Entrevista. Luís Salgado: “A coisa mais punk que temos no Maus Hábitos é a Beyoncé Fest”
Luís Salgado, o Salgado da famosa festa “O Salgado Faz Anos Fest”, é o programador do Maus Hábitos desde 2014 e após duas festas de aniversário que deram início a um ícone portuense. Mas é, antes disso, de um músico que falamos.
O percurso iniciado, como tantos, na adolescência, em bandas de garagem — “comecei como todos os músicos, com bandas de liceu, cenas punk, punk rock, com 15, 16 anos, bandas de garagem, a fazer parvoíces” — teve um pequeno desvio profissional pela educação de infância: “fui educador de infância, essa foi a minha primeira licenciatura”, mas a actividade musical foi sempre um contínuo — “paralelamente a exercer esta profissão — exerci para aí oito anos, como diretor pedagógico — fui sempre tendo bandas”.
Até que Luis, natural de Tomar, rumou a norte, quando entendeu que “queria ser músico mesmo”. “Assim, de repente, abandonei e fui estudar produção musical para Castelo Branco e depois, na continuação natural dessa licenciatura, para o mestrado em Geração Automática de Música e Sound Design, na FEUP (Porto)”.
Ao longo deste trajecto, o projeto mais constante é o ainda activo Stereoboy, de que nos fala com entusiasmo: “Stereo tem a ver com haver sempre dois canais, um deles sou eu e o outro muda sempre: pode ser uma pessoa, uma banda, uma orquestra. O que é um suicídio comercial [risos] porque a cada vez que gravas um disco é uma banda nova. A sonoridade também muda, então o trabalho passa a apelar a um público novo. E por norma, é radicalmente diferente do anterior, por isso trabalha-se mesmo tudo como se fosse uma banda nova. Isto dá um gozo… que não te fartas daquilo” — uma forma de trabalhar e um ecletismo que talvez sejam também constituintes daquilo que faz um bom programador: “no fundo gosto de muita coisa. Stereoboy começou por ser música electrónica baseada num universo infantil. Depois passou para coisas acústicas, canções de amor, completamente pop, depois foi um disco de guitarras, muito shoegaze, muito noise, o último é electrónica com dois bateristas, muito mais experimental, com drones. O próximo se calhar vai ter um bocadinho de ligação a este, mas rapidamente eu poderia fazer hip hop, se me apetecesse, ou fado, etc.”.
Salgado chega à programação do Maus Hábitos através do cruzamento de vários destes caminhos, quase por “acidente”, como diz. “Vim estudar para cá e a minha tese de mestrado era a identidade sonora do Canal 180. Assim, passei a trabalhar neste canal para perceber como é que aquilo funcionava. Tanto pelo facto de ser músico, como pelo de tirar cursos ligados à música ou de trabalhar no Canal 180, fizeram com que eu, naturalmente, conhecesse muitos músicos”.
“Antes ouvias um disco dez vezes, cem vezes. Agora, conheces uma música ou duas. Se vires uma playlist de um puto vês que ele conhece muita coisa, mas nada aprofundado. Tudo é muito rápido. Hoje não há paciência, os assuntos não duram mais de um dia. Logo, se a vida é tão rápida, é natural que os putos vivam também assim. É outro “ser cultural”, diferente do das pessoas da minha idade”.”
Luís Salgado
E é neste contexto que surge uma festa de aniversário: “já conhecia o Maus Hábitos, já tinha tocado cá com bandas, numa altura em que fazia um número redondo de anos, estava à mesa com amigos e o pessoal, a gozar um bocado comigo, tipo bullying quase, disse “faz um festival” e eu levei aquilo um bocado a mal e disse “se calhar até faço”. Então decidi fazer a festa de aniversário no Maus Hábitos. Fiz a primeira, em 2012, convidei meia dúzia de amigos músicos para vir tocar e correu muito bem, meteu para aí 400 pessoas. Correu tão bem que no ano seguinte desafiaram-me a fazer outra vez. Fiz e nesse ano já vieram 1000 pessoas. Isto foi em Janeiro. Em Abril o Maus Hábitos chamou-me, reuniram comigo e perguntaram se eu não conseguia fazer isto todos os fins-de-semana.” Apesar de algumas incertezas iniciais, havia duas coisas que estavam já presentes na sua cabeça: “duas coisas fundamentais: como é que eu gostaria de me sentir quando fosse a um espaço, enquanto público, e como é que eu gostaria de me sentir como músico, como é que gostaria de ser recebido. Tinha essas duas bitolas”.
Ao longo destes oito anos, há um espaço e uma cidade que mudaram.
“Abriram muito mais espaços, o que é sinal de que há público interessante e interessado. Neste momento há mais espaços para fazer concertos no Porto do que em Lisboa. E estão a abrir mais, constantemente. A cidade está a fervilhar, há muita vontade de sair e ver coisas. Melhorou muito, tudo.”
Mudou também o público: ”Antes ouvias um disco dez vezes, cem vezes. Agora, conheces uma música ou duas. Se vires uma playlist de um puto vês que ele conhece muita coisa, mas nada aprofundado. Tudo é muito rápido. Hoje não há paciência, os assuntos não duram mais de um dia. Logo, se a vida é tão rápida, é natural que os putos vivam também assim. É outro “ser cultural”, diferente do das pessoas da minha idade”. O que comporta algumas diferenças: “um aspecto positivo é que há uma série de coisas que deixaram de ser tão estranhas. Seres criativo já não é tão estranho. Já não se procura tanto o que já se conhece, mas mais o que surpreende. Há muito mais informação… eu comecei a ouvir música nos anos 80, ouviamos o que os amigos nos passavam, mas hoje tem-se acesso a tudo. E também não se é tão julgado. Aliás, és julgado se estiveres engavetado — dizem-te “abre os horizontes, existem mais coisas no mundo!”.”
Isto traduz-se num maior ecletismo e numa maior abertura: “olhas para o telemóvel de um puto e encontras desde Death Metal a Beyoncé. No meu tempo isto não era possível. Eu tenho punks no Beyonce Fest. Tenho tias nas cenas punk. Há fotografias de punks a beber cocktails. Eu gosto mais assim. A coisa mais punk que nós temos aqui é a Beyoncé Fest. Um gajo ter coragem de fazer seis horas só de Beyoncé, isto é a coisa mais punk do mundo — porque punk é uma atitude, é as pessoas serem elas próprias. Acho que hoje as pessoas são muito mais elas próprias. Estão muito menos permeáveis ao que os outros pensam”.
Uma liberdade que não é só estética: “há uma série de questões em que as pessoas são mais livres, são muito mais abertas. Eu estou aqui há oito anos e noto diferenças. Por exemplo, lembro-me de termos aqui festas LGBT em que as pessoas vinham com os saltos altos e as pinturas na mochila. Chegavam aqui, iam à casa de banho meia hora e saiam de lá todas montadas. Agora já vêm todas montadas. Isto é fixe, quer dizer que já podem vir de sua casa até ao Maus Hábitos sem ninguém as chatear na rua. No outro dia entrou-me aqui um gajo em ténis, cuecas e purpurinas — este gajo veio de casa assim. A cidade mudou, não é? Isto é fixe.”
“Comecei a ouvir música nos anos 80, ouvíamos o que os amigos nos passavam, mas hoje tem-se acesso a tudo. E também não se é tão julgado. Aliás, tu és julgado, se estiveres engavetado — dizem-te “abre os horizontes, existem mais coisas no mundo!”.”
Luís Salgado
Uma liberdade para a qual o Maus Hábitos sempre procurou ser lugar: “O Maus Hábitos abriu em 2001, já era isto na altura, já estava nesse lugar, mas as pessoas se calhar eram um bocadinho diferentes. Se calhar para a generalidade das pessoas era um sítio mais estranho. Hoje é um sítio normal, mas a sociedade é que mudou”.
Entretanto, a pegada deste “espaço de intervenção cultural” estendeu-se a outros territórios e contextos, para a criação de novos ciclos e conceitos.
“O Maus Hábitos foi crescendo e houve, a determinada altura, uma sensação de que o seu espaço físico era pequeno. Começámos a sentir que tinhamos de sair para fora de portas. Deste contexto nascem os Concertos de Bolso, na Feira do Livro do Porto, o alargamento do Maus Hábitos para Lisboa e Vila Real, o circuito Supernova e, mais recentemente, o Sons em Palco. Fruto dessa vontade de sair, neste momento temos várias iniciativas que acontecem fora de portas sempre com uma perspectiva de circular com bandas”.
O circuito Supernova foi a primeira destas saídas. “Começou por acontecer apenas aqui no Maus Hábitos, durante dois anos, todos os meses, no mesmo formato: três bandas, uma cabeça de cartaz e duas emergentes” até que começou a sentir-se a necessidade de crescer e circular. “Começámos por ver que salas no país é que haveria semelhantes à nossa, com programação própria, de dimensão pequena ou média, que já trabalhassem o público com uma preocupação de apresentar nova música portuguesa. Que tivessem pessoas curiosas para ver nova música portuguesa e que tivessem minimamente condições para apresentar espectáculos. Neste momento são para aí quinze salas e queremos que sejam mais”.
“As programações não têm nada a ver com o meu gosto pessoal. Se eu programasse para o meu gosto pessoal já teria sido despedido. Programo para pessoas. Depois há contextos, e os contextos mudam.”
Luís Salgado
A proposta, que também parte de uma vontade de desenvolver actividade fora dos grandes centros — “eu sou de uma cidade de província — odeio a palavra “província, mas é a que temos — e sei o que é ter de me deslocar a Coimbra ou a Lisboa para ver concertos” — procura também capacitar as próprias salas que fazem parte do circuito: “mais numas do que outras, há uma mudança após o Supernova, no sentido em que alguma coisa mudou com esta ida lá, o desafio de programar, a exigência do público e dos próprios programadores. Depois a rede também funciona muito como forma de circular artistas até fora deste contexto. Ainda não acontece tanto como eu gostava, mas já vai acontecendo bastante.
No período mais complexo em termos de restrições decorrentes da pandemia, surgiram novos formatos: “os concertos de bolso, são um projeto que criámos para a Câmara Municipal do Porto, para a Feira do Livro. Aquilo que nos propuseram foi criar uma forma de apoiar os músicos do Porto através da programação dos concertos. O que eu tentei fazer foi, não fugindo ao contexto da Feira do Livro, tentar fazer a selecção o mais diversificada possível e, portanto, ir desde à música popular, ao hip hop, ao rock, ou a coisas mais experimentais, um bocado à semelhança do que se faz no Maus Hábitos. Tentei de certa maneira que houvesse alguma ligação à literatura, daí gostar muito de ter um palco na Feira do Livro, que vive muito da palavra, e poder ter propostas como a Ana Deus e outros projetos que passam muito pela poesia. Mas o desafio foi sobretudo perceber como é que naquele contexto muito específico conseguia meter projetos do Porto e projetos emergentes.”.
O Sons em Palco é uma evolução daquio que aconteceu também em reação às restrições Covid 19: “naquela altura, ou fechávamos, ou inventávamos um bocado. Houve uma fase em que só permitiam aos restaurantes estar abertos e com as mesas distanciadas. Então montámos a sala do restaurante e sobraram-nos uma série de mesas. Surgiu a ideia de montar as mesas na sala de espectáculos para, pelo menos, conseguir servir o mesmo número de pessoas. Depois foi só pensar que, estando ali um palco, poderiamos ter artistas a tocar, salvaguardando as devidas distâncias. O conceito foi evoluindo, passámos a fazer uma série de actividades a que chamámos “à mesa” — jazz à mesa, poesia à mesa, cinema à mesa, fado à mesa, punk à mesa, várias coisas… e havia um específico que era o “sons à mesa”. No início apenas para projetos de uma pessoa ou duas, depois começámos a programar também bandas. Quando abrimos os dois espaços novos (em Lisboa e Vila Real), eles já eram por defeito à mesa — eram todos no formato “café-concerto”, então levámos para lá esses conceitos. A partir de certa altura, deixou de precisar de ser à mesa, decidimos transformar isto em Sons em Palco e começámos a ter o apoio da Super Bock [parceiro também no circuito Supernova]. O ciclo tem um foco grande em coisas novas, projetos mais emergentes e também alguns já consolidados mas nunca nomes muito mainstream; muito grandes. É muito transversal, também, sem grandes barreiras estilísticas ou estéticas. Tem é de dar para circular. É uma rubrica que nos permite principalmente tentar que os projetos toquem nas três cidades, ou pelo menos em duas das três. Gosto particularmente da possibilidade de ter projetos internacionais porque posso faze-los circular por Vila Real, por exemplo, o que seria difícil fora deste contexto.”
“Recebo muitas maquetes, à volta de 300 por mês, com propostas de que muitas vezes gosto muito, mas frequentemente tenho de lhes responder “pá, para já não dá, deixa-me encontrar o contexto certo para encaixar isto.”
Luís Salgado
A palavra “contexto” aparece bastante no discurso de Luís Salgado, assim como a palavra “diversificado”, enquanto discorre acerca da sua prática.
“As programações não têm nada a ver com o meu gosto pessoal. Se eu programasse para o meu gosto pessoal já teria sido despedido. Programo para pessoas. Depois há contextos, e os contextos mudam. A Feira do Livro é uma coisa completamente diferente de programar um Salgado Faz Anos Fest, por exemplo. Como é diferente de programar uma coisa que estamos a fazer em Vila Real que é a Missa do Maus, uma coisa que começa às três da tarde, a um domingo, na relva. Eu recebo muitas maquetes, à volta de 300 por mês, com propostas de que muitas vezes gosto muito, mas frequentemente tenho de lhes responder “pá, para já não dá, deixa-me encontrar o contexto certo para encaixar isto”. Para as coisas acontecerem têm de ser interessantes e gerar interesse, tem de haver as duas coisas. E depois mete-las no contexto certo, caso contrário não é bom nem para a banda nem para o público”.
Aliada a esta preocupação, existe uma de equidade, que se revela quando o questionamos acerca da questão da diversidade: “vou-te contar o que se passa comigo, que acho que é o que se passa com vários programadores. A equidade é necessária. Nós sempre fomos super diversificados nos DJ Sets — aí nunca foi uma questão, foi sempre natural. Um caso em que não é natural é nos concertos. Ainda não é. Eu acho que é uma pescadinha de rabo na boca. Por exemplo, muitas vezes estou a definir o line up para um festival, a fazê-lo instintivamente, no fim olho e vejo que são só projetos de homens. Depois tenho de ter o exercício de dizer “não pode ser” — é o meu papel. Tenho uma filha com 18 anos. Eu quero que a minha filha vá ver um concerto e veja gajas a tocar e diga “eu também posso fazer isto, isto não é um mundo de homens, eu também posso formar uma banda”. Se não formos nós a fazer isto, vai ser sempre essa pescadinha de rabo na boca. Eu faço esse exercício, acho que os programadores devem fazer esse exercício. Se não houver esta preocupação, nunca haverá projetos em quantidade suficiente para se fazer um line up e aparecerem projetos femininos sem sequer termos de pensar nisso.”
O Maus Hábitos é hoje uma sala de espectáculos e casa de cultura (ou culturas) referência da cidade do Porto, com cerca de 70 eventos por mês que atravessam a música, o cinema, as artes plásticas e outras disciplinas. É também um lugar de criação que ultrapassa as barreiras do seu próprio espaço físico, com impactos substanciais em territórios de todo o país. A isto, nunca será alheia uma festa de aniversário surgida numa decisiva mesa de copos. Um projeto e um percurso que se faz, assim, de ideias e acidentes, num processo tentativa erro, pragmático — “não tenho propriamente um método” —, olhando tanto para a música como para as dinâmicas sociais que deixa apenas uma promessa: “não nos normalizamos”.