Entrevista. Luís Freitas Branco: “Acreditava-se que a música teria uma capacidade funcional de derrubar a ditadura”

por Ana Monteiro Fernandes,    24 Março, 2024
Entrevista. Luís Freitas Branco: “Acreditava-se que a música teria uma capacidade funcional de derrubar a ditadura”
Luís Freitas Branco / DR
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“A Revolução Antes da Revolução” (ed. Zigurate), primeiro livro do musicólogo e mestrando em Ciências Musicais, Luís Freitas Branco, lançado em Março de 2024, mostra como 1971 foi um ano ímpar na música portuguesa e como, na altura, em plena época da Primavera Marcelista, críticos, músicos e jornalistas musicais acreditavam que a música teria um papel fulcral para a queda do antigo regime. José Afonso, Sérgio Godinho e José Mário Branco gravam, respectivamente, em Paris, os álbuns “Cantigas de Maio”, “Sobreviventes” e “Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades”. Mas não só, é o ano do Cascais Jazz, que tem no cartaz Miles Davis na sua época mais contestatária e, por isso mesmo, incomodado quando percebe a realidade política do país, a par do Festival Vilar de Mouros que assume, nesse mesmo ano, os contornos de festival tal como o conhecemos de momento. Tonicha ganha o Festival da Canção, com “Menina do Alto da Serra”, mas a letra, embora de Ary dos Santos, sabe a pouco pela sua colagem ao campo quando já se esperava um outro papel da canção.

Não haveria um ano como 1971, tal como nos diz Luís Freitas Branco, porque posteriormente os discos teriam de passar primeiro pelo “exame prévio”, endurecendo-se os contornos da censura. O musicólogo deixa, no entanto, um alerta: nos 50 anos do 25 de Abril, a música africana deveria ser mais relembrada, através de Bonga ou do mítico “Blackground” dos Duo Ouro Negro”, entre outros artistas mais que desenvolveram projectos ousados e mais directos, no que diz respeito à idependência do então ultramar, o tópico mais quente e sensível do regime. Recorda que, além da mesma música de intervenção que ouvimos, dever-se-ia falar do jazz, do pop e do rock e relembra a inclusão das mulheres na música de intervenção. “Como é possível não haver canções angolanas, guineenses, moçambicanas, não há mulheres no canto de intervenção. Falei sobre duas, mais profundamente, neste livro, a Ana Maria Teodósio e Rita Olivais, mas havia mulheres no canto de intervenção, e quero falar um pouco disso neste livro, mas também na minha investigação académica“, relembra Luís Freitas Branco em entrevista à Comunidade Cultura e Arte.

Como foi o processo de investigação para o livro? As recolhas de imagens, de páginas da imprensa de então, foi fácil? Como foi reunir as declarações dos artistas e intervenientes da época?
Começando pelas declarações, tive sorte porque era a pandemia e são pessoas já com uma certa idade, no geral, e estava tudo fechado em casa, muito aborrecido. Tivemos, portanto, essa sorte. Quanto ao resto, do levantamento documental, foi essencialmente da Torre do Tombo − teve os seus desafios burocráticos, mas funciona e convido as pessoas a irem − da Hemeroteca de Lisboa e, também, da minha biblioteca de bairro, que é a Biblioteca de Penha de França. Tenho muitos livros sobre o tema e fui comprando mais. Já escrevo não só sobre música portuguesa, mas música popular desde 2011, mais ao menos, e, portanto, há artigos que já ia escrevendo e fui recuperar. Acabou por ser este o processo. Isto, inicialmente, foi publicado como fascículos no Observador porque queria recuperar essa prática do jornalismo que se perdeu um pouco, mas antigamente havia muito: o próprio Almeida Garrett fazia isso, entre outros. Na minha cabeça já ia resultar num livro não só sobre 71, mas sobre música portuguesa no geral, daquele período, mas com ecos evidentes, hoje.

Um dos aspectos que aborda no livro é a vinda em massa das pessoas do campo, das zonas rurais para Lisboa. De que forma isso transformou a música popular e a própria juventude?
Há, digamos, uma herança que vem não só do êxodo rural, que ocorre há décadas e, na altura, já ocorria, mas há uma herança musical portuguesa de uma suposta genuinidade, assente no camponês. É, portanto, uma genuinidade musical, porque há quem acredite que é mesmo genuína como, por exemplo, o Fernando Lopes Graça e o Giacometti, que corriam as aldeias para fazerem gravações das “velhinhas”, como eles diziam. É tal e qual como o Tiago Pereira ainda faz, hoje em dia, no Música Portuguesa a Gostar dela Própria. É, portanto, um discurso que persiste e que é válido, e isso influencia, de facto, a música, porque não só estas pessoas estavam a vir do campo para a cidade, como o próprio português considerava que para se sentir representado, digamos, na sua portugalidade, deveria haver algum cheirinho a alecrim, alguma coisa que remetesse ao campo. Isso é muito curioso e é algo que continua a persistir na música hoje em dia, basta ver as edições do Festival da Canção. Repentinamente, todas as músicas têm adufes por qualquer razão. Isso são coisas cíclicas, e esta questão da canção portuguesa ter uma origem remota no campo é algo que persiste até hoje, estando já evidente em 1971, mais particularmente nos casos do Quim Barreiros e Paco Bandeira.

Capa do livro ( ed. Zigurate) / DR

O seu livro aborda a música popular portuguesa como reflexo, também, de uma abertura da sociedade que acabou por receber o 25 de Abril. Mas uma parte do referido nacional-cançonetismo passou a ser visto como, também, pró-regime ditatorial, havendo aí uma cisão. Mas haveria diferenças entre este nacional-cançonetismo e as canções mesmo de raiz popular, dos campos?
Há várias coisas que se sucedem neste período. Acontece que havia, nos meios de comunicação, uma série de jornalistas recém-formados, jornalistas que foram recém-formados durante a sucessão de crises académicas que houve neste período. Sobretudo os de música, eram todos absolutamente alinhados à esquerda, e são pessoas que só conheciam, desde a sua nascença, a ditadura. Eram pessoas que queriam, desesperadamente, sair da ditadura e, portanto, acreditava-se que a música teria uma capacidade funcional de derrubar a ditadura. Para eles, não fazia qualquer sentido haver uma canção sobre amor ou sobre a Ericeira − o Gabriel Cardoso canta sobre a Ericeira − e coisas que tais. Eles acreditavam, veementemente, que o povo não tinha capacidade para escolher as próprias músicas, e que as pessoas deviam ouvir apenas canções de intervenção porque levaria ao derrube da ditadura. É um pensamento que hoje, para nós, não faz sentido, mas se nos metermos nos pés desses jornalistas de então, percebemos que há algo racional nisso.

Em relação ao nacional-cançonetismo, foi um termo que acabou por pegar, foi cunhado por um desses mesmos jornalistas, o João Paulo Guerra, no suplemento do Diário de Lisboa. Hoje em dia, na musicologia, é um termos que temos de dizer sempre “dito” ou “suposto” porque chegou-se à conclusão que, de facto, não existe um género “nacional-cançonetismo”. Havia era uma série de cantores que se formaram em torno da Emissora Nacional, podemos dizer que havia um estilo de canto, um estilo de composição, mas não havia, em si, o nacional-cançonetismo. Se virmos um exemplo mais evidente, talvez seja a “Desfolhada”, da Simone de Oliveira, que vem da mesma escola e está a cantar, “quem faz um filho, fá-lo por gosto”. Obviamente, portanto, que essas canções desempenharam um papel para derrubar um certo conservadorismo de costumes.

“Ary dos Santos, em si, também é uma figura muito controversa, se formos a ver. É alguém no final dos anos 60, início de 70, mais ou menos assumidamente homossexual − dentro do possível para não ser preso − militante clandestino do Partido Comunista Português, e depois trabalhava numa agência de publicidade. É um homem cheio de contradições que vem de uma família aristocrática, como o próprio dizia, mas depois queria cantar para o povo.”

Essa frase da “Desfolhada”, que venceu o Festival da Canção em 69, acabou por ficar na história da música nacional. A vitória da “Menina” da Tonicha, que venceu o Festival de 71, não foi bem vista como vencedora pela elite musical.
Exactamente, por causa desta nossa conversa. Eles julgavam, e com alguma razão até − falo dos jornalistas e comentadores da época − que a canção estava muito associada ao campo e estava muito associada, também, ao nacional-cançonetismo, estava com um pé dentro e fora de água. Isso irritou-os porque queriam algo que fosse mais frontalmente contra o regime, mais frontalmente representante da nova geração, como era o Paulo de Carvalho e o Fernando Tordo, o segundo e o terceiro lugar.

Achei curioso porque a letra é da autoria do próprio Ary dos Santos, foi ele que a escreveu.
O Ary dos Santos, em si, também é uma figura muito controversa, se formos a ver. É alguém no final dos anos 60, início de 70, mais ou menos assumidamente homossexual − dentro do possível para não ser preso − militante clandestino do Partido Comunista Português, e depois trabalhava numa agência de publicidade. É um homem cheio de contradições que vem de uma família aristocrática, como o próprio dizia, mas depois queria cantar para o povo. Foi uma coisa que também quis falar no meu livro, que não é tudo preto-no-branco, não é tudo fascistas e comunistas, há uma série de áreas cinzentas. Também não é tudo canções de protesto: há jazz, há pop, há canções românticas e, felizmente, a nossa geração, hoje, sabe celebrar melhor a diversidade da música.

“Houve um certo apagamento do rock português, com a atenuante de que o rock, no geral, é composto por homens e todos tinham de passar pela guerra colonial. Isso foi um factor determinante para não haver um rock sólido português que representasse a revolução, antes do 25 de Abril, ou depois.”

Sérgio Godinho, Zeca Afonso e José Mário Branco preparam os seus discos no estrangeiro, em Paris. Mas que influência acabaram por ter, na altura, para os jovens de cá?
O José Afonso, tirando certas canções como os “Vampiros”, sempre conseguiu ultrapassar a censura porque também tinha uma poesia que assim o permitia, salvo algumas excepções como os “Vampiros”, como disse. Quando o José Afonso vai a Paris gravar, numa altura em que já José Mário Branco e Sérgio Godinho já tinham gravado, vai pela Orpheu, que era uma grande editora que tinha essa capacidade de, não digo ludibriar o regime, mas conseguir sempre dar a volta à coisa, fazendo com que os discos fossem sempre editados. Esses três discos, em particular, foram grandes sucessos de vendas. O impacto cá, portanto, foi imediato, de tal forma que temos músicos portugueses de cá − foi algo que me surpreendeu na investigação − furiosos com estes discos porque, de repente, ganharam uns prémios, estes tipos que nunca ninguém ouviu falar. Estou a falar do Sérgio Godinho e José Mário Branco que estão emigrados, ganharam uns prémios, estão nos tops de vendas, e temos o Fernando Tordo, o próprio Ary dos Santos, o Paulo de Carvalho, a dizer que a música é horrível, que eles não sabem cantar, que eles não sabem fazer arranjos. Obviamente que ninguém diria nada disto depois do 25 de Abril.

Esses álbuns representam o impacto imediato no sucesso de vendas que tiveram, representam uma vontade do José Mário Branco dar um passo em frente na música portuguesa, de dar novos arranjos, uma coisa que ele chamava encenação sonora: no fundo, é criar imagens em volta das canções como, por exemplo, no clássico da “Grândola”, aquela imagem dos homens no campo alentejano, no fundo é isso. Em relação à censura, referir que, de facto, o José Mário Branco e o José Afonso foram sempre vendidos, mas o disco do Sérgio Godinho, o “Sobreviventes”, foi logo apreendido em 72. Não sei porquê, mas foi julgado muito mais subversivo, e há aqui uma razão histórica: foi imposto um exame prévio aos discos no início de 72. Antes de 72 não havia censura aos discos. A pessoa podia lançar o disco e, o máximo que acontecia, era a PIDE ir às lojas e tirar os discos, como o caso do Quarteto 1111 e muitos outros. A partir de 72, para uma pessoa editar, tinha de enviar à Comissão da Censura as faixas e a respectiva letra: inclusive, tinham um gira-discos para ouvir a música. Isto muda um bocado o paradigma e daí a relevância, também, de 71. A censura endureceu e não houve outro 71. Os anos de 72, 73 e 74 não tiveram a mesma relevância musical de 71 devido a este caso da censura.

Como é que tudo isto ia borbulhando debaixo de uma ditadura? A primavera marcelista é suficiente para o explicar?
Eles arrependeram-se. Li cartas muito interessantes na Torre do Tombo, sobretudo quando chega ao final do ano. Trata-se do grande período de vendas de discos de sempre, e o Cantigas de Maio é editado perto do Natal. Até hoje é um período de grande venda de discos. Mas o que se constatou é que aqueles discos começam a chegar ao topo e eles não estavam à espera, não sabiam quem eram aquelas pessoas, tirando o José Afonso. Junto a esta conversa, também, o Adriano Correia de Oliveira, injustamente esquecido, que tinha um sucesso da mesma dimensão que estes, e relembro o álbum “Gente de aqui e de agora”, também um grande sucesso de vendas. Mas dentro do regime começaram a trocar informações, a dizer que tinha de haver alguma alteração e, de facto, houve, então, o tal Exame Prévio que decidiram aplicar. Mandaram cartas a todas as editoras a dizer que a partir de agora há Exame Prévio, senão, o próprio editor corria o risco de ser preso.

O Francisco Fanhais foi triplamente censurado: foi expulso do catolicismo, foi expulso da escola onde dava aulas, e foi proibido de cantar em público. Houve, portanto, uma série de medidas em que actuaram, imediatamente. Posso dizer só mais um caso: a própria rádio foi um meio de comunicação muito importante neste período para difundir estas canções. O Adelino Gomes − felizmente, foi ao lançamento do meu livro, fiquei muito feliz, nunca o tinha conhecido pessoalmente − fez um comentário mais arrojado no programa O tempo Zip, no ar, e, depois, o João Paulo Guerra, o mesmo do nacional-cançonetismo, replicou esse comentário noutro programa. Lá está, a censura reparou nos discos e obrigou todas as rádios a terem, também, uma censura prévia.

“O Francisco Fanhais foi triplamente censurado: foi expulso do catolicismo, foi expulso da escola onde dava aulas, e foi proibido de cantar em público.”

No Festival da Canção de 73 há um exemplo paradigmático, a vitória da “Tourada” e até a participação contínua, ou quase contínua, do Ary nos festivais. Como olha para este fenómeno? Explica-se só pelo facto da censura ter estado desatenta ou não ter sabido interpretar a metáfora da letra?
Não me posso meter nos pés de alguém que censurava, mas se formos a ver, temos aqui o Fernando Tordo, alguém que já era absolutamente estabelecido no festival, já era uma figura pop, e temos o Ary dos Santos que é o letrista mais célebre do festival. À partida, portanto, não haveria censura a um tipo de canções que viessem destas pessoas e o próprio Ary que já tinha ganho, a minha explicação é essa. Se fosse o José Afonso, obviamente iriam ouvir com mais atenção a música, ou o Adriano Correia de Oliveira. Para lhe dar um exemplo, o Adriano Correia de Oliveira foi convidado para ir ao festival anterior, em 72, por exemplo, e eles disseram logo que não. Não, ele não entra, portanto, já havia uma selecção prévia das pessoas que entravam no festival.

Luís Freitas Branco / DR

O movimento cultural Ié Ié, no caso específico português, expressava-se através dos conjuntos de rock, como se chamavam na altura. Numa primeira fase, até foram acolhidos pelo regime como forma de controlo da juventude, até pela organização de concursos. Mas sendo o rock, na altura, uma das expressões da rebeldia, irreverência e contestação a nível internacional, acha que, em Portugal, o rock dessa altura acabou por ficar acantonado?
Completamente. Estamos a festejar os 50 anos do 25 de Abril e estamos só a recordar as mesmas canções e só a falar do José Mário Branco, do José Afonso − que são pessoas que obviamente adoro, basta ler o livro, e que fizeram canções importantes − e não estamos a falar de jazz, de pop, canção ligeira e de rock. Isso Evidencia que houve, de facto, uma espécie de apagamento para um rock que existia, e a primavera marcelista foi especialmente cruel com o rock português.

Repare, em 71 só foram editados dois discos de rock, e o rock deveria ser o líder natural da juventude, devia ser a música da rebeldia, e só há dois discos de rock: um por iniciativa própria do José Cid e, depois, o próprio disco que seria o mais emblemático de 71, de rock, que tem uma história muito curiosa. Falo do EP da Maria Teresa Horta, poetisa: ela lançou o livro de poemas “Minha Senhora de Mim” e o disco ao mesmo tempo. Foi anunciado na altura que seria o grande lançamento de rock do ano: “Agora sim, vamos ter um grande disco de rock, com uma das nossas poetisas, com o Quarteto 1111 a tocar.” O que é que aconteceu, como prova desta crueldade de que estou a falar? O disco desapareceu das lojas, imediatamente, e a Teresa Paula Brito, que é a cantora do disco, cantou uma única vez no Coliseu dos Recreios estas músicas e foi apupada pelo público que considerou as canções demasiado sensuais. Saiu em lágrimas do palco, nunca mais ouvimos falar dela, e a Maria Teresa Horta, como sabemos, foi agredida por três homens na rua, imediatamente após, e já estava a escrever as Novas Cartas Portuguesas.

Esta é uma história, entre tantas, que demonstra que houve um certo apagamento do rock português, com a atenuante de que o rock, no geral, é composto por homens e todos tinham de passar pela guerra colonial. Isso foi um factor determinante para não haver um rock sólido português que representasse a revolução, antes do 25 de Abril, ou depois. Mas não havia aposta das editoras, não havia mercado, não havia um circuito de concertos, era praticamente impossível fazerem o que fosse. E não havia abertura da própria esquerda, convém lembrar isso, nos próprios críticos. Não havia abertura para o rock.

Por estar associado aos Estados Unidos!
Claro.

Convém lembrar que os então denominados conjuntos eram compostos por ainda rapazes adolescentes e, quando chegava a altura de irem para a tropa ou ultramar, os conjuntos acabavam.
Exactamente!

Em 71, esteve cá o Miles Davis.
É verdade.

No festival Cascais Jazz.
Isso, para já, é fácil de responder. O regime não fazia a mínima ideia de quem era o Miles Davis. Voltando atrás e já vou ao Miles Davis, o Quarteto 1111 percebe, por exemplo, em 70, que se cantar em inglês pode fazer o que quiser. Há uma banda em Vilar de Mouros, em 71, que canta com uma banda portuguesa, e a certa altura diz, “do you like Marijuana?” e todos dizem, “Ehhhh”. O censor não sabia inglês, aliás, poucas pessoas sabiam inglês, na verdade. Eles não sabiam, portanto, quem era o Miles Davis. O que acontece é que havia o Newport Jazz Festival, num circuito europeu, e o Luís Vilas Boas e o João Braga conseguiram deslocá-lo, quase por milagre, para Lisboa, e apanha o Miles Davis, de facto, numa altura, o mais revolucionária possível. Tinha acabado de editar o Bitches Brew, um álbum absolutamente revolucionário, e depois chega cá e tem uma série de episódios rocambolescos que são mais ou menos conhecidos: exige o pugilista branco para lhe bater, quer o chofer louro branco para o guiar de um lado para o outro, e ele vê cabo-verdianos a fazerem obras na rua, que era algo muito comum na altura. Estima-se que havia 15 mil cabo-verdianos só em Lisboa, trabalhavam quase todos na construção, e pergunta ao João Braga: “Então vocês ainda têm escravos?”. Ele estava evidentemente muito irritado por estar cá, não que tenha protestado em palco, isso calhou a outro, ao Charlie Haden, que se atreveu a fazer uma dedicatória em palco aos movimentos de libertação africanos, e aí o regime não podia fazer nada, foi ao vivo, em directo e está gravado.

Mas já em Vilar de Mouros, de 71, o Elton John chamava a atenção da PIDE.
Estavam atrás do Elton John, estavam atrás dos músicos todos. Acho que o Vilar de Mouros apanhou um PIDE especialmente pacato, e é muito divertido acompanhar a aventura dele no festival de rock. Ele considera logo o Elton John um excesso, uma estrela, e se acreditarmos na descrição do PIDE – que não é verdadeira, segundo pessoas com quem falei depois -, foi o maior festival de drogas e orgias que houve em Portugal. Penso que há, no PIDE, uma dose de exagero, até porque os próprios portugueses não saberiam como se comportar num festival de rock, e consta que estava a maioria em grande silêncio. Claro que devia haver algumas drogas, mas bastante comedidas, com certeza.

O festival seria possível em Lisboa?
Tenho duas teorias. A primeira é que não. Em Lisboa nunca seria possível. Há provas disso. O José Cid tentou fazer no Estoril – pronto, na Grande Lisboa – um pré-Vilar de Mouros, por assim dizer, um festival já inspirado nos moldes Woodstock. Estava tudo organizadinho, as bandas iam todas – o meu avô, inclusive, ia tocar, porque o meu avô tinha uma banda Ié Ié na altura, até era conhecida [Os Claves] – e apareceu a polícia de choque, de Oeiras, e a cavalo entraram pelo recinto dentro a bater em toda a gente. Em Lisboa, portanto, isto não seria possível. Eles consideraram, certamente, que Vilar de Mouros ninguém sabia onde era, o que era verdade – a aldeia era completamente desconhecida, no Minho – e depois há uma segunda razão muito importante, que é esquecida: não há nenhum cantor de protesto em Vilar de Mouros, em 71, e isso faz toda a diferença. O José Afonso, que era proibido de cantar, o José Jorge Letria, o Francisco Fanhais e o Manuel Freire eram pessoas que, normalmente, poderiam ter sido convidadas. Até os jornalistas da altura diziam: “Não percebo porque não vêm cá os nossos músicos de intervenção.” Mas acho que foi inteligência do Doutor Barge, de não convidar as pessoas que iam impedir a realização do festival.

Mas aqui já é notória uma juventude que já sabia como ultrapassar o anacronismo do antigo regime.
Estamos a falar da Primavera Marcelista. O regime percebe a inevitabilidade de se abrir um bocadinho, e começa a abrir-se desde o final da década de 60. Há, portanto, uma progressiva abertura, se quisermos, uma permissividade à expressão cultural, sempre com a censura, e isso leva a que esta nova geração que, ainda por cima, tinha já muitos licenciados, algum dinheiro – havia algum, não vamos exagerar, não era um milagre económico, mas havia algum progresso económico nesta primavera marcelista – se abrisse mais. Havia uma classe média jovem que já vinha desde o período Ié Ié. Porém, era tudo uma dificuldade, não tenhamos ilusões. A Primavera Marcelista, em si, era uma ilusão, não podiam estar cinco pessoas juntas na rua. Tudo, de certa forma, prosseguia igual. Como Marcelo Caetano dizia, “estamos a fazer uma abertura, mas com muita cautela, sem pressas”.

Houve alguém com quem gostaria de falar, para este livro, e não conseguiu?
Sim, três, na verdade. Uma, é o Elton John. Já o estou a tentar a entrevistar há muitos anos porque, na verdade, só houve duas bandas estrangeiras: Manfred Mann, que entrevistei já duas vezes sobre Vilar de Mouros, e Elton John, que nunca consegui. É possível que ele não se lembre, também, apesar que eu duvide: aquilo deve ter sido uma coisa muito estranha para ele. Gostaria de ter entrevistado a Maria Teresa Horta, e o José Duarte do 5 Minutos de Jazz, que entretanto já faleceu.

Acha que estas histórias estão bem preservadas ou nem por isso?
Não! Basta ver todos os eventos que já estão marcados agora para Abril e que já estão a acontecer, e é como lhe digo, temos eventos dedicados só à música de intervenção de meia dúzia de pessoas, não há menções ao rock, não há menções ao pop, não há menções à canção de independência de África. Como é possível não haver canções angolanas, guineenses, moçambicanas, não há mulheres no canto de intervenção. Falei sobre duas, mais profundamente, neste livro, a Ana Maria Teodósio e Rita Olivais, mas havia mulheres no canto de intervenção, e quero falar um pouco disso neste livro, mas também na minha investigação académica, porque sou mestrando em Ciências Musicais, que há um paradigma do que é a canção de protesto em Portugal. Há um cânone e temos de derrubar um bocado isso, não são só homens de viola e bigode que foram célebres no PREC, temos de derrubar um bocadinho esta ideia porque a canção não pode estar estagnada. A canção tem de estar em movimento, tem de circular, senão é tudo um exercício de nostalgia.

Quanto a África temos o próprio Bonga, o Duo Ouro Negro, como já falámos, mas muitos mais.
Esses eram, evidentemente, muito seguidos de muito perto pela PIDE, portanto, estamos em dez anos de guerra colonial, o Marcelo Caetano tinha preocupação com todas as expressões culturais que fizessem qualquer referência à guerra colonial, portanto, este era o tópico mais quente, sem qualquer dúvida. É muito curioso que, neste ano, o grupo português mais famoso que era, sem nenhuma dúvida, o Duo Ouro Negro, se tivesse atrevido a fazer este colossal grito de independência, como foi o Blackground, com o Bonga na percussão, com o Vum Vum nas letras, e uma banda de rock progressiva a acompanhar. Um disco completamente inaudito que clamava à libertação mas, claro, não frontalmente. É curioso que o próprio Duo Ouro Negro, até hoje, é um bocado visto, como no caso da Amália, como muito complacente com aquele período: parece-me uma perspectiva errada.

Além do Duo Ouro Negro, há uma relevância da Casa dos Estudantes do Império, lugar onde ficavam os alunos das colónias ultramarinas, como se dizia, então. Esses alunos seriam, mais tarde, os líderes destes países: entre eles havia poetas e estes poetas, com músicos como o Bonga, o Rui Mingas, cantavam, isso sim, canções declaradamente de independência destes povos, que só puderam ser editadas depois do 25 de Abril. O próprio Bonga percebe que está a ser excessivamente perseguido em 71 e decide saltar para Holanda, onde havia a diáspora cabo-verdiana, que é outra história interessantíssima. Edita lá o seu álbum solo e esse sim, muito condenatório de tudo o que acontecia em Portugal. Cá nunca se ouviu esse disco como é óbvio, até depois do 25 de Abril. Havia, portanto, um papel evidente da canção independentista africana, ou da canção pop africana, se quisermos, que está muito esquecido. Se formos a ver, como lhe disse, albergavam o tópico mais quente da época e estas histórias têm de ser relembradas, a meu ver.

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