Entrevista. Maria Fernanda Cândido: “Se nos aproximarmos do imundo, ficamos a perceber que não é imundo. Se o imundo não é imundo, toda a moral do mundo se desconstrói”
Foi modelo, foi apresentadora. É atriz. Aos 49 anos, Maria Fernanda Cândido possui uma beleza serena e intemporal. Certa para uma identificação com a personagem após a leitura do romance Clarice Lispector, tal é a sua fusão com o trabalho do realizador Luiz Fernando Carvalho que agora pode ser apreciado na sala de cinema.
É um jogo performativo que domina o ecrã. Justamente, na medida em que vai esculpindo as palavras ao longo do inebriante fluxo de consciência que a leva de uma vida serena e despreocupada ao terror, mas também ao desejo, perante a proximidade instalada de uma barata esventrada e agonizante. A ideia só será excessiva para quem não estiver preparado para enfrentar o outro, enfim, o seu próprio duplo. Ainda que na sua forma mais radical. Não será isso que nos leva até a questionar o valor das experiências?
Sobre a proximidade extrema com esse inseto rastejante que domina o romance, a atriz esclareceu a sua especificidade, na nossa entrevista no Porto, que “a barata é um bicho muito mais poderoso que nós. Como se diz no filme e no livro, elas passaram pelo degelo e estão aí marchando lentamente. Podem ser imundas, mas muito poderosas”.
A primeira vez que Maria Fernanda Cândido leu A Paixão Segundo G.H. foi há duas décadas atrás. Contudo, antes ele já lhe ‘passava’ pequenos trechos para leitura, por vezes, apenas uma página. “Fui-me encantando com aquilo até que me deu o livro. Na época foi muito avassalador. Foi também como você, li o livro num fôlego. Alguns anos depois (uns 6 anos), o Luiz disse que queria fazer um filme e que queria que eu fosse a personagem de G.H”.
Seguir-se-iam outros projetos ao longo de uma colaboração de uns vinte anos e que envolveu (por exemplo, as mini séries Capitu, e Dois Irmãos). Em 2017, Luiz lança-lhe finalmente o desafio para encarnar G.H. Assim começa uma espécie de residência artística, num barracão rural, ensaiando ao longo de um ano, muitas horas por dia. No ano seguinte seria a rodagem, embora co uma interrupção e adiamento durante pandemia. À relação profissional entre a sensibilidade e afinidades de ambos, a atriz chega a comparar à fértil colaboração entre Hanna Schygulla e Rainer Werner Fassbinder.
É a partir dessa relação profissional de cumplicidade que se traça o desafio de se fundir nas palavras de Clarice Lispector e de alcançar a personagem G.H. Sim, um caminho feito de desafios. “Sabemos que temos de atravessar esse espaço e que temos de chegar ao outro lado. Mas eu gosto dessa ideia de chegar ao outro lado. Chegar à coisa”. Por isso questiona: “Mas que coisa é essa? Este é um filme sobre a paixão, sobre a paixão segundo G.H., mas também a paixão segundo Luiz Fernando e segundo Maria Fernanda”, sintetiza. “É a ‘via crucis’ (a via sacra). É ficar dentro da ‘coisa’”, como nos diz.
E, dentro da ‘coisa’, será dentro do problema, ou seja, das contradições, das dúvidas, dos pensamentos opostos. Ou seja, de uma disponibilidade total. “Essa forma de fazer não tinha como ser diferente. De outro modo iriamos matar o livro. O livro é isso. É essa coragem de se entregar ao desconhecido, caminhar essa trajetória, andando passo a passo, fazendo essa ‘via crucis’. Fazer uma adaptação não faria o menor sentido. Foi um pacto com o Luiz”.
A tal paixão feita de opostos e contradições leva-a a criar uma zona de empatia obsessiva com o animal constituída por diversas camadas até almejar a própria divindade. É o que o livro nos propõe e o filme cumpre. “O que se vive é indizível. Mas é isso que ela faz. O que ela diz já não é o que viveu. E ela vê que isso não é possível. Por isso vai criar. E assim passa por todas as instâncias da vida dela”.
Ao longo de um jogo de opostos, em que G.H. decide o contacto mais próximo com o ‘imundo’, uma das questões que o filme nos coloca mais do que o livro, “pois não podemos deixar de contemplar a classificação invertida daqueles que são considerados imundos e dos não imundos. É assim que ficamos a pensar no outro”. Esta ideia é, em si mesma, de uma enorme potência: “Se nos aproximarmos do imundo ficamos a perceber que não é imundo. Se o imundo não é imundo toda a moral do mundo se desconstrói. É um elo filosófico muito engenhoso”.
E se, afinal de contas, a ideia do filme for também seja questionar a ideia do ancestral domínio masculino? Pois aí, sente-se apenas a omnipresença do homem, mas também de um amor que se extinguiu. Daí o desafio: “Ela precisa de se preparar para uma luta; de morrer e renascer. É aí que o filme é visto como um corpo”.