camaradas, partilhamos das mesmas ideias, gostamos da mesma equipa de futebol… É aí que emergem as ideias, essa universalidade. Se conseguirmos captar as verdadeiras reações humanas, isso não muda. A forma como as pessoas estão juntas não muda, isso é que é universal. O mesmo com os conflitos. As pequenas nuances. Isso nunca muda.
Faz filmes há tantas décadas…
Nem me fale nisso, que lembro-me da minha idade… (risos)
Não, olhe que está ótimo. De que forma sente que o seu olhar evoluiu ao longo dos tempos? Alguma coisa mudou?
É claro que muita coisa mudou, mesmo que continuemos a ser os mesmos observadores. No fundo, algo que permite que o espetador possa seguir esse pensamento. Acho que mantive esse lado. Hoje, com a Netflix e a Amazon, ou a televisão, percebemos que há a necessidade de imprimir um outro ritmo às coisas para manter a nossa atenção. Algo que acho um pouco pesado, sobretudo se isso acontece a todo o momento. Assim perde-se a viagem.
Isto apesar de o Ken ter vindo originalmente da televisão, mas claro que teve a sua evolução. Mas já que falou da Netflix, consideraria fazer um filme com eles?
Não, acho que isso levanta alguns problemas. Um deles é o nível de controlo, que não se liga à forma individual como trabalhamos. A relação da Netflix com o cinema e como a McDonalds com a comida. É fazer produtos de consumo para o maior lucro possível. Tal como a Amazon, com essa capacidade monstruosa de distribuição.
Sabe que em Portugal temos um dos únicos governos de esquerda na Europa. Acompanha o que se passa na política em Portugal, com aquilo que se apelidou chamar de ‘geringonça/contraption’, no conjunto de socialistas com partidos mais à esquerda?
Acho que precisava que me aconselhasse nesse sentido…
No fundo, o tipo de medidas que são advogadas são exatamente as que estava falar.
Claro que sei que existe um governo de esquerda em Portugal. Há quanto tempo estão no poder? E tem tido sucesso?
Sim, o governo está no poder há quatro anos, mas deverá ser reforçado nestas eleições (a entrevista realizou-se algumas semanas antes das eleições legislativas), pela adesão que se sente a esse tipo de medidas de cariz social.
Acho que precisamos de uma esquerda europeia. A dificuldade que teremos, e que vocês têm, é estarmos isolados com um governo de esquerda. Isso torna-se mais difícil.