Entrevista. Luís Miguel Cintra: “Deveria haver um projecto de sociedade diferente na cabeça dos políticos”

por Paulo Portugal,    28 Maio, 2022
Entrevista. Luís Miguel Cintra: “Deveria haver um projecto de sociedade diferente na cabeça dos políticos”
Luís Miguel Cintra (Cannes, 2018) / Fotografia de Paulo Portugal
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Luís Miguel Cintra, o protagonista de “A Ilha dos Amores”, subiu de novo ao palco, em 2018 em Cannes, para a apresentar o filme de Paulo Rocha. Isto 40 anos depois da sua passagem na Seleção Oficial. Agora na Cannes Classics, em cópia restaurada, devidamente acompanhado por José Manuel Costa, director da Cinemateca.

O nosso encontro ocorreu depois da apresentação do clássico de 1982 e da evocação que o actor fez do seu trabalho com Paulo Rocha, mas também da sua carreira com Manoel de Oliveira. Pois, percebe-se que é algo difícil de sair dele. Mesmo agora, com as limitações devido à doença de Parkinson que há algum tempo lhe limita os movimentos.

“Eu já desisti de ser actor”, começa por se queixar o actor numa conversa com vista para a marina, em Cannes. “Acho que o actor tem de ter os seus instrumentos, o corpo, num estado capaz de corresponder ao que é preciso fazer”, insiste. “Tenho muita dificuldade de conter o próprio movimento, equilíbrio. A cabeça funciona bem, graças a deus, mas o resto é um bocadinho difícil”.

Sim, a cabeça funciona muito bem. Como se pode ver no vídeo com a sua apresentação que gravamos em 2018.

Sobre o filme, mostra extremo contentamento por “o que está ali foi feito com muito pouco dinheiro”, sobretudo “comparado com o dinheiro que é preciso para fazer as mesmas coisas dentro do circuito comercial”. Por isso, claro, Oliveira é inevitável. “Tiro-lhe o chapéu [ao Manoel de Oliveira], porque durante muito tempo conseguiu furar a barreira do mercado e ser sempre muito fiel a si próprio.” Por isso o lamento: “Hoje tive muitas saudades dele”. Já Paulo Rocha motiva uma recordação diferente: “O Paulo era mais fechado em si próprio, menos comunicativo. Mas foram realmente duas pessoas importantíssimas para mim. Mesmo que muito diferentes.” A diferença, segundo ele, regista-se no seguinte: “Quem tiver visto com mais frieza as minhas participações nos filmes dos dois, percebe que nos filmes do Paulo a câmara vem sempre atrás de mim; já nos filmes do Oliveira, a câmara está sempre à minha frente. No caso do Paulo Rocha é como se ele estivesse connosco a construir a imagem. Por isso, acompanha o andar da pessoa pela paisagem. No Oliveira, a paisagem somos nós. O Paulo convida mais as pessoas a entrar no universo, no imaginário dele. O Manoel de Oliveira serve-se da câmara para revelar e apresentar às pessoas alguma coisa do culto.“ Ou seja, se num lado há a visão espiritual de Manoel de Oliveira; do outro, há o naturalismo de Paulo Rocha.

“O Manoel de Oliveira é muito mais espiritual. E humanista, ao passo que o Paulo é muito diferente. Explora mais os meandros da personalidade. Ele foi assistente do Jean Renoir (no filme “O Cabo da Guerra” (1962)). E há uma maneira de olhar para o ser humano que tem a ver com isso. Há uma familiaridade, uma naturalidade própria. Por exemplo, a cena com o gatinho, no final. Aquilo podia ser uma cena filmada pelo Renoir. São coisas próximas de nós. Mas que ele transforma numa espécie de sonhos míticos. Isso é muito interessante. Realmente, o cinema português é um outro mundo. Temos de nos adaptar e não lamentar.”

Sobre o tema arte e comércio não é difícil colher a sua visão. Mesmo que se mostre “um bocado céptico em relação a esse assunto”. Ainda assim, acha que “o problema é da sociedade inteira. E da mentalidade com que as pessoas vão ao espectáculo. Deveria haver um projecto de sociedade diferente na cabeça dos políticos, para se fazer alguma transformação. Mas não há nada disso. Neste momento, é-me completamente indiferente se há ou não reconhecimento pelo nosso trabalho.” Luís Miguel que tem sabido trabalhar com e sem apoios. Mesmo depois do encerramento do Teatro da Cornucópia em 2016 (fundado em 1973, com Jorge Silva Melo).

“Sabe, apesar de tudo, fomos existindo e fazendo coisas. A partir de uma certa altura, começámos a notar que a política oficial em relação às artes era cada vez mais evidente. Só como complemento para abrilhantar a festa e para publicidade de outras coisas. Não tem assim tanto interesse. Se não os programas de educação seriam diferentes. Assim tornam-se numa formação de funcionários. Para quê? Para fazer funcionar o sistema com melhor perfeição possível.“, afirma ainda Luís Miguel Cintra.

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