Não percamos de vista a poesia, lembrou-nos Rodrigo Cuevas

por Bernardo Crastes,    9 Novembro, 2020
Não percamos de vista a poesia, lembrou-nos Rodrigo Cuevas
Fotografia de Linda Formiga / CCA
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Ao longo da sua curta tour por Portugal — três datas, em Lisboa, Espinho e Coimbra —, Rodrigo Cuevas deu ao público um vislumbre riquíssimo da cultura asturiana. Em conjunto, olhámos para trás, para uma certa maneira poética de fazer e viver as coisas, mas com os pés bem assentes na contemporaneidade da música electrónica e de um espectáculo moderno. Antes de nos cantar “Ronda de Robledo de Sanabria” — em que ouvimos “Cada vez que te passeias por baixo da minha casa / Rezo para que me chegue uma notificação ao WhatsApp” — Rodrigo fez-nos o paralelismo entre as rondas que os “nossos avós” cantavam, num jogo de sedução subtil e demorado, e as mensagens desprovidas de vogais trocadas entre os jovens (e menos jovens também) para encontros fugazes, num saudosismo perene que confronta as noções práticas dos tempos modernos. O artista urge-nos, no seu português inventado, a que, mesmo com a falta de tempo que alegamos ter, não percamos de vista a poesia.

Essa poesia foi expressa não só nas vívidas letras que pontuam as canções ou nos interlúdios do artista, mas também visualmente, através do maravilhoso traje de Rodrigo, das suas danças sedutoras e das fotos de tempos idos asturianos projectadas no fundo, ou até no cruzamento entre percussão e voz bem característico da música tradicional ibérica.

Percorrendo o espectro entre tradicional e moderno, as canções extáticas puxavam pelos pés do público, que seguramente teria abanado mais a anca se os lugares não fossem sentados. “Arboleda Bien Plantada” serviu para Rodrigo soltar os uivos guturais que caracterizam o final do canção como quem tem vontade de viver, acompanhado de uma pandeireta serpenteante e das teclas metálicas de Mapi Quintana. “El Día Que Nací Yo”, versão do clássico de 1936 (!), foi a única que soou mais cheia e envolvente ao vivo quando comparada com a sua versão de estúdio, sendo que todas as outras canções foram fiéis ao que já conhecíamos do maravilhoso Manual de Cortejo, num testemunho da qualidade técnica dos músicos em palco. “Xiringüelu” não perdeu nenhuma da força do seu clímax estonteante, assim como a “Muiñeira da Filla da Bruxa”, escolhida para fechar o concerto com uma rica tríade de percussão que poderia estender-se por horas em fogoso baile.

Fotografia de Linda Formiga / CCA

O ritmo amainou apenas para uma versão guiada pelo acordeão e menos melancólica da mui bonita “Cesteiros” e também para aquele que será facilmente o momento mais emotivo de qualquer espectáculo de Rodrigo Cuevas: “Rambalín”, o tributo ao transformista gijonês Rambal, que teve a coragem de se assumir como homossexual numa altura em que era muito mais difícil fazê-lo e que era bem-querido no seu bairro de Cimadevilla, mas que ainda assim foi assassinado num crime de ódio até hoje sem veredicto. A canção foi precedida de um discurso bem pessoal e incisivo de Rodrigo, mas nunca sem o incontornável humor do artista, que assim tocou de forma mais eficaz o seu público, notoriamente adepto da diversidade, inclusividade e liberdade de expressão pessoal.

E foi assim ao longo de uma hora e um quarto. Entre as canções óptimas (os auto-denominados “temazos”) que se seguiam umas às outras, houve sempre tempo para explicar as coisas, para deixar que a expressão artística se manifestasse de uma forma natural e para criar a ligação entre público e artista cada vez mais difícil de manter, com distanciamentos, máscaras e medidas afins. Para além de termos assistido a um espectáculo divertido e envolvente, realmente aprendemos alguma coisa, ao conectarmo-nos com certas realidades com as quais não temos contacto tão frequentemente. Tivemos oportunidade de nos soltar um pouco, gritando como as “nossas avós de Miranda e do Alentejo” faziam, reagindo à voz portentosa de Rodrigo à típica maneira asturiana e cantando o único refrão de “Xiringüelu”, que, concordamos, poderia chegar aos píncaros da Billboard, num mundo mais justo.

No final do concerto de Lisboa, saímos da sala e os ecos da “Muiñeira da Filla da Bruxa” continuaram a encher os corredores do Museu do Oriente. Foi um sucesso e o início daquela que esperamos ser uma longa e frutífera relação entre o artista e o nosso país.

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