Entrevista. Marco Rodrigues: “Dificilmente encontraria alguém que tivesse o mesmo cuidado que Carlos do Carmo teve com as gerações mais novas”

por Ana Monteiro Fernandes,    1 Maio, 2024
Entrevista. Marco Rodrigues: “Dificilmente encontraria alguém que tivesse o mesmo cuidado que Carlos do Carmo teve com as gerações mais novas”
Marco Rodrigues / Fotografia via Facebook do artista

Marco Rodrigues lança a 3 de Maio o álbum “Marco Rodrigues Canta Carlos do Carmo”, com arranjos de Luís Figueiredo. O fadista recordou à Comunidade Cultura e Arte o cuidado de Carlos do Carmo com as novas gerações, como também era um intérprete de canção e não, somente, fado tradicional, e o respeito profissional que lhe tinha. Falou também das novas gerações do fado e como gostaria de aprofundar ainda mais, num futuro, a composição.

Das coisas que Marco Rodrigues mais admirava em Carlos do Carmo era a sua atenção para com os mais novos, aqueles que seriam responsáveis por dar continuidade ao fado. Por isso mesmo, recordou a vez em que se aventurou em dar o seu álbum ao fadista e, mais tarde, quando Marco Rodrigues lhe pergunta o que achou, Carlos do Carmo é honesto e diz-lhe que não apreciou muito, que tinha achado o álbum demasiado pesado para Marco Rodrigues. No entanto, o artista repara que houve um engano e, afinal, o álbum que ouviu e sobre o qual deu opinião não era de Marcos Rodrigues, mas um outro, houve uma troca, e Carlos do Carmo tratou logo de ligar a Marcos Rodrigues e dizer-lhe que, afinal, tinha havida um engano e que tinha apreciado bastante o seu trabalho, consciente do impacto que uma opinião sua poderia provocar em alguém mais novo a tentar caminhar ainda.

Posteriormente a isso, Carlos do Carmo colaboraria com Marco Rodrigues no álbum “Tantas Lisboas”, estabeleceu-se uma relação de respeito profissional e amizade, pelo que esta homenagem que Marco Rodrigues lhe prepara com o álbum “Marco Rodrigues Canta Carlos do Carmo”, que sai a 3 de Maio, surge da espontaneidade desse mesmo respeito e admiração que o fadista da nova geração nutre e nutria por Carlos do Carmo. Os arranjos são da responsabilidade de Luís Figueiredo e, além de darem um novo corpo aos temas, a verdade é que lhes dão uma ambiência mais de orquestra, cinematográfica até. Marco Rodrigues concorda, mas não deixa de lembrar à CCA que Carlos do Carmo não se situa, apenas, no fado tradicional. Teve a sua fase de canção, com temas que já foram também gravados até com orquestra, portanto, os temas em si também se proporcionam a isso mesmo. Quanto às novas gerações do fado, relembra, “as gerações são o que são, as gerações vivem da forma como vivem, fazem a música influenciada perante aquilo que ouvem, aquilo que sentem e as pessoas que têm à volta delas.

Sendo este um disco que revisita temas de Carlos do Carmo, podes explicar como Carlos do Carmo surgiu na tua vida e que influência tem e teve? Aliás, até porque Carlos do Carmo foi um artista convidado do teu álbum Tantas Lisboas, certo?

Para te contar a história, assim, muito resumidamente, cheguei a Lisboa com 15 anos e como já cantava com o meu pai lá em cima, no norte, a minha mãe — nós os dois viemos para Lisboa viver — queria muito continuar a alimentar a minha paixão pela música. Então, a primeira coisa que fez foi inscrever-me numa Grande Noite do Fado. Já tinha ganho alguns concursos de música de novos talentos como o Big Show SIC, já tinha feito aí algumas coisas, e a minha mãe achou que tinha de alimentar esta minha vontade e este meu sonho de ser de ser músico. Então, quando chegámos a Lisboa, a minha mãe inscreveu-me numa Grande Noite do Fado, música da qual não era grande fã e apreciador — achava até que era, um bocadinho, uma coisa para velhos e, por causa disso, até ganhei a Grande Noite do Fado e acabei por não dizer a ninguém, na minha turma, quando andava no Liceu Camões, só para não passar vergonhas: “Eh pá, fado, que coisa foleira para velhos”. Mas era assim que o fado estava, efetivamente, em Portugal, no final dos anos 90. Quando morre a Amália Rodrigues, o fado tem uma importância completamente diferente, também cá em Portugal.

A verdade é que fui, pela primeira vez, a uma casa de fado com a minha mãe: a minha mãe mostrou-me o que era o ambiente de uma casa de fado, que é o contrário do ambiente a que eu estava habituado, que é um ambiente onde as pessoas estão a beber cerveja e de costas para o palco, e nem sequer estão a ouvir a música porque estamos a falar de arraiais, festas, batizados, casamentos, esse tipo de festividades. De repente, entrei num sítio onde percebi que, para além do som bonito da guitarra portuguesa, havia um respeito gigante para com a música. Era possível fazer uma música em que as pessoas estavam caladas, só a ouvir, e a apreciar aquilo que estávamos a fazer: isso foi apaixonante. Bem, a verdade é que acabei por entrar para o fado através da minha mãe. Gravei um disco e, nessa altura, fui apresentar o disco a um sítio que se chamava Speak Easy, que era gerido pelo filho mais novo do Carlos do Carmo, o Gil do Carmo. Quando acabou, o Gil do Carmo disse ao pai: “Eh pá, tenho lá um rapaz novo fadista, que vai lá lançar um disco, se quiseres ir lá com a mãe, vão lá jantar e vê o concerto, o rapaz canta bem.” Assim foi e tive, na minha primeira apresentação de um disco, o Carlos do Carmo na plateia. Já era o fadista que eu mais ouvia e depois, a dada altura, consumi tudo que era do Carlos do Carmo. Então, nessa altura, armei-me em atrevido, fui-lhe mostrar o meu disco e disse-lhe assim: “Olhe, Carlos, gostava muito de saber a sua opinião porque é muito importante para mim.

O Carlos é uma das minhas grandes referências e gostava muito, mesmo, de ouvir a sua opinião em relação ao meu disco. Agora vou contar uma história — já contei, inclusive, a algumas televisões — mas é uma das coisas que mais bem representa o cuidado que Carlos do Carmo tinha com as novas gerações. Entreguei, então, o disco ele disse: “Muito obrigado, Marco, gostei muito de o ouvir cantar, o Marco canta muito bem, também toca viola, gostei muito”. Fiquei tranquilo nessa noite. Passados dois meses, vamos a França fazer um concerto a Paris, à sala Vasco da Gama, da rádio Alfa, e era um concerto partilhado entre eu, a Ana Moura e o Carlos do Carmo. Fizemos uma noite de fado nesse salão e eu, no final do concerto, fui ter com o Carlos do Carmo. Ainda não tinha grande confiança com ele, ou seja, o primeiro contato que tinha tido com ele tinha sido para lhe dar o meu disco para ele ouvir e para me dar a opinião dele. Fui ao camarim dele e perguntei-lhe: “Carlos, peço desculpa, mas gostava de saber, já agora — visto o Carlos ser uma grande referência para mim — o que é que achou do meu primeiro disco.” Ele virou-se para mim e disse assim: “Olhe, Marco, se calhar não lhe vou dizer aquilo que você quer ouvir. Mas vou dizer aquilo que eu lhe tenho a dizer. Olhe, não gostei muito do disco, o disco era demasiado pesado para a sua idade. Acho que você não tem idade para fazer este tipo de fado e cantar estas letras, portanto, olhe, esta é minha opinião.” Bem, aquilo bateu-me solenemente. Portanto, aquilo andou ali durante muito tempo na minha cabeça.

A verdade é que passado dois meses vou à Suíça e recebo uma chamada — ainda estava na Suíça, nessa altura — e recebo uma chamada do Carlos do Carmo, diretamente. O Carlos do Carmo disse: “Olhe Marco, estou-lhe a ligar pelo seguinte: no outro dia em Paris, quando lhe dei aquele feedback, queria corrigir porque o disco que ouvi não foi o disco do Marco, foi um outro. E a verdade é que quando lhe dei a minha opinião, era em função desse disco que eu tinha ouvido e não tem nada a ver. Agora ouvi o seu disco, parabéns, gosto muito do seu disco. Você tem uma forma muito fresca, muito nova de interpretar as coisas. Gosto muito, parabéns!” Poucas eram as pessoas da geração do Carlos do Carmo que teriam este tipo de cuidado para com a nova geração. Podia, muito bem, esperar para encontrar-me aí no meio do fado e refazer a opinião dele ou, então não, podia até dizer nada: “Eh pá, olha, na altura foi por acaso, enganei-me, quero lá saber disso para alguma coisa. Portanto, ele percebeu que a opinião dele podia, de certa forma, condicionar, de alguma maneira, a minha carreira, o meu gosto pelo fado e, então, a primeira coisa que fez foi logo, imediatamente, arranjar o meu número de telefone, telefonar-me a pedir desculpas e dizer que tinha gostado muito, que era um belo disco, fresco, novo e bem cantado. Dificilmente encontraria alguém que tivesse o mesmo cuidado que Carlos do Carmo teve com as gerações mais novas — e cruzei-me com várias pessoas da geração dele. Foi aí que conheci o Carlos do Carmo.

Mas há uma coisa curiosa, associa-se muito o fado a maturidade, ou seja, há a ideia de que uma pessoa só poderá cantar fado se tiver uma certa maturidade e, daí, associar-se o fado a gerações mais velhas. Mas também é verdade que o fado acabou por ser resgatado, justamente, pelas gerações mais novas.

Não concordo a 100% com essa ideia de que as pessoas mais novas não conseguem, não concordo muito. Concordo é com a ideia de que há letras muito específicas que, sim, precisam que passemos pelo processo: letras que falam do amor de uma forma muito profunda, por exemplo. Agora, quando se fala de um amor pela cidade, quando se fala de um amor pelo fado, de tenra idade, isso pode acontecer. Acho que sim, a questão da maturidade coloca-se, mas em fados muito específicos: fados que falam de uma relação muito sofrida entre um homem e uma mulher e que têm filhos, aí sim, aí não faz sentido um puto com dezanove anos ou mais novo que nunca teve filhos, que nunca teve uma mulher, que nunca foi casado, cantar uma letra forte dessas. Agora, de uma forma geral, o fado fala sobre amor, e a intensidade da forma como nós amamos e como nós sentimos as coisas, não tem muito a ver com a idade. Essa maturidade é mais para relações, agora, posso ser apaixonado pela cidade de Lisboa e quando canto “Lisboa Menina e Moça” ser altamente intrínseco e estar aqui dentro. Quando olho para o Rio Tejo, por exemplo, acho que isto é tudo uma beleza gigante, portanto, sim, algumas coisas, não de uma forma geral. Acho que há fados que podem ser interpretados por malta nova — já foram várias vezes, até — e que têm uma intensidade enorme.

“Conheço muito bem o repertório do Carlos do Carmo, trabalhámos muito bem os arranjos deste disco para pô-los em cima de um palco, as pessoas adoram ter um concerto em que reconhecem todos os temas e onde começam a trautear e a cantar.”

Marco Rodrigues

Mas achas que há uma nova geração — já desde algum tempo, na verdade — que tem dado uma nova abertura e uma nova roupagem ao fado e que tem contribuído, até, para aproximá-lo dos mais jovens?

Vamos lá ver se consigo explicar bem isto. Fiz parte da nova geração durante muitos anos, e fiz parte da nova geração na altura em que, de facto, passou Património Imaterial da Humanidade. A minha geração — que é a geração da Carminho, do Zambujo, da Ana Moura, de um sem número de fadistas, da Mariza — passou pelo período em quem efetivamente o país, de uma forma geral, começou a dar mais importância a esta música. Agora, o que aconteceu com a nossa geração é o que acontece com todas as músicas tradicionais do mundo. Quem faz uma música tradicional, quem faz um tango, por exemplo: hoje em dia, quem toca um tango é impossível tocá-lo, exatamente, da mesma maneira que era tocado pelo Piazzolla, há não sei quantos anos. Porquê? Porque somos a influência da música, das pessoas, de tudo o que se passa à nossa volta e nós, hoje em dia, temos inúmeras influências que, naturalmente, vão influenciar a música que nós fazemos. Portanto, o fado que se faz hoje-em-dia é por pessoas apaixonadas pelo fado, mas que são de hoje-em-dia, que vivem hoje-em-dia e que partilham a música hoje-em-dia, não partilham a música do jazz dos anos 50.

Ao contrário do Tango, por exemplo, foi o exemplo que dei há pouco, o tango teve um músico que quase aboliu os cantores — foi o Piazzolla. Passou, praticamente, a ser uma coisa instrumental e deixou de ter um intérprete, um cantor, praticamente. Ele teve essa capacidade, bem ou mal, de alterar completamente o percurso do tango e, daí, desta música tradicional. É uma música que vive muito da tristeza, vive muito da nostalgia, da revolta, de todas essas coisas. Agora, no fado é impossível, porque no fado, a palavra é que ia para dentro do bairro e, dentro do bairro, é que se cantava a palavra que cada pessoa que tinha saudades de um ente querido que via a sair daqui no cais, do Porto de Lisboa, sentia: ia para dentro do bairro e tinha de conseguir partilhar essa nostalgia, essa saudade, essa tristeza com todo o resto do bairro. Então arranjou-se uma música simples para o fazer. Portanto, as gerações são o que são, as gerações vivem da forma como vivem, fazem a música influenciada perante aquilo que ouvem, aquilo que sentem e as pessoas que têm à volta delas.

Os temas deste novo álbum são bastante ricos em arranjos, têm uma outra roupagem bastante rica e, até, bastante abrangente a nível instrumental. Houve cuidados, alguns desafios na forma como se pensou esta nova abordagem?

Acho que cuidado há sempre. Quando nós trabalhamos, e trabalhamos de uma forma séria, temos sempre cuidado com aquilo que fazemos. A verdade é que o legado do Carlos do Carmo implica muito mais cuidado. Tem o peso de uma história, tem o peso de ter sido um dos cantores que teve músicas mais incríveis a nível de canções. Não de fados, teve fados incríveis, mas grande parte do repertório do Carlos do Carmo são canções de fado e não fados tradicionais: para as pessoas é a mesma coisa, mas para quem faz fado existe alguma diferença. Tem fados tradicionais que ele os colocou a um nível incrível, mas tem também uma importância gigante num tipo de canção que existiu durante um período em Portugal, durante a altura do Paulo Carvalho, do Fernando Tordo, portanto, há aqui uma série de intérpretes e compositores que fizeram, criaram uma canção. É verdade, sim, a responsabilidade dos arranjos é de Luís Figueiredo, que é uma pessoa que está entre o jazz, a música de câmara, o fado também, por ter trabalhado com a Cristina Branco há algum tempo. É, portanto, alguém que tem uma série de aberturas musicais que me permite olhar para os temas do Carlos do Carmo com a tranquilidade que eles precisam: depois foi só pôr o gosto pessoal do próprio Luís Figueiredo, a nível de arranjos, e pôr a minha forma interpretativa em cima desses temas.

O concerto de apresentação do disco foi em Lagoa. Do que já apresentaste, qual tem sido a receção a este disco?

Tivemos dois concertos, um em sala cheia, o outro nas festas de 25 de Abril, em Odemira, também, com milhares de pessoas à nossa frente, foi muito boa. A recetividade das pessoas é maravilhosa. Conheço muito bem o repertório do Carlos do Carmo, trabalhámos muito bem os arranjos deste disco para pô-los em cima de um palco, as pessoas adoram ter um concerto em que reconhecem todos os temas e onde começam a trautear e a cantar. A mim, deixa-me muito contente ter o privilégio, a possibilidade de ser o primeiro dos fadistas da minha geração a poder fazer uma homenagem ao Carlos do Carmo, sem dúvida.

O processo de seleção dos temas como é que foi?

Olha, em primeiro lugar, deixa-me dizer-te que há aqui uma grande responsabilidade do Becas do Carmo, ou seja, o filho mais velho do Carlos do Carmo com quem já trabalhei durante muitos anos e de quem sou um grande amigo. Resolvi falar com a Universal Music e disse que gostava muito que o Becas fizesse ou fosse o responsável pelo alinhamento deste disco. A verdade é que havia temas que eu pus logo à cabeça que para mim não fazia sentido não gravar, não só por serem temas muito conhecidos, mas também por haver uma coisa ou outra, particularidades nesses temas que me faziam lembrar o Carlos do Carmo. Lembro-me, por exemplo, do Duas Lágrimas de Orvalho, um tema que o Carlos do Carmo celebrizou, é um fato tradicional, e que o canta divinalmente, pronto. Mas nas alturas em que fiz os coliseus para o Carlos, cantei o Duas Lágrimas de Orvalho e a Judite, a mulher do Carlos do Carmo, muitas vezes vira-se e diz: “Estás a ver Carlos? Gosto é assim desta forma de cantar. Acho que o Marco canta melhor este tema do que tu.” O Carlos do Carmo diz: “Já me estás a arranjar problemas, Marco! Não te chamei para isto, pá!”. Portanto, há aqui um tema ou outro que entrou, não por ser um tema que toda a gente exigisse numa homenagem ao Carlos do Carmo, mas porque tinha uma coisa ou outra que, para mim, fazia sentido e por isso também constam lá, para lembrar-me dele dentro deste disco.

Uma coisa que reparei – estávamos a falar dos arranjos há pouco — é que abrem bastante o leque, até pelas influências musicais do Luís Figueiredo, mas também dão a impressão de mais orquestra e, até, algo mais cinematográfico, até. Isso também foi, mais ou menos, discutido contigo e até com os filhos do Carlos do Carmo, ou foi da inteira responsabilidade do Luís Figueiredo?

São da inteira responsabilidade do Luís [Figueiredo]. Tenho sempre uma ideia nos temas todos. Há sempre uma ou outra ideia, ou porque acho que fica melhor, ou porque acho que é mais confortável, ou porque acho que, tradicionalmente, na construção do fado, faz mais sentido. Tenho sempre opiniões para dar, mas a responsabilidade destes arranjos é do Luís. A verdade é que os temas do Carlos do Carmo que tu dizes, e muito bem, que têm assim uma orquestração quase cinematográfica e uma coisa assim mais evoluída, ou seja, os temas do Carlos do Carmo são temas desses, são temas que se prestam a isso. São temas que também já foram gravados com orquestra. É o que eu te estava a dizer há pouco, o Carlos do Carmo tem uma altura da carreira dele que tem aqui um tipo de canção, que também é a nossa canção, à portuguesa. Nós temos o fado e temos o folclore, temos a música pimba, e temos aqui, também, a canção portuguesa que é dessa altura, é da década de 70, da década de 80, em que tínhamos Paulo Carvalho, Fernando Tordo, Carlos do Carmo, Carlos Mendes, uma série de cantores e compositores cuja forma de fazer música era esta, era uma forma muito mais elaborada, digamos assim, do que construir um fado tradicional. Portanto, sim, é verdade, é uma forma de olhar para os temas, mas é uma forma de olhar para os temas já naturalmente, tendo os temas esse tipo de textura, digamos assim.

Capa do disco “Marco Rodrigues Canta Carlos do Carmo” / DR

Em álbuns passados já nos tinhas apresentado composições tuas. É algo que podemos esperar mais no futuro, da tua parte? Gostarias de explorar mais essa via?

Claro que sim. Aliás, isso é um desafio para mim mesmo, até porque reconheço  que é uma parte que  fiz evoluir durante algum tempo, mas depois a parte interpretativa para mim fazia mais sentido e, então, desliguei-me um bocadinho e fui um bocado preguiçoso e não evolui muito mais a composição, mas a composição é uma coisa que sai naturalmente e, a qualquer altura, nós podemos construir um tema que acaba por ficar muito grande e nem sabemos de onde é que ele saiu, mas isto é uma coisa quase natural. Claro que sim, quero muito, se calhar num próximo disco, até arriscar mais em composições novas minhas do que tenho feito até agora. Tenho tido um ou dois temas, em cada disco, da minha autoria. Não tenho feito disso quase uma matriz, mas quem sabe.

Mas tens composições na gaveta à espera da altura certa para sair, que vás compondo assim por ti?

Tenho muitas, mas não sei se, alguma vez, aquilo vai sair. Depende muito do próximo trabalho que eu vá fazer, qual será a abordagem, se faz sentido ir buscar aqueles temas que eu já fiz há uns anos, se faz sentido tentar compor coisas novas, se faz sentido nem sequer pensar nisso. Não sei, mas a tua pergunta faz todo sentido, é uma parte que gostava de conseguir fazer evoluir, sem dúvida. Aliás, já compus mais para outros fadistas do que propriamente para mim, portanto. Sim, quero evoluir para mim também.

Os familiares do Carlos do Carmo, ou até artistas com quem ele tenha colaborado, já te deram algum feedback do resultado final? Ou seja, chegaste a mostrar a alguém o resultado final?

O filho dele, o Becas do Carmo, já conhece, a mãe dele [a esposa de Carlos do Carmo] já conhece e adorou, deu-me os parabéns e mandou uma mensagem. Deixa-me muito contente. Toda a minha equipa está muito feliz com o resultado final. Quando assim é, normalmente, o feedback é sempre positivo.

Quando estás na posição de intérprete, o que é que valorizas mais na altura de escolher um tema de fado?

Em primeiro lugar, o fado vem muito da mensagem, da história que nós estamos a contar. Temos uma outra coisa que torna isto tudo muito mais simples: posso gostar muito de um fado, de uma música de fado, mas não sou grande fã da letra ou não me identifico com a letra. A partir do momento em que faças uma letra com aquela métrica, podes cantar trinta histórias diferentes numa só música. Posso dar um exemplo muito rápido, conheces o Povo que Lavas no Rio? “Povo que lavas no rio/ que talhas com teu machado/ as tábuas do meu caixão.” Há um outro fado tradicional, com a mesma música, que diz: “Na Igreja de Santo Estêvão/ junto ao Cruzeiro do Adro/ houve em tempos guitarradas.” Já viste a disparidade da mensagem que tu estás a dizer? A música é, exactamente, a mesma. [Começa a cantar as duas letras]. Estás a ver? São duas mensagens completamente diferentes, exactamente com a mesma música. Essa é uma das grandes capacidades do fado, é nós podermos, como intérpretes, pedir uma história nova para cantar nessa música.

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