Entrevista. Lara Moreno: “Precisamos de falar de Donald Trump, de Javier Milei e de toda esta gente que está contra os avanços sociais e as conquistas de direitos”

por Ana Monteiro Fernandes,    6 Março, 2025
Entrevista. Lara Moreno: “Precisamos de falar de Donald Trump, de Javier Milei e de toda esta gente que está contra os avanços sociais e as conquistas de direitos”
Lara Moreno / Fotografia de Jeosm Photography

“Três mulheres na cidade” é o terceiro romance da escritora andaluza Lara Moreno, e o primeiro a ser publicado em Portugal. Tendo como foco a cidade, um edifício e as histórias de três mulheres que o compartilham mas cujas histórias não se entrecruzam, Lara Moreno explica como o próprio condomínio “representa uma divisão social tal como acontece, também, na cidade. Acredito que o norte e o sul estão sempre divididos em todas as partes“. A história da espanhola Oliva retrata a realidade da violência de género; Damaris a imigração provinda da América Latina e, por sua vez, Horía, a imigração marroquina.

Em entrevista à Comunidade Cultura e Arte no “Correntes d’Escritas” deste ano, na Póvoa de Varzim, a autora explicou como as vidas destes mulheres, neste condomínio, representam uma fatia de um grande bolo que, por si só, exemplifica as histórias, a hierarquização e os problemas que as cidades carregam dentro de si. Assim, deu-se o mote para se abordar, na presente entrevista, a forma como a Espanha olha para imigração, como as mulheres, neste campo, ainda têm um problema a mais – a violência sexual –, além da realidade política em Espanha e subida da extrema-direita a nível global.

Porquê o foco na cidade, neste livro? A cidade em si tem muitas vidas, muitas histórias, mas também há muita invisibilidade, muitas pessoas que ficam invisíveis. 

Nos meus livros anteriores escrevi sobre o povo e lugares fechados. Lugares, esses, inventados ou reais, mas de pequena dimensão onde fechava as personagens. Era-me mais fácil para construir as histórias. Por isso mesmo foi um desafio tentar arquitetar uma cidade muito grande como Madrid, também porque a cidade é a forma de organização mais sofisticada que a sociedade tem. Queria retratar isso. Obviamente, cada cidade tem tantas histórias como habitantes, mas pensei que se retratasse a vida de um edifício, no centro da cidade, como se fosse uma fatia de um bolo, essa pequena fatia poderia retratar vários dos grandes problemas que existem nas cidades, nos povos e na sociedade em geral. 

“A Europa e o mundo ocidental – falando da parte que conheço – sustenta a sua riqueza na pobreza de muitos outros países, não somente pelas pessoas que vêm trabalhar para a Europa, mas também pela extração que fizemos e fazemos nos países africanos. Toda a nossa economia é sustentada no espólio de outros países.”

É interessante como descreve o edifício. Há como que uma divisão entre os apartamentos para “gente de bem” e, depois, os outros apartamentos que só têm vista para os pátios interiores do condomínio. Foi intencional esta divisão social? 

O edifício em que vivia naquela altura era assim. Pareceu-me interessante salientá-lo porque representa uma divisão social tal como acontece também na cidade. Acredito que o norte e o sul estão sempre divididos em todas as partes. As cidades também estão divididas pelos rios: do outro lado do rio está a classe trabalhadora e precária. Esta divisão está sempre presente e bem percetível nos hemisférios: o hemisfério norte e o hemisfério sul. Há o norte – a Europa ocidental – e o sul representado pela África e a América Latina. Estamos sempre dentro desta dicotomia entre o norte e o sul, de cima para baixo.

No seu livro há três mulheres. Essas três mulheres estão ligadas a temas sociais contemporâneos muito fortes. A Lara retrata a questão da imigração e das relações abusivas. A imigração é um tema que está muito em voga no momento. Penso que em Espanha acontece o mesmo. Porque decidiu retratar também esta questão?

A imigração é algo que acontece, historicamente, desde o início dos tempos, mas em Espanha costumava ser interna. Era uma imigração nacional em que as pessoas do sul iam para o norte. Muitas mulheres andaluzas e da Extremadura iam servir para as casas ricas de Madrid e do norte mas já não fazemos tanta imigração interna nesse sentido. Claro que nos movemos, mas agora falamos à escala dos hemisférios. A Europa e o mundo ocidental – falando da parte que conheço – sustenta a sua riqueza na pobreza de muitos outros países, não somente pelas pessoas que vêm trabalhar para a Europa, mas também pela extração que fizemos e fazemos nos países africanos. Toda a nossa economia é sustentada no espólio de outros países. O mundo funciona assim desde sempre. 

Mas acho que a imigração para Espanha, tanto vinda da América Latina como de Marrocos ou países de leste, como a Albânia ou Polónia, é algo relativamente recente, de há 20 ou 30 anos. Tínhamos, há 40 anos, uma ditadura e penso que ainda não estamos a ver com perspectiva histórica suficiente as leis de imigração e toda a organização económica e social que temos. Não estamos a ver as relações brutais de poder e como a nossa sociedade, pelo índice de natalidade e pela mão de obra, precisam de imigrantes para o crescimento económico e para tudo o resto. Penso que em Portugal é parecido, mas em Espanha ainda não há uma visão empática para com todas estas pessoas. Há uma desconfiança quando se fala de temas como o racismo, o classismo e toda a injustiça laboral que temos. Considero que se nos detivermos a olhar para a forma como nos estamos a organizar socialmente essas injustiças, no final, saem à luz do dia.

Capa do livro / DR

No seu livro há uma mulher que vem da Colômbia e outra que vem de Marrocos. Haverá diferenças na forma como a Espanha olha para os imigrantes que vêm da América Latina e os imigrantes provenientes de outras zonas? Há uma relação mais próxima com a América Latina ou não?

Acho que o idioma é muito importante mas, de qualquer das formas, temos de considerar que, historicamente, a Espanha tem uma relação com a América Latina baseada no colonialismo. Acho que há uma aparente boa aceitação, uma boa recepção, podemos dizer assim, mas também há muita hipocrisia em torno de tudo isso. Também há uma grande diferença entre os imigrantes brancos da América Latina e os não brancos. Depois, a maioria das mulheres da América Latina que vão trabalhar para Espanha, trabalham como domésticas ou cuidadoras e isso também é bastante sexista. Mas claro que a relação com a América Latina é mais fluida do que a relação com Marrocos. Há, aí, outras barreiras mais difíceis de transpor como a religião e o idioma. No final, penso que no romance está representada a hierarquia das três: Oliva vive no quarto andar – é a mulher branca e espanhola – Damaris, imigrante da Colômbia, está no terceiro andar e, depois, Horía, uma mulher marroquina, vive na pequena casa do porteiro. Esta organização e divisão hierárquica foi pensada assim porque há sempre um sul mais abaixo do sul.

“Se quisermos resumir a profundidade das violências de uma sociedade e se quisermos contá-las todas devemos recorrer à experiência de vida de uma mulher.”

A escolha de mulheres para protagonistas foi consciente? As mulheres vivem de uma outra forma estes problemas sociais do que os homens? Têm histórias diferentes, podem ficar mais facilmente esquecidas?

Escolhi três mulheres protagonistas porque me apetecia, primeiro, contar as suas histórias porque acho que, mesmo que as histórias das mulheres comecem a ser contadas, ainda temos muitos séculos de silêncio para recuperar e compensar.

Houve alguém que disse algo parecido a isto, mas não vou citar nomes porque tenho medo de errar: se quisermos resumir a profundidade das violências de uma sociedade e se quisermos contá-las todas devemos recorrer à experiência de vida de uma mulher. Os imigrantes, obviamente, lidam com muita violência social, institucional e económica. A mulher, além disso, lida com a violência sexual. O número de vítimas do sexo feminino é muito maior. A violência de género afeta mais as mulheres, que sofrem a violência que os homens também sofrem, mais a violência que é direcionada para a própria mulher. Acho que, desta forma, poderia oferecer um retrato mais completo. 

Estava a pensar, até pode-se ver essa diferença pelos títulos de trabalho. Talvez uma mulher, quando emigra, arranja mais facilmente trabalho como cuidadora, trabalhadora doméstica, em casa. Enquanto que um homem está mais virado para a sociedade, pode ir para as obras.

No caso de Horía, ela vem para Espanha fazer um trabalho que muitos homens também fazem: as campanhas nos campos do sul de Andaluzia, Huelva. Há muitos tarefeiros homens que fazem todas as campanhas de fruta pelo norte, Catalunha e Aragão, e estão sujeitos a condições terríveis. Vivem em acampamentos, dormem entre os plásticos, ou seja, fazem um trabalho bastante parecido nesse sentido.

As mulheres, neste caso as de Marrocos, vêm através do protocolo de imigração circular. É um acordo entre Espanha e Marrocos. Não vêm de forma irregular, mas fazem um trabalho parecido. Neste caso, também se lhes dá um alojamento e há muitos homens que estão à espera, nos campos, que lhes deem um trabalho. Se não lhes dão trabalho, vivem na rua, não têm onde viver. As mulheres, no entanto, enfrentam outros perigos extra só pelo facto de serem mulheres. 

“Temos de dar visibilidade à nossa má educação sexual e afectiva e precisamos de falar mais deste problema. Estamos muito mal educados no campo afetivo e sexual, mas temos de nos sensibilizar com estas situações para que aprendamos a nos tratar melhor.”

A temática dos relacionamentos abusivos está muito presente no livro, pela história da Oliva. Acha que ainda temos de dar mais visibilidade a estes temas? 

Penso que a pouco e pouco estamos a dar cada vez mais visibilidade a estas questões, mas ao mesmo tempo que conquistamos certos direitos – em Espanha, por exemplo, assinalam-se os 20 anos da primeira lei integral de violência de género, uma lei que oferece cada vez mais garantias às mulheres que sofrem de violência de género – ainda há muito trabalho por fazer. Infelizmente, ao mesmo tempo que se contam estes relatos, há outra corrente bastante forte que não reconhece a violência de género. Há uma polarização visível em todo o mundo. Precisamos de falar de Donald Trump, de Javier Milei e de toda esta gente que está contra os avanços sociais e as conquistas de direitos. Temos de dar visibilidade à nossa má educação sexual e afectiva e precisamos de falar mais deste problema. Estamos muito mal educados no campo afetivo e sexual, mas temos de nos sensibilizar com estas situações para que aprendamos a nos tratar melhor. Acho que é fundamental.

No ano passado, em 2024, houve uma série de quatro episódios importantíssima, “Querer”, que ganhou muitos prémios em Espanha. Retrata uma família de classe alta em que a mulher denuncia o seu marido, depois de muitos anos de violação dentro do casamento. Há muitas mulheres que estão a ver a série e que se sentem retratadas. É extremamente importante porque te ajuda a identificar certas coisas que, se calhar, nem sequer tinhas conseguido nomear antes. É um trabalho que tem de ser feito.

As mulheres jovens também têm novos desafios, porque ainda se fala de violência no namoro, mas também do controlo das redes sociais por parte dos namorados. A escola tem aqui um papel importante? Aqui, em Portugal, a educação sexual nas escolas é muito debatida. Há quem é a favor, há quem é contra, e suscita sempre reações efervescentes por parte de quem se opõe. Como é que esta questão é vista em Espanha?

Também há quem esteja a favor e contra. A educação em Espanha está sob a competência de cada comunidade autónoma e não do governo central. Dependendo dos governos políticos de cada comunidade e da sua ideologia, a verdade é que estão a cortar esses recursos que me parecem indispensáveis para o esclarecimento das noções de identidade sexual e as questões LGBTI, como também para o esclarecimento de todas as questões e temas que são vitais para os jovens. Viemos de uma tradição de silêncio, de uma religião católica que impediu que os meninos e meninas soubessem alguma coisa sobre saúde sexual. Espero que sigamos em frente, mas tenho receio de que se corte com tudo.

A Europa está a atravessar um momento difícil. O mundo, na verdade, mas a Europa também. Estamos a assistir ao ressurgimento da extrema direita e, no caso espanhol, saiu na imprensa uma notícia que relatava que os adeptos do Bétis começaram a fazer a saudação nazi num jogo com o Celta de Vigo: o estádio do Vigo pôs a tocar, depois, como contra-resposta, a Grândola Vila Morena de José Afonso. Como olha para tudo isto e, em especial, para a situação espanhola? 

Vejo com terror e estou aterrorizada. A Espanha voltou a ter um governo, na última legislatura, progressista. A ultra-direita tem subido desde há uns anos, mas não tanto como, por exemplo, na Alemanha. A Espanha está muito dividida. É um equilíbrio frágil, porque há um governo progressista de esquerda que depende de uma coligação muito frágil uma vez que não conseguiu os votos necessários para a maioria absoluta. Estamos divididos com a direita, em que temos o PP e, depois, a ultradireita.

O medo que tenho é que, mesmo que em Espanha, tradicionalmente, desde que há democracia, tenha existido um bipartidarismo que se reflete ora num pouco direita, ora num pouco de esquerda – são estas as duas forças políticas que têm dominado e que se têm reconstruído uma à outra – com a força da extrema direita de agora, que não é a direita de há alguns anos – ainda que não esqueçamos que vêm do mesmo lugar, porque em Espanha, pelo menos, vêm do mesmo lugar – se por acaso, nas próximas eleições, aumentarem o número de votos, tenho medo que o dano seja maior, claro, porque há uma fúria mundial. Vamos ver o que vai acontecer. Suicidou-se, há pouco tempo, uma menina de 11 anos nos Estados Unidos, porque os colegas de turma ameaçavam deportar os seus pais. Chegámos a este ponto. 

“Viemos de uma tradição de silêncio, de uma religião católica que impediu que os meninos e meninas soubessem alguma coisa sobre saúde sexual.”

Estas são três histórias ligadas por um apartamento, mas que na verdade não se misturam entre si. Era importante que não se misturassem? 

Quando comecei a escrever, pensei que iriam acabar por se relacionar. A minha ideia para o final era ter a três juntas a fazerem qualquer coisa. Mas pareceu-me uma fantasia. Organizamo-nos e relacionamo-nos de forma horizontal, socialmente. Se não nos relacionamos de forma transversal é devido às relações laborais. 

Vi um filme português, este ano. Na realidade, são dois filmes que se completam, de João Canijo, “Viver mal e mal viver”. Passa-se num hotel e, num dos filmes, consta a história das mulheres que gerem o hotel e, no outro filme, consta a história e o ponto de vista dos hóspedes. Tanto num filme como no outro percebemos, como pano de fundo, a outra realidade que existe. Na cidade acho que se passa o mesmo. As pessoas relacionam-se, constantemente, num elevador que sobe, desce, e olham-se. Há o barulho que fazem, o que ouvem pelas janelas. Ou seja, acho que, no fim, é essa a mistura que existe. Mas não podia fazer com que fossem amigas porque são de estratos diferentes. Seria algo irreal e queria contar a verdade.

Esta é a primeira publicação de um livro seu em Portugal, embora este livro já tenha saído há mais tempo em Espanha. Não sei se acompanhou com interesse especial a primeira edição portuguesa por falarmos de um país vizinho.

Para mim, é um presente incrível esta tradução para português, uma vez que tenho uma relação especial com o país. Venho a Portugal todos os anos, várias vezes. A minha família é de Isla Cristina, uma vila muito próxima da fronteira com o Algarve. Além disso, desde há cinco anos, nos verões, venho sempre para a zona do Douro, perto do Porto. Tenho muito amor por este país. Obviamente, ainda tenho muito para conhecer no que diz respeito à cultura, literatura, história e política. Há sempre mais a aprender. Mas para mim, isso já é muito especial.

Por outro lado, não tenho a sensação de que tenha passado muito tempo desde que saiu “La Ciudad” [título original do livro em Espanha]. Saiu em 2022 e, para mim, o tempo passou a voar. Agora estamos em 2025, mas no ano passado não pude vir ao lançamento porque estava a ter uma bebé – tenho uma filha mais velha – e é como se as edições saíssem ao mesmo tempo em Portugal e Espanha. 

A Lara tem três romances, este é o seu terceiro romance. Mas antes dos romances, já tinha livros de contos, poesias. A prosa de um romance exige um esforço, um folgo maior por parte do escritor?

Acho que o romance, dos géneros em que já trabalhei, é o que tem mais envergadura no sentido em que exige um esforço maior ao longo do tempo, pelo espaço que ocupa na tua cabeça e na tua vida cotidiana, mais do que todos os outros. Não acho que seja mais difícil, acho que os três exigem esforços diferentes, cada um no seu género, mas o romance é o mais totalitário na vida. Quando estás com um romance, precisas de dedicar-lhe imenso tempo, tens de ter uma atitude de soldado. Nesse sentido, é o que exige maior esforço.

A literatura latino-americana acaba por ter uma influência cultural muito importante em Espanha?

Muito. A literatura latino-americana teve o seu boom que perdurou no tempo com García Márquez, Onetti, Borges, Cortázar e Bioy Casares, entre tantos outros. Durante muitas décadas do século XX, princípios do século XXI, foram muito representativos, mas as mulheres acabaram por ficar esquecidas. 

Agora começamos a ler de outra maneira Elena Garro, uma grandíssima escritora do boom latino-americano também, mas foi esquecida na altura. Mas, atualmente, estamos a assistir a algo sensacional: desde há já 10, 15 anos, têm surgido uma grande quantidade de escritoras latino-americanas que estão a ser publicadas, obviamente, tanto em Espanha como na América Latina. Falo de Gabriela Wiener, Fernanda Trías, Fernanda Melchor, Brenda Navarro, Mónica Ojeda, e muitas escritoras latino-americanas que são absolutamente imprescindíveis.

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