Entrevista. Layla Martinez: “A família é um lugar onde nos protegem, nos ajudam, cuidam de nós, mas também pode ser um lugar de controlo, violência e abuso”

por Lusa,    5 Outubro, 2024
Entrevista. Layla Martinez: “A família é um lugar onde nos protegem, nos ajudam, cuidam de nós, mas também pode ser um lugar de controlo, violência e abuso”
Layla Martinez / Fotografia de JM Lazaro Castillo

O romance “Caruncho”, da escritora espanhola Layla Martinez, é uma história de terror e ódio, inspirada na sua própria família, que explora heranças familiares sombrias, e presta vingança às mulheres violentadas e às vítimas do franquismo.

“Vingança” é a palavra e o sentimento que a escritora Layla Martinez, nascida em Madrid em 1987, usa para descrever o seu romance “Caruncho”, publicado em Espanha em 2021 e editado este ano em Portugal pela Antígona, no âmbito do projeto Sementes de Dissidência, que o levou ao encontro de leitores no interior do país.

Trata-se de uma obra que mistura ficção e terror com elementos autobiográficos, centrada nas mulheres da sua família, especialmente a mãe, a avó e a bisavó, mas também na casa onde viveram, na região de Cuenca.

Capa do livro / DR

Narrada a duas vozes, por uma jovem e pela sua avó, a história começa com o regresso da neta, acusada de um crime, à casa rural da família, um lar assombrado onde vive com a avó e com espetros do passado que clamam justiça.
Entre quatro paredes, sobre as quais pesam traumas herdados e décadas de violência e opressão, a história de Layla Martinez mergulha o leitor no coração de uma Espanha vazia, marcada por resquícios do franquismo.

“Eu queria contar a história das mulheres da minha família, especialmente da minha bisavó e da minha avó, e também da casa. Isto é o que há de mais autobiográfico, não é a minha biografia, é a da minha avó, mas é a que mais se aproxima da realidade, de como as coisas aconteceram. A minha bisavó tinha 32 anos quando a Guerra [Civil] terminou, e a sua vida foi marcada pelo período pós-guerra, o que quis explorar de uma forma que refletisse a dureza daquela época,” explicou Layla Martinez, em entrevista à agência Lusa.

O livro é um mergulho na realidade obscura que envolveu essa casa e os eventos que a rodeavam, um tom que é dado logo no primeiro parágrafo: “Quando passei a soleira da porta, a casa precipitou-se sobre mim. Este monte de tijolos e sujidade faz sempre a mesma coisa, lança-se sobre qualquer pessoa que atravesse a porta e retorce-lhe as entranhas até a deixar sem fôlego”.

“A minha mãe dizia que esta casa nos faz cair os dentes e nos seca as vísceras, mas a minha mãe saiu daqui há muito tempo e não me lembro dela. Sei que dizia isto porque a minha avó mo contou, embora não fosse preciso porque eu já o sabia. Aqui caem-nos os dentes e o cabelo e as carnes e, se não tivermos cuidado, damos por nós a arrastar-nos de um lado para o outro ou prostradas na cama para nunca mais nos levantarmos”.

Layla Martinez optou pelo género do terror, um estilo com o qual se sente confortável, para contar esta história, embora essa fosse também uma consequência natural do facto de os acontecimentos que inspiraram o livro serem, por si só, assustadores.
O terror psicológico permeia toda a obra, refletindo não apenas os fantasmas literais que assombram a casa, mas também as feridas deixadas pela violência familiar e pela pobreza, marcando as gerações seguintes.

O próprio título, “Caruncho”, é uma metáfora, que simboliza a corrosão emocional e psicológica que afeta as personagens. Layla Martinez descreve como o som do caruncho que ouvia à noite, na casa da avó, inspirou essa imagem de algo que nos “come por dentro”, destruindo lentamente o interior até que “um dia tudo se desmorona”.

“Toda essa amargura, esse ressentimento que acumulamos ao longo dos anos, é como o caruncho, algo que nos destrói por dentro”, reflete a autora, fazendo um paralelo entre a vingança que demora anos a ser concretizada na história e os sentimentos corrosivos que moldam a vida das personagens.

Um dos aspetos mais importantes desta obra é o papel da casa, que se torna uma personagem central.
Para Layla Martinez, a casa simboliza tanto proteção, como aprisionamento. A escritora relata que a casa foi construída pelo bisavô, um homem que, como descobriu mais tarde, era conhecido na aldeia como tosquiador de ovelhas, mas na verdade, prostituía mulheres, além de maltratar fisicamente a mulher, a bisavó da autora.

A casa, que em teoria era um presente de casamento para a bisavó de Layla, foi construída com o dinheiro obtido da prostituição dessas mulheres, o que a transformou num símbolo de opressão para a família, sobretudo para a bisavó, que só se libertou quando o marido morreu na guerra.
“A casa representa a ambivalência das relações familiares: a família é um lugar onde nos protegem, nos ajudam, cuidam de nós, mas também pode ser um lugar de controlo, violência, abuso”.

A autora revela também como a profundidade dos segredos familiares influenciaram o romance. O passado do seu bisavô era cercado de silêncio e tabu dentro da família, a sua avó, que cresceu sem o pai (morto quando ela ainda era bebé), pouco falava sobre ele, e foi somente através de conversas com uma tia-avó, que Layla soube da extensão dos abusos e da verdadeira origem do dinheiro que permitiu a construção da casa.

Mas as questões centrais, da violência, do trauma e da herança, que atravessam a obra não se cingem à casa e ao universo familiar, ganhando extensão pela necessidade da autora de contar as histórias da região e das memórias não documentadas de uma época marcada pela repressão.
A escolha destes temas foi natural para Layla Martinez, porque se trata de uma história “difícil e cheia de raiva”, passada numa região da Espanha que sofreu uma “repressão brutal” durante e após a Guerra Civil Espanhola (1936-1939).

Muitos guerrilheiros antifascistas, os maquis, que se esconderam no mato, foram perseguidos e executados sem julgamento, e as elites locais, como a família Jarabo, frequentemente organizavam “caçadas” a esses guerrilheiros como forma de entretenimento.
Para a autora, foi importante incluir esse nome real no livro, como uma espécie de vingança simbólica: “Essas pessoas nunca foram julgadas e continuam ricas até hoje. Queria que, pelo menos, o nome delas estivesse no livro para que a história não fosse esquecida”.

“Uma amiga minha disse-me – porque o livro já teve muitas traduções, inclusive para coreano – ‘Bem, pelo menos na Coreia vão saber quem são os Jarabo’”, brincou a escritora.
Outro ponto central do livro é a relação entre as mulheres da história, que compartilham uma memória coletiva que preserva as histórias da família e do trauma geracional.

A escritora comenta que, numa investigação antropológica em que participou sobre execuções no período do pós-guerra, percebeu que as memórias eram sempre transmitidas pelas mulheres, as quais guardavam as histórias das famílias, tal como sucedeu na sua.
A história da bisavó de Layla Martínez também é um exemplo contundente de violência de género, em que a autora descreve como, após a morte do marido, a sua bisavó se sentiu “finalmente livre dos maus-tratos e decidiu usar luto até morrer”, não como símbolo de sofrimento, mas “como forma de dizer que não queria mais nenhum homem na sua vida”.

Este gesto simbólico reflete o peso da violência patriarcal que atravessa gerações, e que a escritora fez questão de incluir na obra, para ressaltar que, “embora tenham ocorrido avanços, as questões de género ainda persistem”.

Quanto ao terror psicológico e atmosférico de “Caruncho”, Layla Martínez revela que, mais uma vez, a casa assume um papel central, porque é um local onde muitos se recusam a passar a noite devido às histórias de fantasmas e aparições que circulam na região. Em particular, a sua avó acreditava ter visto a própria mãe nas escadas.

Esse ambiente de assombração e medo está ligado à cultura popular local, onde se acredita que os mortos voltam para transmitir mensagens ou para concluir algo inacabado.
Além disso, a autora incorpora elementos de maldições, feitiços e magia, tradições que ouviu da sua avó e que, segundo a autora, são práticas de que quis guardar memória, porque estão a perder-se com as gerações mais jovens.

A esse propósito, confessa que se sente inspirada em grande parte pela literatura latino-americana, com a qual encontra semelhanças no que respeita às histórias de repressão durante a ditadura e a forma de as exorcizar através de histórias de assombrações.

“Muitas dessas casas assombradas ou lugares com ruídos estranhos estão, na verdade, relacionados com execuções, torturas e assassinatos que aconteceram durante a guerra ou a repressão” da ditadura, explica a autora, associando o terror sobrenatural à memória histórica.

Sobre a vigem que fez pelo interior de Portugal, no âmbito das Sementes de Dissidência, para dinamizar leituras e discussões, a escritora espanhola mostrou-se “emocionada” com a experiência.

“Conheci muitas coisas. Em Campo do Gerês, por exemplo, também falámos de casas assombradas e de histórias de fadas e fadas más. É muito emocionante, porque estou a conhecer muitas lendas de lugares e histórias de família. Claro que, quando apresentamos o livro numa livraria ou num local grande, normalmente perguntam-nos mais sobre literatura, não sobre influências, nem coisas desse género, e é mais difícil alguém dizer: ‘Aqui também havia uma casa com fantasmas’”.

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