Entrevista. Makaya McCraven: “Quero poder tocar muitas pessoas e trazer-lhes momentos de paz e recuperação”
O músico norte-americano Makaya McCraven tem conquistado o seu espaço único no cruzamento entre música jazz de improvisação e hip hop. Exemplo disso é o seu mais recente álbum, o delicado e virtuoso In These Times, um dos álbuns mais bem cotados de 2022 e com motivos para tal.
No dia 20 de Novembro, subiu ao palco do Centro Cultural de Belém, em Lisboa, para aquele que foi a primeira vinda a Portugal, tendo passando, na véspera, pela Casa da Música, no Porto. Nele, revisitou diferentes fases da sua carreira, naquele que foi um dos concertos mais ansiados do Misty Fest. A seu lado, teve o grupo do trompetista inglês Matthew Halsall, que seguiria para o seu compromisso na Casa da Música no dia seguinte. Esta foi a oportunidade ideal para falarmos com o artista sobre a sua abordagem única à produção musical, criatividade, tecnologia e muitos outros temas, para além do próprio concerto, em jeito de antecipação, dado que o entrevistamos antes do espetáculo.
Tu trabalhas a partir de gravações ao vivo, editando-as e retrabalhando-as para lhes dar uma nova forma. Como é que encontras o equilíbrio certo entre improvisação ao vivo e trabalho de estúdio?
É realmente só uma sensação. Eu acho que a coisa principal, tanto quando actuo, improviso, produzo, corto coisas ou rearranjo, é ouvir — e ouvir bem. Depois é fazer julgamentos sobre aquilo que estou a ouvir, e depois ouvir ainda mais e de forma mais profunda para tentar entrar mais e mais dentro da música, para que possa complementar aquilo que se passa nela. E isso serve tanto quando estou a tentar encontrar o equilíbrio entre as gravações ao vivo e a manipulação em estúdio, como durante a improvisação ao vivo, quando estamos a actuar e a ouvir. É nessa altura que podemos realmente estar atentos e criar algo especial.
E como é que esse produto de estúdio é traduzido para uma performance ao vivo?
Então, se eu pego numa improvisação e a edito para criar uma forma a partir dela, basicamente essa forma torna-se no nosso veículo para a improvisação. Portanto agora, em vez de simplesmente improvisar livremente sem nenhuma ideia, eu peguei no material de origem e transformei-o mais ou menos numa canção que podemos tocar ou interpretar, como qualquer outra canção, seja um standard de jazz, uma versão de uma música pop ou uma versão instrumental de uma composição, como os músicos de jazz fazem com qualquer música. Eu sigo o processo de criar canções, melodias e temas que depois podemos tocar como se fossem qualquer outra canção que pudéssemos tocar.
A tua discografia é já bastante extensa. É fácil para ti criar? Sentes que a tua criatividade é um poço sem fundo?
Sim, eu penso na criatividade como uma prática; em mim, na minha música e na minha arte como uma prática. Por isso não é como reencher um poço de criatividade, mas sim refinar as minhas capacidades para continuar com a disciplina e a prática de criar. Isso não significa que, sempre que cries alguma coisa, vás adorá-la ou pensar que é uma obra de arte, mas continuas a criar. Depois pegas nas coisas que crias, refina-las e continuas a tentar usá-las para construir um acervo e a apresentá-las. Para mim, essa é a minha missão como artista: criar e construir um acervo [musical]. Apesar de às vezes não estar inspirado, não é apenas a inspiração que vai criar o trabalho, mas sim as capacidades, trabalho árduo e uma rotina ponderada na prática da forma de arte em que me encontro.
Então não é bem inspiração. A criatividade é como um músculo que se treina.
Sim, é parte do músculo. Mas sim, inspiração e essas coisas são reais. Eu noto que a criação das minhas canções favoritas que já fiz não demorou muito tempo. Não requereram um empurrão, simplesmente aconteceram num instante. Enquanto que há outras ocasiões em que ter uma simples ideia pode custar muito. Mas eu acho que a coisa que permanece verdadeira para mim é a consistência. É ser consistente e arriscar constantemente, sem receio de lançar as tuas ideias, pensamentos e coisas que estás a fazer para o mundo. Essa é a parte mais difícil de ser artista. Na verdade, há uns tempos estava a dar uma masterclass e houve uma pergunta similar. Um aluno perguntou: “Como é que lidas com bloqueios criativos?”. E dei uma resposta similar, em que disse: “Tens de tentar escrever continuamente durante esses períodos. Isso não significa que tenhas de escrever coisas que adoras, mas faz isso constantemente. Às vezes, depois disso, regressas às tuas ideias umas semanas ou anos depois, e talvez descubras que adoras algumas ideias das quais nunca tinhas pensado gostar.”
Talvez sejam o teu próprio ego e as tuas próprias emoções que se metem no caminho de aceder à tua criatividade e a todas as ideias que existem em ti, por causa de todo o trabalho que tiveste em refinar a tua arte e o teu talento. Elas existem dentro de ti por causa do trabalho que fizeste com elas, e depois tens de trabalhar mais ainda para tentar libertá-las de ti, mesmo quando estás cansado, desinspirado ou a não gostar de nada daquilo que estás a fazer. Às vezes o maior desafio do artista é contornar esses bloqueios e essas emoções. Por isso acho que torná-lo numa rotina, obrigar-te a fazê-lo, é algo que me ajuda realmente a ultrapassar esses momentos. Isso é algo que o guitarrista com quem trabalho, o Jeff Parker, me disse algumas vezes, e gosto muito disso. Tento agarrar-me a isso, principalmente quando me sinto sem ideias ou não sei o que fazer.
Mencionaste que às vezes não gostas das coisas que fazes, mas talvez regresses a elas e as retrabalhes. Costumas regressar às coisas que fizeste no passado?
Eu acho que a melhor altura para regressar às coisas em que andaste a trabalhar e fazer isso como parte da tua prática é quando te sentes bloqueado. Nessas alturas eu volto atrás e penso: “Deixa-me ver o que eu era…”. Talvez volte ainda mais atrás e pense: “Uau, eu fiz isto! Isto é muito fixe. Estive aqui nas últimas três semanas a bater com a cabeça na parede…” Talvez já esteja tudo à minha frente e eu só precise de encontrar paz em mim mesmo para ouvir as minhas ideias de outra maneira, se isso faz sentido.
Agora quero perguntar-te algo mais metafísico. Onde é que a tua música te leva? O que é que visualizas quando a fazes ou quando a escutas?
Uma das coisas que considero especial na música instrumental — que é aquela com a qual lido maioritariamente — é que lidamos com emoções complexas que são realmente difíceis de pôr por palavras. Eu acho muito difícil dizer aquilo que estou a sentir ou ter uma imagem concreta de um sentimento. Mas é especial quando estás a tocar música e vais para um outro lugar, ou quando estás num contexto de música ao vivo e há muitas pessoas juntas, em que todas estão a partilhar um espaço, mesmo em silêncio, a antecipar o próximo som ou aquilo que vai acontecer. Há uma sensação palpável na sala que todos conseguimos sentir e isso é bastante poderoso. Eu não sei o que chamar a isso ou como se pode colocar num contexto religioso, espiritual ou metafísico. Mas essa é a magia daquilo com que estamos a lidar, não sei. Para mim, não é uma coisa específica, mas sim um certo espaço mágico que existe precisamente porque é difícil de descrever. E é por isso que usamos formas abstractas como a música, artes visuais, cinema, aquilo e aqueloutro para conjurar sensações e emoções que são muito complicadas e difíceis de definir.
Já retrabalhaste algumas músicas de outros artistas, como na reimaginação do último álbum do Gil Scott-Heron e no Deciphering the Message, feito a partir do catálogo da Blue Note. Tens alguns outros projectos de sonho desse estilo?
Hmm… Sim, não necessariamente específicos. Ambos os discos [que mencionaste] vieram ter comigo de alguma forma ou de outra, enquanto eu procurava a minha própria voz no sampling, ao fazer samplings de improvisações e de mim mesmo. Isso levou-me à XL [editora musical] e ao Richard Russell, que produziu o último álbum do Gil. Eles vieram ter comigo para trabalhar nesse projecto, enquanto que com a Blue Note foi mais eu a querer ter a oportunidade de trabalhar com material histórico e de me sentar com o Don Was da Blue Note, e ele ser muito aberto relativamente a dar-me essa oportunidade. Para outros específicos, não sei, não tenho nada em particular em que me esteja a focar. Mas definitivamente algo com música folclore e mergulhar mais nas tradições orais da diáspora africana. Eu irei para a África do Sul, para Joanesburgo, para gravar com alguns músicos e ver onde isso me leva. Para outros projectos históricos, vamos ver o que me é revelado.
O Deciphering the Message, em particular, parece o trabalho de uma banda impossível, de artistas vivos e mortos. Isso lembrou-me das possibilidades da IA. Vês algum potencial nisso? Qual é a tua opinião?
No que toca a IA ou robôs, em geral — e talvez isto não seja toda a IA, mas mais robôs — eu sou pró-humano. Há muito que os robôs podem fazer e que a IA pode fazer, mas é um caminho complicado. No que toca a sampling, há muito trabalho pouco original, por isso tudo o que a IA está a fazer é também pouco original, porque recolhe informação de todo o lado. E tem de se garantir que as pessoas estão a ser creditadas e pagas pelo trabalho que os computadores estão a usar para criar. Isso é algo em que temos de pensar, principalmente no lado criativo, mais do que quando a IA lida com ciência ou medicina, casos em que há uma resposta real. Para além disso, a nível económico, já muito trabalho está a ser tirado de pessoas. A um nível moral, não é que computadores não possam fazer trabalho de qualidade, mas músicos à minha volta precisam de trabalhos, precisamos de concertos, precisamos de escrever a nossa música… Se os computadores vão tirar as nossas ideias e criar a partir delas, também precisamos de ser pagos para podermos sobreviver ou então tudo desaparecerá eventualmente.
Como é que escolhes as pessoas com quem colaboras? Têm algumas características específicas?
Sim, com certeza! Em primeiro lugar, procuro pessoas que me inspiram, tanto pelas suas capacidades técnicas como pelas suas capacidades criativas, e pelo espírito. Procuro pessoas com as quais me conecto a um nível profundo, de alguma forma. Isso não significa que tenha de te conhecer muito profundamente antes de te contratar pela primeira vez, mas quando nos conhecemos há uma conexão do tipo: “Temos de tocar juntos, temos de conviver, quero aprender algo contigo, tenho de estar perto de ti porque isso me tornará numa melhor pessoa, artista e músico”. Eu procuro quem me incentive e inspire dessas formas e que queira trabalhar comigo também.
Sinto-me afortunado por ter conseguido construir um elenco de pessoas à minha volta que são como uma família para mim e que são únicas no seu espaço. Tipo a Brandee Younger, na harpa. As pessoas dizem-me: “Uau, tens tantas harpas bonitas na tua música!”. Eu não quero uma harpa na minha música! Eu quero a Brandee Younger na minha música, sabes? Eu procuro a personalidade primeiro e o instrumento que tocam é secundário. No caso da Brandee, que eu mencionei, é simplesmente um benefício enorme que ela toque um instrumento único. Isso é uma das coisas que a torna ela e que a torna inspiradora, o facto de ela ter escolhido um instrumento desafiante para tocar, maioritariamente clássico, e conseguir fazê-lo a um nível muito elevado, ao largo de vários géneros musicais, ter a sua própria voz e estar familiarizada com tanta música com a qual eu também estou familiarizado.
Ou o Junius Paul, no contrabaixo. Ele é tão único e criativo e funky… não conheço ninguém como ele, sabes? Alguém que traga a mesma energia ou a mesma abertura e entendimento de avant-garde, soul, hip hop, house, afrobeat… Ele é único na sua empatia e tem uma certa maneira de ocupar o seu espaço na banda. Eu quero isso à minha volta.
E eles também podem levar-te a sítios onde nunca estiveste.
Totalmente! Eu quero que a música faça coisas por mim que eu nem consiga sonhar. Eu quero ir além das minhas próprias capacidades, continuar a crescer e expandir os meus limites. A única maneira que tenho de fazer isso é rodear-me de pessoas que admire de uma maneira ou de outra.
Para jovens músicos que estejam a tentar singrar no mundo da música, qual é o teu conselho?
Tens de o amar. Isto não é para fracos de coração, tens de dar tudo em termos de prática. É uma vida bastante desafiante e as recompensas são imensuráveis, mas tens de ter uma ética de trabalho e compromisso com a música e arte, e realmente amá-las e fazê-lo pelas razões certas. Porque não será necessariamente fácil e tens de manter as expectativas alinhadas, porque se o estás a fazer pelo objectivo final, muito provavelmente ficarás desiludido várias vezes ao longo do caminho, sabes? Por isso tens de estar envolvido na música pela música em si, pelo teu amor e pela tua paixão, aceitar essa recompensa primeiro e descobrir como explorar as tuas habilidades na tua vida para encontrar como fazer isto de forma sustentável. Se continuares assim, com a cabeça no lugar e trabalhares, consegues viver uma vida saudável e bem-ajustada, mesmo nas franjas da sociedade, como muitos artistas estão.
Que marca queres deixar no mundo da música?
Quero poder tocar muitas pessoas e trazer-lhes momentos de paz e recuperação, por mais que sejam pequenos. Isso é o máximo que eu posso desejar, continuar a juntar as pessoas, providenciando-lhes uma plataforma, e ser uma força positiva neste mundo contra aquilo que pode parecer um sofrimento interminável e imensurável.
O que é que o público português pode esperar do teu espectáculo? Vais tocar diferentes fases do teu trabalho, será algo mais improvisado…
Vamos tocar uma grande variedade dos álbuns mais recentes, mas também material novo. Também teremos uma abordagem aberta à música, em que será tocada de formas frescas e novas. Cada vez que tocamos, é sempre um pouco diferente, a energia é diferente. Como tocamos numa tradição de improvisação, haverá sempre coisas novas e também novos momentos.