Entrevista. Lisa Gerrard e Jules Maxwell: “Há uma intensidade emocional nestas peças que as torna sobre tudo e nada ao mesmo tempo”

por Bernardo Crastes,    18 Novembro, 2022
Entrevista. Lisa Gerrard e Jules Maxwell: “Há uma intensidade emocional nestas peças que as torna sobre tudo e nada ao mesmo tempo”
Fotografia cedida pelos artistas
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Lisa Gerrard é conhecida por ser a angelical voz dos Dead Can Dance e de múltiplos outros projectos, incluindo a famosíssima banda sonora do filme “Gladiador”, composta por Hans Zimmer. Jules Maxwell é um dos seus companheiros de banda nos Dead Can Dance desde a tour de apresentação de Anastasis, o álbum lançado pelo projecto em 2012. Juntos, compuseram e musicaram sete faixas que se converteram no álbum Burn, editado no ano passado. Como já é apanágio dos envolvidos, a música é épica, transcendente, mística… enfim, todos esses epítetos associados a algo grandioso e que parece ser inspirado por algo fora do nosso quotidiano.

Agora, Portugal terá a oportunidade única de assistir às primeiras apresentações de sempre deste projecto ao vivo. Os concertos fazem parte do programa do Misty Fest, que promove a descentralização da cultura e levará Lisa e Jules a Espinho, Lisboa, Porto, Guarda, Figueira da Foz, Braga e Portalegre. No âmbito desta digressão nacional e da re-edição do álbum numa versão expandida, a Comunidade Cultura e Arte teve a oportunidade de conversar com Lisa Gerrard e Jules Maxwell.

Como foi o processo criativo de Burn?
Jules: Na verdade, as gravações para o Burn foram feitas em 2015, quando eu e a Lisa estávamos a trabalhar noutro projecto: o Mystery of the Bulgarian Voices. Na verdade, foi apenas subsequentemente que eu descobri que a Lisa tinha tido muitas ideias, vocalmente, que não tínhamos usado nesse disco em particular. Por isso, eu comecei a esculpir algo novo e foi nisso que se transformou o Burn. Aquilo que se ouve nele tem 7 anos, apesar de o álbum apenas ter sido lançado no ano passado. O que nos interessa fazer nestes concertos não é replicar o álbum, mas usá-los como um trampolim para explorar os temas, o material e a intensidade emocional da música de forma diferente.

Apresentarão o álbum pela primeira vez alguns anos após o terem completado. Sentem que o trabalho mudou de alguma forma, a vossos olhos?
Jules: Para mim, que estava a cargo de juntar as peças do álbum, sim, mudou. É como o trabalho de um escultor, o de pegar na voz da Lisa, noutros elementos musicais. Claro que a escultura muda à medida que se avança, mas acho que é muito importante entender que o álbum, como ele existe neste momento, corresponde apenas a um instante. Estamos a meio de explorar algo e essa é uma das coisas mais entusiasmantes, a meu ver. Ter tempo em palco com a Lisa, simplesmente a fazer música, será uma experiência incrível para mim. Quando trabalhámos juntos no passado, era na estrutura dos Dead Can Dance. Houve uma peça musical que improvisámos durante a tour de 2012 e que foi sempre uma experiência incrível para mim, a de estar a sós em palco com a Lisa e sentir essa comunicação, em ambas as direcções.

Lisa: Isso é realmente amoroso, Jules! A minha experiência com este álbum corresponde ao que o Jules disse. Ao nos juntarmos a fazer algo, eu imagino sempre uma espécie de coisas a flutuar no éter. Depois de morrermos, deixamos como que pedacinhos de tecido a flutuar pelo mundo e alguém os transforma numa pintura abstracta. Acho que foi isso que o Jules fez. O rescaldo de ele sair da minha casa, depois de muita cantoria e música, ele levou isso com ele no seu bolso e converteu-o nesta obra-prima maravilhosa. Passaram todos estes anos e, de repente, esta explosão de peças lindíssimas aconteceu. Não podia acreditar no que ele tinha feito… era tão provocador, apaixonado e inspirador. Há algo que acontece quando nos conectamos e que não pára de crescer. Pode ser descrito como uma febre, uma paixão, um caso amoroso ou uma doença, como quiseres… mas transforma-se em algo com o qual os outros se podem conectar e que nos encoraja a mantermo-nos vivos.

Ao ouvir o álbum nos últimos dias, tentei encontrar um significado para as canções. Talvez não o devesse fazer e apenas senti-las. No entanto, gostaria de saber qual é o significado destas canções para vós.
Jules: É, acho que tentar senti-las é muito melhor do que tentar saber sobre o que elas são. Elas serão sobre algo diferente para ti, para mim, para a Lisa ou para qualquer outra pessoa. Eu penso na forma delas como peças. Muitas delas começam de forma muito íntima e depois meio que explodem para horizontes expansivos. Há uma intensidade emocional nestas peças musicais que torna claro que são sobre tudo e sobre nada ao mesmo tempo. As peças maturaram ao longo de um longo período de tempo. Uma a uma, nasceram. Eu não tinha realmente a intenção de fazer um álbum, simplesmente comecei a trabalhar num pedaço de música e dei-lhe tempo para nascer.

Lisa: Não é sobre o trabalho pertencer-nos a nós, mas sobre partilhá-lo de forma a que possa pertencer a outras pessoas também. Quando eu era mais nova, eu ouvia álbuns do David Bowie e não entendia realmente o que ele estava a dizer, mas de alguma forma evocava uma paixão e uma razão para sentir que fazia parte deste universo e que tinha direito a viver. É isso que transparece na música.

No concerto do Porto, terão a participação da companhia de ballet Ballet do Douro. Como surgiu essa colaboração?
Jules: Eles abordaram-nos. Eles farão apenas uma canção no Porto. A minha esposa gere uma companhia de dança aqui em Londres e eu já compus música para dança, por isso eu adoro dança. Eu e a Lisa adoraríamos trabalhar com uma companhia de dança para todo o álbum, mas logisticamente não foi possível. O Ballet do Douro abordou-nos e já tinham criado um dueto para a canção de abertura do álbum. Será um momento fascinante para nós, assim como para a audiência, o de ter dois bailarinos em palco connosco. Contribuirá muito para a energia da sala.

Coreografia da companhia Ballet do Douro para a canção “Heleali”

Também terão alguns vídeos do David Daniels. Ele trabalhou convosco apenas para estas performances ou também durante a produção do álbum?
Jules: Quando terminámos o álbum, a editora com a qual estava a trabalhar, a Atlantic Curve, comissionou alguns filmes para acompanhar as canções. Dois deles são peças em live action feitas por realizadores polacos [Jacob Chelkowski e Michal Sosna] com quem tinha entrado em contacto. O David Daniels é um animador com quem já trabalhei muito ao longo dos anos. Ele trabalhou com os Blue Nile, os Led Zeppelin… ele é um muito bom amigo meu e estava deliciado por trabalhar comigo nestas canções. Acho que ele fez um trabalho lindíssimo. Os filmes estarão totalmente incorporados no espectáculo.

Eu estava a ver o seu portfólio anterior e não imaginaria uma conexão entre o que ele faz e a vossa música, pois é um trabalho muito minimalista e a vossa música é bastante épica e ampla. De que forma acham que as animações dele se ligam com a vossa música?
Jules: Eu adoro-as. Eu lembro-me que o website dele se chama algo como Ears as Eyes e o trabalho visual dele realmente tem uma perspectiva sónica. Apesar de o seu trabalho ser bastante minimalista, eu acho que funciona maravilhosamente com música expansiva, porque há uma simplicidade e, particularmente, uma musicalidade no que ele apresenta. Há frases, há ritmo e até cores. Ele realmente tenta evocar música através de significados visuais. Adoro trabalhar com ele.

Lisa, como manténs a tua voz tão límpida? Tens alguma rotina em particular? É que é realmente impressionante. 
Lisa: Não, não tenho. Até fico surpreendida, porque eu grito e berro todo o dia com a minha mãe, discutimos a toda a hora, grito aos meus cães para regressarem… não sei, eu acho que ela simplesmente sai assim. Um pouco de reverberação ajuda [risos], para cobrir um pouco as imperfeições. Mas acho que cantar não é sobre como soa a tua voz, mas sobre acreditar naquilo que fazes e na tua mensagem. 

Como manténs um ritmo tão prolífico de lançamentos e produção criativa? É assoberbante para ti?
Lisa: Não, de todo! É divertido. Não sei, simplesmente entras na sala, ligas o estúdio, tens um microfone, alguém te envia um pedaço de música e cantas para ele. Ou então sento-me ao teclado e tenho pessoas como o Simon [Bowley] ou o Jules na minha vida. Há estes cumes massivos e nós saltamos de cume em cume; ou icebergs dos quais apenas vês a ponta, mas que têm algo gigante escondido debaixo da superfície. Nós tomamos muitos riscos e simplesmente guiamos este barco titânico pelo éter, nestas salas escuras sem companheiros, sem as nossas pessoas. Nós não sabemos, no momento… podemos rascunhar algo, mas é simplesmente juntar as nossas cabeças e encontrar, de uma forma sã, um caminho para casa.

Jules: O que eu posso dizer sobre trabalhar com a Lisa é que a sua curiosidade por trabalhar com pessoas diferentes e de maneiras diferentes foi muito impressionante para mim, nos Dead Can Dance. Ela planeava trabalhar com cada elemento da banda — “eu quero fazer algo contigo, quero fazer algo contigo…” — e é brilhante porque, nos anos que se seguiram, foi precisamente isso que ela fez.

Lisa: Podemos fazer coisas a sós e também é divertido — bom, normalmente não é divertido, é mais uma experiência catártica. Quando trabalhas com outras pessoas é entusiasmante, porque desbloqueias algo em conjunto. É como se se tornassem numa equação matemática, em que 2+2=4 — aliás, na verdade às vezes é 5… com alguns músicos é 5, mas não precisamos de falar sobre isso [risos].

Ao ver o desenvolvimento das eleições no Brasil, uma das coisas que mais me impressionou foi a presença da música ao longo do processo: música de protesto, de celebração…

Lisa: Eu também vi isso, isso é tão bonito. É aí que sabes que, não importa o quão más as coisas se possam tornar, ainda podemos cantar e dançar e estar vivos juntos, sem nos assoberbarmos por estes políticos horríveis e as suas tretas.

O que é que têm ouvido que queiram destacar?
Lisa: Jules, é melhor responderes tu a isto. Ouçam, eu fui a um concerto de tributo ao Elvis este fim-de-semana. Foi fabuloso, eram 3 Elvises. Eu estava com medo quando o Louis comprou os bilhetes. Mas eu desfrutei bastante, foi adorável! [risos] Mas enfim, essa foi a última música que eu ouvi. Qual foi a última coisa que ouviste, Jules?

Jules: Há uma cantora chamado Alison Cunningham, uma cantora e compositora americana no estilo da Joni [Mitchell]. Ela vai actuar em Londres e vou vê-la. Eu estou a trabalhar numa peça de dança, por isso estou imerso num mundo de electrónica minimalista.

Lisa: Tu trabalhaste com uma cantora de fado, não foi, Jules?

Jules: Sim, ela chama-se Lina.

Lisa: Ela juntar-se-á a nós na tour?

Jules: Ela juntar-se-á a mim em Lisboa, acho, para cantar uma canção no meu acto de abertura. Por isso poderás conhecê-la lá, Lisa. Ela é brilhante.

Lisa: Eu adoro fado! Eu sei que isto soa a treta, mas é verdade, estou muito entusiasmada por ir e estar em Portugal, é um lugar tão especial.

Lisa Gerrard e Jules Maxwell apresentarão Burn no dia 19/11 em Espinho, 21/11 em Lisboa, 23/11 no Porto, 25/11 na Guarda, 27/11 na Figueira da Foz, 29/11 em Braga e 30/11 em Portalegre.

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