Entrevista. Manel Cruz: “Não acredito na ideia de que precisas de sofrer para criar”

por Comunidade Cultura e Arte,    12 Abril, 2019
Entrevista. Manel Cruz: “Não acredito na ideia de que precisas de sofrer para criar”
Fotografia de Pedro Nascimento e Manel Cruz
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Com duas décadas de carreira e uma imensidão de projetos coletivos e individuais, o nome de Manel Cruz está indelevelmente inscrito na História da música contemporânea portuguesa. Se, por um lado, é impossível dissociar Manel Cruz dos Ornatos Violeta — e vice-versa — por outro, são poucos os artistas que, depois de uma banda tão proeminente, conseguem ter uma Vida Nova.

Após o final dos Ornatos Violeta assumiu projetos como Pluto, Supernada e Foge Foge Bandido, tendo lançado um álbum com cada um. Em todos estes assume o papel principal, com a sua voz inconfundível. Mas desengane-se quem pensar, que as capacidades criativas de Manel Cruz se fecham na sua voz. É que, para além dos vários instrumentos que toca e dos poemas que escreve para os musicar, assume-se desde sempre — até mesmo antes da música — também como artista plástico e ilustrador.

É devido a esta versatilidade criativa que, após um interstício musical, Manel chega com boas notícias aos seus fãs. Segundo ele próprio, “chegou a hora de assumir o seu trabalho, no melhor dos sentidos”. Em primeiro lugar, vai lançar o seu novo álbum-livro, intitulado Vida Nova, no dia 5 de Abril — fruto do novo projeto em nome próprio. Depois, a partir de Julho, vai dar uma tríade de concertos de comemoração dos 20 anos d‘O Monstro Precisa de Amigos dos Ornatos Violeta. Será, portanto, um ano em pleno.

Fotografia de Pedro Nascimento e Manel Cruz

Por isto e por tudo que representa Manel Cruz, a Comunidade Cultura e Arte esteve à conversa com o artista, no fim do mês de março, no mítico estúdio do “Bandido” no STOP, em plena cidade do Porto. Num dia soalheiro de Primavera, fomos muito bem recebidos e ficamos imediatamente rendidos com todo o cenário. Entrar no estúdio de Manel Cruz é entrar um ecossistema de criação, num habitat artístico hermético e num museu vivo de material e ferramentas. Posto isto, e uma vez estabelecidos na floresta criativa, demos início à entrevista. Conduzida por Linda Formiga, Paulo André Soares e Mariana Vasconcelos (audiovisual) — e sublinhada pela pronúncia nortenha — esta foi direccionada principalmente para os processos artísticos do Manel e os seus resultados. A conversa estava tão interessante, que se estendeu mesmo depois de se desligarem as câmaras. Ainda assim, prometemos que não fugiu muito aos temas que abordamos na entrevista que aqui vos deixamos, disponível em três formatos: vídeo, áudio e texto. Desfrutem:

No dia 5 de abril sai o teu primeiro álbum em nome próprio. O seu título, Vida Nova, também nos deixa a sugestão da mudança. Contudo, não é o teu primeiro projeto a solo. Porque não continuar como Foge Foge Bandido? Em que sentido é diferente e o que mudou realmente?
Estas coisas não são coisas planeadas, naquele sentido de que são coisas que vão acontecendo. Na altura do Bandido, eu também tinha os Supernada, tinha os Pluto e há coisas que vêm de trás e que se prolongam para momentos em que também há outras coisas e o Bandido acabou por, de certa maneira, também parar num momento em que achávamos que já tínhamos dado muitos concertos com aquilo e que, lá está, não queríamos continuar a dar o mesmo concerto, poderíamos dar outro, mas efetivamente também estávamos com vontade de fazer outras coisas. O Nuno Mendes, que misturou o Bandido, também estava a fazer um projeto na altura com ele, que ainda temos umas músicas feitas, mas muitos projetos também são engendrados e esperam porque o tempo não dá para tudo. Mesmo os Pluto, por exemplo, não acabaram, foram interrompidos e nunca mais continuaram e também nunca se sabe se vão continuar. Ou seja, estas coisas não são propriamente “agora faço este projeto, agora faço este”. As coisas são sempre uma interação entre a vontade que a gente tem de fazer, e a possibilidade e a capacidade no tempo de fazer as coisas, e a vontade também de fazermos determinadas coisas em determinado momento. O Bandido foi assim uma… achámos muita graça de estar a fazer o Bandido e de finalmente o Bandido estar a soar mesmo bem e os concertos estavam a ser incríveis, e de acabar a coisa no seu auge. Porque havia essa vontade, o facto de fazeres uma coisa muito fixe e estar a soar muito bem dá-te, por um lado, uma vontade de continuar a aproveitar isso, mas ao mesmo tempo também te inspira e, quando o nosso trabalho é sermos criativos, também te inspira a partir para outras coisas porque ganhas confiança para fazer mais coisas. Quando, às três por quatro, estás a repetir uma coisa que te está a soar bem, não é o panorama mais aliciante. O mais aliciante é aproveitar a nova coisa e o Bandido acabou por ser um projeto a solo, que curiosamente, é o que tem mais gente agarrada. Tem montes de convidados e de amigos porque foi algo que surgiu sem um plano. Foi sendo feito na minha sala, em casa em que eu vivia sozinho, iam para lá amigos à noite e íamos passar um bom bocado à noite a curtir, com os instrumentos ligados — era simultaneamente a minha sala de estar também, não era um estúdio, tinha a fruta, a televisão e o sofá e os instrumentos — e acabou por dar naquilo e depois com o disco feito é aquela coisa “OK, vamos fazer isto ao vivo?” e fizemos a coisa ao vivo. Estivemos um período grande a fazer a coisa ao vivo e a coisa estava satisfatória assim. Até fizemos um cartaz a dizer “Olá, Fim” do Bandido porque acho que é uma coisa super fixe quando tu também tens uma coisa super fixe que aconteceu e sabes terminá-la se te apetecer terminá-la, não tem mal continuar, mas tendo vontade de fazer outras coisas, é fixe. Ainda tive os Supernada, tive os Pluto e depois também com o nascimento dos meus filhos a coisa mudou um bocado, em termos de tempo e na maneira de gerir o tempo, e continuei a fazer coisas mas, nitidamente, a prioridade é outra, a tua adaptação às novas exigências da vida são outras e com o passar do tempo apercebes-te e dás por ti — ah, mas também tive os Ornatos, que me tirou ali um tempo e também me deu dinheiro para estar sem fazer nada e passar o tempo só a gastar o dinheiro, que não serviu para nada. Sabes aquela ideia de vais ganhar dinheiro e vais poder fazer tudo o que quiseres? Não, vais poder é não fazer nada, e comer bem e comprar brinquedos e coisas. Mas também me tirou aqui um bocado e baralhou-me, ou seja, interrompeu-me um bocado a rotina que eu tinha, de projetos e não sei quê. Depois retomar, nesta fase, já foi um bocado mais estranho porque, sei lá, já tinham passado anos e eu estava num paradigma de vida diferente, e era um bocado mais pensar como é que eu quero que a minha vida seja daqui para a frente. Ou seja, tens uma oportunidade de fazer um balanço e olhar para trás, e a Estação de Serviço foi um bocado um exemplo disso, olhar para o reportório que tinha, para as coisas que tinha e como queria fazer daí para a frente. Se interromperes também tens a oportunidade de perceber qual é o teu padrão, o que gostas, o que não gostas. É uma oportunidade também quando te estás a redefinir como pessoa e num novo contexto de vida, de definires essas partes, até porque há uma necessidade mesmo na questão da sobrevivência, de dizeres «eu tenho de ter uma fonte de rendimentos mais certa», porque neste momento já não sou só eu, também já não tenho a energia e, digamos, a loucura constante e a liberdade constante de fazer aquilo que me dá na telha, porque as implicações já não são para mim, por isso como é que eu vou redefinir isto de forma a que… e o Vida Nova surge um bocadinho nesse seguimento de tentar assumir, de olhar para trás e de tentar perceber um padrão. E o padrão é que embora nunca me tenha sentido músico e um profissional de música, porque interessava-me animicamente sentir-me livre, a verdade é que, olhas para trás, e percebes que é isso que foste. E se queres ganhar dinheiro com uma coisa e queres ter um trabalho que gostas, se calhar vais ter de arranjar um formato que consigas retirar essas coisas e teres na mesma os teus espaços de liberdade para outras coisas mas de alguma maneira és obrigado a organizar para depois seres livre. E falando do Bandido, pode-se falar do livro, mas pode-se também falar do período da vida, está tudo um bocado ligado. O Vida Nova é eu ter percebido qual é o meu emprego. No melhor dos sentidos.

Fotografia de Pedro Nascimento e Manel Cruz

Fizeste, até aqui, um hiato criativo geral ou foi só na música? De que forma te serviu esta paragem?
A Estação de Serviço surgiu numa altura em que eu precisava de ganhar dinheiro. Precisava de ter essa segurança. Estava a precisar, no momento, de ganhar dinheiro, e eu nunca gostei daquela ideia de… sempre fiz desenhos e usei essa capacidade para ganhar dinheiro, porque sentia-me capaz de responder a um enunciado, de trabalhar para um cliente, porque tecnicamente sempre foi o ofício em que me senti mais versátil. No sentido de, se eu tiver de fazer uma coisa, como fiz um livro para a plantação de mirtilo, faço um livro para a plantação de mirtilo, se precisar de fazer uma ilustração para um jornal, faço, se tiver de fazer um cartaz para não-sei-quê faço e é trabalho para cliente, que está balizado, vou ganhar o meu dinheiro, fazer o melhor que sei e estou perfeitamente tranquilo em relação a isso. A música, pelo contrário, sempre foi o meu local de criação e de diversão. Mas, curiosamente, foi sempre o que me ia dando mais retorno financeiro, portanto havia sempre aí uma questão por assumir. E na Estação de Serviço, quando me surgiu essa necessidade, surgiu-me essa coisa de não vou dar um concerto só porque preciso de ganhar dinheiro, tenho de ter alguma coisa que me dê pica se não isto é um sacrifício, o maior sacrifício do que fazer um trabalho ou fazer uma tradução para um livro, porque de um coisa que eu gosto, vou estar a ir para o palco sem prazer. E lembrei-me de olhar para o reportório todo atrás, fazer versões com uma roupagem toda diferente, com banjo e não sei quê. E com algumas das pessoas com quem eu gosto de trabalhar. E foi mesmo, mesmo fixe, porque foi uma coisa meio despudorada, sem uma ambição de projeto e foi mais uma experiência mais ao nível pessoal e também me deu oportunidade de me trabalhar como músico ao vivo num sentido de trabalhar mais as coisas que para mim eram um problema ou uma dificuldade, que era eu não adorar tocar ao vivo, ou gostar de tocar pouco. Tentar perceber porque é que isso acontecia, tentar perceber que isso tinha um bocado também que ver com o medo do erro, o brio mas levado a um extremo, que era se calhar um sentimento de muita responsabilidade que se calhar não fazia sentido e tentar também, como dizer, simplificar essas coisas e trabalhar essas coisas a um nível pessoal. E era também um espaço que me estava a permitir olhar para trás e fazer um balanço, por isso se chama Estação de Serviço. Depois houve a Extensão de Serviço que, já havendo músicas novas, estava a transitar para qualquer coisa. E isso ajudou-me muito nesse sentido, começar a olhar para a música ao vivo como outra coisa.

A par daquilo que já aconteceu com Foge Foge Bandido, este novo álbum vai ser lançado também como livro. Existe, no teu processo criativo, uma simbiose entre a dimensão plástica e a dimensão sonora?
Sim, acho que sim. Eu até acho que vejo mais a música, ponto. Ia dizer que vejo mais a música como pintura, e não sei se não será assim, falo pela minha experiência, não sei se será assim com toda a gente, mas na criação tudo são códigos, códigos musicais e imagéticos. As coisas vão sempre buscar coisas umas às outras, quando ouves um som, em termos de memória, pode remeter-te para um momento. Momento esse que pode traduzir-se numa imagem. Podes olhar para um som e sentir que o som é «gordo» e podes olhar para um som agudo e transmitir-te a ideia de um sentimento de alguma agressividade, mas tudo isso são formas que arranjas para codificar as coisas. Eu, como parti das Artes Plásticas, tenho sempre uma tendência de organização do espaço sonoro como uma paisagem, um sítio, um ambiente ou um lugar, que tem uma determinada sensação. Mesmo ao veres um filme, estás com uma imagem e essa imagem também te transmite uma sensação, é ao contrário e se calhar vai trazer-te qualquer coisa próxima de um som, um eco cá dentro. O que nós ouvimos e vemos é apreendido de maneiras que às vezes nem nos apercebemos e eu na música sempre usei a imagem para explicar aquilo que eu queria. Não sou um académico e por isso tenho que explicar as coisas de alguma maneira. Às vezes até vais a cores, do género: “imagino isto mais castanho, mais cor de madeira”… E é aquela coisa, estás a falar de um som e estás a falar de madeira? Mas o certo é que nos vamos percebendo, quando não conseguimos explicar uma coisa concreta para explicar a própria coisa… por isso é que eu acho que muitas das vezes dizemos «é como…», porque quanto estás num determinado assunto, não consegues explicar as coisas com o léxico desse assunto, tens de ir buscar outro para fazer o paralelo.

Fotografia de Pedro Nascimento e Manel Cruz

Ainda consideras a narrativa crucial nos teus projetos? Sentes-te preso ao formato de cantautor ou estás tentado a explorar projetos onde assumes outro papel de criação?
Sim, eu sempre tive essa vontade de fazer até coisas mais experimentais, o Bandido tem um bocadinho de tudo, mas sempre tive esta coisa das letras e da comunicação, não sei dizer porque opto sempre por isso, porque de certa maneira há uma engrenagem que crias e fazes parte, que tem que ver contigo, mas também com o exterior. É algo que funciona seja por vícios seja por vontade. Nunca te apercebes ao certo, mas acabas por te repetir porque aquilo funciona e porque te faz sentir bem, etc. Depois tens as outras coisas, que é o que gostas de fazer e que fica para segundo plano porque há uma espécie de um auto-enunciado da canção, que fala-se em canção e eu vejo mais como tema e, curiosamente, há coisas que eu tenho aí no meu computador, que são bocadinhos instrumentais de coisas que, com a memória, aquilo para mim já é pop e é tudo menos pop, são ruídos. Mas é pop na medida em que aquilo já está dentro da minha cabeça. O popular tem a ver com o facto de já estar presente na memória do povo. É evidente que determinados códigos mais comuns tornam mais facilmente as coisas populares. Se for pensar na essência, não vejo que haja uma diferença essencial entre uma canção e um pedaço de música concreta, a única coisa é que os códigos já estão muitas vezes na cabeça das pessoas e daí tornam-se mais populares. Mas eu vejo as coisas mais dessa maneira, como temas, como pedaços de coisas, como lugares, e tento sempre fazer a coisa mais a esticar a corda nesse sentido e ser mais livre nesse sentido. A questão das letras é uma forma de comunicação muito direta. Gosto da sensação de ser direto e ser direto ao ponto de criares ambiguidade, mas sobre um precedente de entendimento.

Identificas-te com aquela velha ideia de que não haveria arte sem tragédia? Quando não tens dor para exorcizar isso implica um bloqueio criativo? Vais rebuscar memórias? Em Vida Nova ainda temos presente o existencialismo que te é característico?
Nunca vamos saber se haveria arte sem tragédia porque nunca houve e vai haver sempre. A Natureza humana é isso tudo. Mas não acredito na ideia que precisas de sofrer para criar ou para fazer alguma coisa. Isso são reduções das coisas. É verdade, mas também não é, é tudo uma mistura. Mas acho que essa ideia de que é preciso sofrimento é uma ideia perigosa, porque está por trás de toda a legitimação do sistema no sentido de explorar os artistas, porque mesmo que estejam mal, estão bem, pois é assim que precisam de estar para criar, e então se não lhes pagares há mais uma razão para que eles estejam mal, mas é assim, porque o blues surgiu na altura da escravatura… Isso é tudo verdade, é verdade que o sofrimento cria revolta, mas eu não vou pagar pior à minha empregada porque ela com a revolta vai limpar melhor. Por ser verdade, num aspeto de que o sofrimento apela a uma reação, e essa reação, na impotência de ser uma reação efetiva em relação ao problema, vai ser necessariamente uma reação criativa, porque é a forma de se criar um mundo alternativo ao problema. Mas eu acho que é a emoção que faz criar coisas.

E a emoção pode ser muito boa ou trágica. Acima de tudo acho que a emoção é uma forma de comunicarmos fora dos códigos habituais e de nos propormos a criar uma ligação com as pessoas mais emotiva. Acho que é quase uma questão de sobrevivência, em que as pessoas precisam de comunicar de outras formas que não dominam tão bem e que podem criar mal-entendidos, mas que tem mais que ver com a intuição e com outros processos.

Fotografia de Pedro Nascimento e Manel Cruz

No Foge Foge Bandido exploraste diversos instrumentos não convencionais. Como é que se desenrolou este álbum nesse aspeto?
No “Vida Nova” tive uma coisa diferente do Bandido. O Bandido era tipo caixote do lixo da curtição, era mandar para lá e abria músicas, depois o pessoal ia lá a casa e eu abria uma música, eles nem sabiam que estava a gravar e estavam a tocar um piano e eu gravava o piano e fazia uma música em cima do piano e juntava mais não sei o quê. Depois ficava com não sei quantos takes de toda a gente para montar e para pegar, tinha um saxofone deste que tinha naquela música e pegava e punha naquela… e era paralelamente aos outros projetos, ou seja, podia ser outra coisa, podia ser uma coleção de borboletas, mas a verdade é que era dentro da música, que é o que eu gosto de fazer, mas podia ser outra coisa. E então era muito a soma, e um dia pensas o que vou fazer com isto, tens um monte de matéria e é tirar, tirar, tirar. Escultura, quase. Neste, foi quase ir ao essencial, que é tentar descobrir se eu ainda tinha a paixão, se conseguia sentir a paixão naquelas alturas em que estás mais perdido e que, como toda a gente, procuras sentir a faísca e sentires-te entusiasmado com alguma coisa e pensar que se fosse para me sentir entusiasmado tanto fazia que fosse com muita coisa como se fosse só com uma guitarrinha. Tinha mais que ver com a maneira como eu queria fazer e na maneira como eu veiculava as coisas do que propriamente com a forma ou com o facto se aquilo era inovador, se não era, se tinha experimentalismo. Tinha mais que ver com o experimentalismo pessoal, de mim na vida, e de refletir isso ali e de chegar a algumas conclusões. Então foi isso, e vim para aqui durante quatro meses, em horário de função pública, todos os dias a fazer música e tinha de estar e ao fim do dia fazer uma música. E deitava-a fora se fosse preciso, e deitei muitas, e outras iam ficando lá, mas era aquela questão de “se for possível entusiasmar-me, será com isto”. Isto afetou naturalmente a composição das músicas, porque tem um cariz mais de composição harmónica e melódica porque o próprio instrumento me levava aí. Se tiveres um sonzinho, podes ir para qualquer lado, se tiveres uma harmonia e um acorde, se calhar fazes mais facilmente uma melodia. Ou seja, há uma certa tendência a ires para um processo mais convencional e, nesse sentido, acho que é um disco mais convencional que o Bandido, mas também mais simples. A proposta não é transcender-me ao nível do experimentalismo, mas é mais fazer uma coisa que me dê pica. Só! E que, de alguma maneira, também dê resposta ao momento que estou a passar e que isso influencie a minha vida, de me sentir outra vez entusiasmado, depois de fazer tudo o que tenho a fazer na minha vida com mais ânimo.

Há dez anos referias para além da música e da ilustração, também tinhas interesse em filmar algo ou em explorar a área da animação. A música Beija-Flor tem um videoclip que também é produzido por ti. O álbum sairá também em formato de livro. A ilustração, o vídeo e a música andam lado a lado nesta nova fase?
Sim. Também foi uma coisa que eu tenho pensado, que é eu sempre tive aquela coisa de vou fazer um livro de não-sei-quê, vou fazer uma animação para não-sei-que-mais. A música existia e dizia “sou músico, ou não sou músico, faço estes concertos e tenho este projeto e estes projetos acabam e faço outros” ou “vou fazer um livro”, ou seja, a deixar sempre tudo em aberto, deixar o máximo em aberto. E com esta vontade absoluta de dizer “agora vou ser isto ou agora vou ser aquilo”, acabas por perder algumas oportunidades de fazeres algumas coisas que gostas pelo facto de elas, no momento, não serem tudo aquilo que vais fazer. Então como não são tudo aquilo que vais fazer, vais deixar para depois para quando puderes só te dedicares àquilo. Então é chegar a esta conclusão que é estou a fazer música, estou a dar concertos e tenho a hipótese de aproveitar e fazer um videoclip que quero na área da animação, tenho a hipótese de com as fotografias de promoção, ou fotografias de jornais que eu não gosto, e tento dar a volta a isso, fazendo eu as fotografias com um amigo e tentar criar as fotografias, tendo aí a oportunidade de fazer uma noitada e de te divertires com aquilo… no fundo aproveitares mais as oportunidades que tens para fazeres coisas que gostas do que projetares, porque normalmente nunca consegues fazer tudo aquilo que queres, por isso mais vale identificares os momentos em que tens oportunidade de aliar aquela obrigação a coisas que gostas de fazer. Eu lembro-me de, quando fazia livros — quando era mais puto fazia livros para a escola, para a 1.ª, 2.ª, 3.ª e 4.ª classe numa editora, ainda fiz muita coisa — e lembro-me de estar a desenhar aquilo e era o menino e os ovinhos e tirava não sei quantos ovos, com quantos ficava, o não-sei-que-mais é bombeiro e não sei que mais. E eu lembro-me de estar a fazer esse trabalho, que era um trabalho de obrigação, embora gostasse de desenhar, mas o que eu queria mesmo era receber o dinheiro para comprar uma guitarra, e lembro-me de nos intervalos já estar cansado daquilo e de começar a riscar ao lado. Ou seja, nos intervalos devia fazer outra coisa, mas estava a riscar e saiam-me coisas que me davam pica, porque no intervalo estava livre e fazia coisas que pensava que tinha de fazer alguma coisa com isto, porque este boneco está altamente, ou esta cena está altamente. Ou seja, umas coisas davam-me vontade de fazer outras e isso é uma coisa que dá que pensar, lá está a questão do blues e da escravatura, se estás ali e tens de fazer aquilo, vêm-te ideias para fazeres outras coisas. É essa questão de se aproveitar os momentos para fazeres as coisas que queres fazer do que projetares o que vais ser e o que vais fazer. Muitas vezes está mais ligado aos teus vícios de pensar do que propriamente a uma vontade genuína de fazer as coisas. Do género: “Por que é que ando há anos a dizer que quero fazer um livro?”; “Será que quero mesmo fazer um livro? Se quisesse já tinha feito”. Acho que me ficava bem fazer um livro, acho pena ter tantos desenhos e não os lançar, mas o que é que isso interessa?

Fotografia de Pedro Nascimento e Manel Cruz

Não tens planos agora para isso?
Eu estou a dizer isto e tenho sempre. Eu arranjo sempre uma maneira de me enganar. Para ser sincero, acredito que vou fazer finalmente o livro porque arranjei aqui uma maneira… mas pode ser outro engano. Mas também viver nestas ilusões também é muito importante. A gaveta é muito importante como gaveta. Vives muitas vezes frustrado porque tens muita coisa na gaveta e as pessoas dizem-te que pressionam-te para fazer… Mas não é assim tão importante. Só é importante se quiseres genuinamente fazer, só socialmente isso não tem interesse. Dou o exemplo do meu irmão, que é jornalista e que teve anos e anos em que eu lhe dizia “tens de editar”, porque existe sempre uma vontade evidente que todos temos de ter reconhecimento, de nos validarmos. Mas ele sempre foi bon vivant e dizia sempre “não, não tenho urgência nisso” e a verdade é que depois dos 40 lançou um livro. E isso é muito mais importante do que ele se ter obrigado a fazer isso antes, até porque o momento em que as coisas acontecem é o momento em que têm de acontecer. Não interessa muito impores-te essas coisas, a não ser que tenhas de facto vontade disso, uma vontade genuína disso.

Para além do lançamento e apresentação do álbum a solo, vais dar também um conjunto de concertos com os Ornatos Violeta. Não te sentes quase como se estivesses a tocar música de outros, no sentido em que a música dos Ornatos ganhou por si uma identidade própria?
Sim, sim, sinto isso e sinto que de alguma maneira também desresponsabiliza, embora tenha sempre aquele medo de estragar coisas bonitas, porque eu acho que existem imagens sociais que mudam e as pessoas não se apercebem. A imagem dos Ornatos era uma antes de nós voltarmos, depois de voltarmos é outra. Quando eu digo para os outros é para nós também. Para nós também na forma como imaginamos que será dos outros. Lá está, este jogo de ilusões, mas que têm algumas verdades em comum. E as coisas estavam muito bem como estavam. Mas depois também de voltarmos à carga e perceber que aquilo foi outra coisa, aquilo não era aquilo que pensava de que vamos tocar e agora vai ser pior do que alguma vez foi, porque é impossível competir com o passado, a coisa foi tão bonita, deixa estar no sítio e, de repente, não foi melhor, nem pior, foi outra coisa. Fantástica! E uma coisa que eu não imaginava que me pudesse dar tanto prazer porque, lá está, foi algo estava a imaginar, e deixares margem que essas coisas aconteçam, não achares que tens a capacidade de saber o que as coisas vão ser e decidir antes o que é que as coisas vão ser, às vezes pores-te nas coisas porque sim, vale a pena. O mesmo aconteceu agora neste caso, porque eu não queria fazer um regresso porque aí tinha a certeza que se fizemos um regresso tão fixe e agora fazermos outro regresso, não podemos fazer outro regresso, porque não o é. Mas a questão de ser tocar o disco Monstro, que é um disco que eu gosto particularmente e gosto de tocar, porque no caso do regresso tocámos também o Cão, e eu toquei aquilo fixe e com vontade, mas porque eu sabia que aquilo ia ficar ali e não ia voltar a tocar aquilo, o Punk Moda Funk e essas coisas, foi até mais o lado de conseguir olhar para aquilo com ternura e olhar para o prazer das pessoas que estavam a ouvir aquilo e isso ser suficiente para me alimentar, permitiu-me tocar aquilo como se não tivesse de ser eu. Não tivesse de ser eu agora nem há não sei quantos anos, eu era apenas o veículo daquilo. E neste concerto do Monstro, ajudou também o facto de ser um disco que ainda nos dá muita pica e que sentimos que ainda há um encaixe da pessoa que somos hoje naquilo que fazemos. Mas sim, ajuda também de certa maneira pensar que posso simplificar a coisa e pensar que vamos tocar, vamos curtir, as pessoas vão curtir, pode não ser incrível a outros níveis mas vai ser um momento altamente, vamos ganhar guita, que bem falta nos faz, e tudo bom.

Fotografia de Pedro Nascimento e Manel Cruz

Estás sempre à procura de inspiração? Vives com essa lupa constante de, por exemplo, apontar palavras interessantes ou ideias de sons? Dás impulso à inspiração ou deixas fluir?
É mais forte do que eu, é incrível. Às vezes estou a ter conversas, alguém diz alguma coisa interessante e eu estou lixado que já não ouço o resto. Então pego no telefone e escrevo só assim um tópico, até posso mostrar tópicos. [Pede o telefone] Mas acho que é fácil perceber, são coisas completamente díspares, só para poder ouvir a pessoa, mas ao mesmo tempo é ingrato no meu trabalho… nem sei o que vou mostrar, mas pronto. Algumas coisas depois até vou ler e já não sei bem o que é. Tenho aqui uma série de ideias soltas. [Lê no telemóvel] Artista vampiro de si, um vampiro que era um gajo que era vampiro de si próprio e que tinha de beber o próprio sangue, já nem me lembro. A invasão dos peluches. Legos à Gomes de Sá. Sei lá. O lobo e o passarinho, o passado deles em paralelo, morto pelo presente deles, esta já não sei identificar. Eduardo Mãos de Esferovite. Bancos com pernas de homem, isto é uma cena para um banco com aquelas coisas de manequim que as pessoas e parece que as pernas são delas. Sei lá, é que pode não ter nada que ver com música. T-shirts. As pombinhas para cavalo cansado. Sei lá, alguém te dá uma ideia e pensas que se perder esta merda, daqui a uns tempos vou estar a pensar “tinha aquela ideia tão fixe, e agora?”. Perdeste o teu trabalho. É como estares à procura de uma coisa qualquer, de um material qualquer para fazeres um objeto qualquer porque andas a estudar e és um cientista e andas a estudar aquilo, e de repente está alguém do outro lado da rua a apanhar um autocarro, que vais apanhar aquele autocarro também e vais com essa pessoa e vês aquilo ali e ficas no “vou, não vou, vou apanhar o autocarro, a pessoa é mais importante”, mas se calhar a pessoa ia ficar a dizer “não, apanha isso porque depois a gente liga-se”. Só que ao mesmo tempo estás a ter uma conversa mesmo fixe e ficas naquela, mas o teu trabalho é mesmo muito na cabeça, e isso é um dilema do carago. Tenho um caderno e tudo, mas depois é aquela coisa, o caderno é um bocado chunga estares a falar com uma pessoa e começas a escrever. O telefone dá a ideia que entras muito noutra coisa e não é fixe estares a conversar e estar alguém a [mexer no telemóvel]. Depois também ando sempre a tentar arranjar ideias de tornar esse processo mais simples, para ser possível ser rápido para agarrar essas coisas. Mas muitas das vezes, e se calhar na maior parte das vezes, não interessa nada a ideia que tu tiveste. Também tem essa coisa, porque são ideias.

O álbum é uma peça única, fruto do teu momento presente, ou nele há diversos fragmentos de expressão temporais e emocionais?
Acho que foi mais concreto deste momento presente, inevitavelmente com a cabeça que tenho hoje que é fruto do tempo todo. Mas houve muitas coisas muito concretas. Para mim são concretas, se calhar para quem ouve as letras não são, mas a questão da inspiração, a questão da paternidade, a questão da procura da paz, todas essas coisas acabam também por ser a matéria de reflexão para produzir as coisas. Quando estás vazio e queres criar, inevitavelmente vais ter de fazer farinha com o vazio. Vais ter de pegar nisso para fazer farinha. A primeira música que eu fiquei entusiasmado, que foi a “como bom filho do vento”, entre aquelas músicas todas que eu ia fazendo, fala exatamente de andares à procura de um momento que te pique, que te faça sentir uma ligação. Não tem que ver com um “olha fiz esta música que é muito bonita” ou isto funciona, é uma coisa muito mais tua. E estás a fazer uma música e às tantas pensas “vou falar de quê?”, vou falar, queres fazer a música. Mas queres escrever e tens esse pressuposto e vais escrever sobre quê? Vais escrever sobre e ti e sobre aquilo que estás a pensar. E então é um diálogo, às vezes são folhas e folhas escritas em que vais pegar numa frasezinha que depois gostas. E há sempre uma ideia do belo, seja isso o que for, seja a desconstrução do belo, mas é uma ideia que está de alguma forma, nem que seja o avesso, ligada à forma do belo que acaba por prevalecer. Pelo menos no meu caso, que no último momento aquilo tem de ser belo de alguma maneira. Portanto há um lado funcional, que pode dizer-se que é de alguma mensagem, ou da questão da honestidade do que vais dizer, etc., mas quase que se pode dizer que todas essas questões importantes no fundo se resumem ao belo, porque o belo vai ser a linha que fará a ligação às outras cabeças. Pode-se achar que nesse sentido, os sentimentos acabam por ter um papel decorativo. Mas não é, é um mutualismo. A arte serve a Vida e a Vida serve a arte. Há quase um acordo entre as duas. E aqui essa matéria foi pura e simplesmente esse momento que estava a viver, porque não tinha qualquer ambição de fazer algo que me fizesse sentir que estava num processo estético que me transcendia ou que inovava os processos. Era uma coisa um bocadinho mais simples do que isso, conseguir fazer algo que me fizesse sentir que ainda estava vivo e com capacidade de me apaixonar.

Entrevista de Linda Formiga e Paulo André Soares
Audio e Imagem: Mariana Vasconcelos
Agradecimentos: Joana Brandão

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