Entrevista. Mariana Alves: “Temos de começar a tornar obrigatório o ensino da geriatria em todas as Faculdades de Medicina”
Só há dois países na União Europeia em que a geriatria não é uma especialidade médica, Grécia e Portugal. Nas universidades portuguesas de medicina o programa curricular referente a esta área ainda é incipiente, explica Mariana Alves, médica internista e professora da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, em entrevista à Comunidade Cultura e Arte (CCA): “apenas duas ou três universidades têm esta formação em geriatria. É obrigatória aqui em Lisboa, tanto na Faculdade Nova como na Faculdade de Medicina de Lisboa, mas é optativa, por exemplo, em Coimbra e, em outras faculdades, nem sequer está contemplada, pelo menos com este nome e com esta designação no programa curricular.“
Mariana Alves refere ainda que dois terços do período de fim de vida dos portugueses é passado com perda de funcionalidade e dá o exemplo da Alemanha em que, por exemplo, os seguros de saúde: “só financiam serviços de ortopedia que tenham um geriatra lá dentro, porque sabem que assim vão reduzir as complicações, os custos associados e o prolongamento do internamento.“. Lança ainda o alerta que em Portugal se prescreve demais e que, por isso mesmo, para a terceira idade, deveria existir um médico centralizador, idealmente com formação em geriatria, para avaliar quais os medicamentos essenciais para o idoso e quais o médico já pode suspender. Avisa também que os altos custos para a saúde não se devem à população idosa, mas sim à nova tecnologia na saúde e à alta carga económica dos medicamentos em si. Quanto à insuficiência de uma rede de cuidados continuados, a médica internista explica que o mais benéfico para a população idosa seria apostar-se nas equipas de cuidados continuados integrados ao domicílio, uma vez que é muito importante para esta faixa etária estar num ambiente que lhe seja familiar, principalmente em contexto de demência.
Portugal e a Grécia são os únicos países da União Europeia sem a especialidade de geriatria. Porque é que a especialidade seria tão importante e como melhoraria a saúde para a terceira idade?
À semelhança do que acontece nos outros países, há uma evolução na diferenciação dos médicos nas diferentes áreas, que são cada vez mais específicas. Isso faz com que a qualidade dos serviços seja de maior qualidade. Aqui há um problema adicional, que é o facto de, na nossa formação enquanto médicos, termos poucas ou nenhumas bases de geriatria. Quanto a Portugal, os alunos de Medicina e esta geração de médicos não foram treinados nos princípios da geriatria, uma especialidade que já está muito desenvolvida em outros países, mas no nosso ainda não está. Isso faz com que os médicos não estejam alerta para o risco das interações medicamentosas, assim como o risco e a necessidade da abordagem de um doente que tenha sofrido quedas para avaliar a gravidade dessa situação. Não há essa resposta diferenciadora que poderia e pretenderia melhorar a qualidade de vida dos idosos e garantir, assegurar ou manter a sua funcionalidade. Um dos principais objetivos da geriatria, mais do que quantidade de vida, seria alargar e aumentar a qualidade de vida da nossa população idosa. Como mostram também as estatísticas europeias, Portugal está bastante bem na sua esperança média de vida mas se compararmos com outros países a esperança média de vida com a qualidade de vida encontramos uma grande diferença. Em Portugal, dois terços do período de fim de vida, acima dos 65 anos, são passados com perda de funcionalidade. Uma pessoa que deixa de conseguir vestir-se sozinha, tomar conta de si própria e de ir às compras perde esta funcionalidade durante muitos anos, na fase da terceira idade. Um dos objectivos da geriatria passa por assegurar a funcionalidade durante mais tempo e melhorar, neste sentido, a qualidade de vida da população idosa.
“Um dos principais objetivos da geriatria, mais do que quantidade de vida, seria alargar e aumentar a qualidade de vida da nossa população idosa.”
Para contextualizar, é diferente uma pessoa idosa recorrer a um ortopedista com uma base em geriatria para tratar de uma fractura, do que recorrer a um ortopedista sem essa componente ou que não seja seguido por um geriatra.
Temos, até, esta comparação que é relativamente recente na Alemanha. Apresentei o contexto de um sistema de saúde diferente, mas os seguros de saúde, na Alemanha, só financiam serviços de ortopedia que tenham um geriatra lá dentro, porque sabem que assim vão reduzir as complicações, os custos associados e o prolongamento do internamento. Os doentes idosos que têm fracturas, têm uma causa para essas fracturas que não é avaliada naturalmente por um ortopedista cuja competência é corrigir cirurgicamente a fractura. Não faz parte da competência de um ortopedista, no entanto, estudar a causa da queda e, por conseguinte, gerir as complicações médicas que são muito frequentes nestes doentes idosos com pluripatologia e que são, como tal, polimedicados. Para esta visão holística, seria fundamental o doente idoso ser visto, idealmente, por um geriatra ou por um internista com formação em geriatria.
“Portugal está bastante bem na sua esperança média de vida mas se compararmos com outros países a esperança média de vida com a qualidade de vida encontramos uma grande diferença. Em Portugal, dois terços do período de fim de vida, acima dos 65 anos, são passados com perda de funcionalidade.”
Em certos países há consultas de quedas, ou seja, quando uma pessoa cai já a partir de uma determinada idade, há um seguimento.
As Guidelines Mundiais de Quedas, apresentadas há dois anos no Congresso Europeu de Geriatria, alertam muito claramente para isto. Deve haver um screening, um rastreio do risco de quedas na população idosa com mais de 65 anos. Se o doente tem baixo risco de quedas – um dos factores determinantes é que não tenha caído nos últimos 12 meses – então basta fazer uma pergunta anual para se averiguar se tem estabilidade na marcha e fazer essa avaliação. Se o doente caiu uma vez nos últimos 12 meses, já pontua para um doente com alto risco de quedas e, por isso, deve haver uma avaliação e uma intervenção para evitar que volte a cair e tenha uma fractura, caso ainda não a tenha tido. Estes doentes que são vistos no serviço de urgência sem fracturas, sem hemorragias cranianas, e têm alta sem outro seguimento. Era muito importante que tivessem, no entanto, um seguimento multidisciplinar, como compete à geriatria, tanto pela parte da enfermagem, como pela parte da geriatria em si, assim como a revisão da terapêutica e a avaliação da componente física por fisiatras e fisioterapeutas. Seria muito importante ter esta competência e esta avaliação multidisciplinar para evitar que o doente volte a cair, porque a queda em si é um factor de muito alto risco e de muito mau prognóstico para o doente. O doente que caiu uma vez tem alto risco de voltar a cair com consequências e, novamente, voltamos ao mesmo, ter a perda de funcionalidade e ter a perda de qualidade de vida.
Mas ainda acha que há alguma resistência por parte da classe médica em relação à especialidade da geriatria cá? Porque é que ainda não temos essa especialidade então?
Penso que há sempre resistência e é normal haver resistência à inovação e àquilo que é diferente do habitual. Isso faz parte e também se viu na realidade da medicina de urgência ou de emergência, em que houve essa resistência e depois foi ultrapassada. Isto é um percurso que todas as novas especialidades, mesmo já não sendo novas noutros países, têm de traçar. De qualquer forma, também não acho que tenha de ser uma especialidade no imediato. Pode, inicialmente, começar por ser uma subespecialidade em que haja um treino específico para um subgrupo de médicos que possam ganhar este treino para, depois, poder informar outros médicos e ter, assim, a especialidade mais formal e mais oficial. Penso que é esse o caminho que deve ser traçado: depois de termos esta competência que já temos criada, criar uma subespecialidade e reconhecer a geriatria como subespecialidade para depois podermos progredir, naturalmente, para a especialidade em si.
Na sua primeira resposta focou, também, a deficiência de um currículo para os estudantes universitários que estudam Medicina. Ainda não temos na totalidade das nossas universidades uma componente de estudo direcionada para a geriatria.
É verdade. Actualmente são poucas, apenas duas ou três universidades que têm esta formação em geriatria. É obrigatória aqui em Lisboa, tanto na Faculdade Nova como na Faculdade de Medicina de Lisboa, mas é optativa, por exemplo, em Coimbra e, em outras faculdades, nem sequer está contemplada, pelo menos com este nome e com esta designação no programa curricular. É uma das coisas que temos de combater e penso que é por aqui que vamos e temos de começar: tornar obrigatório o ensino da geriatria em todas as Faculdades de Medicina, porque todos os médicos, a não ser o obstetra e o pediatra, vão necessariamente contactar com a população idosa e, portanto, têm de estar alerta para as particularidades e as atipias da população idosa entre si. É fundamental começar por aí, identificar este problema e começar por tratá-lo.
Como também já abordou, vivemos mais tempo, mas grande parte desse tempo extra que vivemos é sem qualidade de vida, os tais dois terços da nossa velhice que vivemos sem qualidade de vida. Tendo em conta também que somos um país envelhecido, não temos uma rede de cuidados continuados que seja suficiente, como olha para esta questão?
A rede de cuidados continuados integrados é uma boa ideia, mas com uma difícil concretização e, mais uma vez, está muito focada para a reabilitação do doente jovem que perde funcionalidade e muito pouco para a reabilitação e recuperação do doente idoso, com as particularidades que o doente idoso apresenta. Infelizmente, não só esta rede não dá a resposta necessária, como mesmo que pudesse dar essa resposta em números, a verdade é que a qualidade do serviço prestado nem sempre corresponde às necessidades da população idosa e frágil que, muitas vezes, temos no hospital. Considero que o ideal e o mais importante para esta população não seria estarem internados numa clínica, numa unidade da rede nacional de cuidados continuados, mas poderem usufruir deste serviço no domicílio, aquilo que são as equipas de cuidados continuados integrados. Trata-se de uma grande mais-valia manter o doente idoso no seu local habitual, no sítio em que está confortável, em que se sente bem, em que conhece os cantos à casa para evitar situações de confusão, quadros de delírio e para que o doente se sinta mais satisfeito. Seria, sim, importante ter o reforço das equipas de cuidados ao domicílio, das equipas de cuidados continuados integrados, para poder suportar e assegurar que as famílias têm estas condições. Isto toca, também, em outro tema, os cuidadores formais ou informais, uma área que precisa de ser desenvolvida e reconhecida. Tem-se desenvolvido trabalhado nesse sentido, mas ainda está numa fase muito precoce. Por isso mesmo, quando os familiares e os cuidadores têm de abdicar da sua profissão para trabalhar e para cuidar de uma população idosa, de um familiar idoso, é uma situação económica e socialmente complexa, não é linear. Têm, portanto, de ser dadas as condições para que seja possível cuidarmos da nossa população idosa sem que isso implique, naturalmente, ter uma absoluta perda de rendimentos e sofrer consequências negativas a nível laboral.
Uma família que tenha a seu cargo um idoso com demência, pode não ter condições em casa para tratar dessa pessoa, além do trabalho, claro!
Nesse caso específico em que temos um doente com uma síndrome demencial, a demência em si é uma área muito heterogénea, em que o doente pode, ainda, ter alguma funcionalidade ou não ter quase nenhuma funcionalidade, mas implica sempre, pelo menos, uma supervisão para assegurar que o doente está em condições de segurança e que está bem. Naturalmente, isso não é compatível com o horário das 8 horas às 17 horas, o horário que a maior parte das pessoas, ou profissionais públicos têm. Isso implica, obviamente, ter alguém ou algum cuidador com um pagamento adicional a isso, ou então ter essa flexibilidade horária e poder trabalhar a partir de casa. Tudo isto tem de ser equacionado, considerado e valorizado, porque é uma mais-valia podermos apoiar os nossos idosos quando estão numa fase mais dependente da vida. O ideal é assegurar a autonomia o mais tempo possível e, isso, significa menos carga social, naturalmente. Seria importante, no entanto, nos últimos anos de vida, termos esta flexibilidade para podermos assegurar estes cuidados a nível familiar ou com outros cuidadores.
“Temos de começar a tornar obrigatório o ensino da geriatria em todas as Faculdades de Medicina, porque todos os médicos, a não ser o obstetra e o pediatra, vão necessariamente contactar com a população idosa e, portanto, têm de estar alerta para as particularidades e as atipias da população idosa entre si.”
Focou uma coisa muito interessante na sua resposta de há pouco, ou seja, a importância do idoso poder estar num sítio familiar. Imagino que, numa situação de demência, esse espaço familiar assuma uma grande importância para o idoso.
É fundamental estar num espaço familiar e ser cuidado por alguém que identifica ou com quem tem alguma ligação. Notamos muito isso até nos internamentos, quando temos doentes internados com síndromes demenciais que recusam a alimentação por estranhos, que ficam agitados no cuidado e, até, a fazer a higiene com estranhos. É muito importante, nestes contextos, termos aqui ou o cuidador ou a família presente para tentar ajudar a gerir esta situação. Sem dúvida que sim, só a mudança de ambiente em si é como se representasse uma agressão numa população idosa e frágil, particularmente quando falamos em síndromes demenciais.
Uma vez que falamos de demência, trata-se de um dos grandes problemas na terceira idade em Portugal. Mas porque é que, geralmente, as demências são detectadas já em fases tão avançadas?
As demências são, efectivamente, um grande problema na população idosa, mas não são exclusivas da população idosa. Sabemos, no entanto, que acima dos 65 anos um quarto da nossa população tem síndrome demencial. O motivo para ser diagnosticada tardiamente advém por uma questão histórica e, também, de evolução da ciência. Actualmente, ainda não temos medicamentos que possam atrasar ou fazer regredir os quadros demenciais. Mas, cada vez mais, a ciência mostra que podemos estar a chegar perto disso e é cada vez mais importante fazermos este diagnóstico num estádio precoce. Até há uns anos, a abordagem clínica do doente não iria mudar muito, caso o diagnóstico fosse mais ou menos tardio. Claro que sabemos que para o doente, para a organização familiar, para a família e para a própria pessoa, é melhor saber o quanto antes. O diagnóstico passará, naturalmente, por testes clínicos, neuropsicológicos, e tal implica uma detecção e um reconhecimento pelo próprio doente ou pelo familiar, que tem de fazer a referenciação ao médico ou médico de família e, depois, ser encaminhado para um meio hospitalar, particularmente, ou para a psiquiatria ou neurologia – pelo menos aqui em Portugal – para fazer este estudo etiológico mais detalhado com testes neuropsicológicos, quando adequado, para se poder fazer a confirmação desse diagnóstico que, na verdade, é um diagnóstico clínico que não precisa de exames muito invasivos, por enquanto. Sabemos que, naturalmente, a ciência mostra que podem existir alguns marcadores de resultantes analíticos que nos podem dar pistas e indicar o risco de ter doença de Alzheimer ou outras doenças frontotemporais. Vai ser importante fazermos este diagnóstico de forma cada vez mais precoce. Há, no entanto, todo este problema de reconhecimento e de referenciação e, infelizmente, em termos históricos, tínhamos poucas opções terapêuticas para oferecer estes doentes.
“A rede de cuidados continuados integrados é uma boa ideia, mas com uma difícil concretização e, mais uma vez, está muito focada para a reabilitação do doente jovem que perde funcionalidade e muito pouco para a reabilitação e recuperação do doente idoso, com as particularidades que o doente idoso apresenta.”
Mas será que estamos preparados para identificar pequenos sinais precoces que já possam ser identificativos de uma possível demência? Pergunto isto porque também será fácil para a família ou para o corpo médico dizer que, se calhar, estes pequenos sinais se devem apenas ao declínio da velhice?
Acho que é importante distinguir aquilo que são as alterações cognitivas fisiológicas do envelhecimento, aquilo que é considerado mais normal quando, eventualmente, há algum defeito de nomeação: não conseguirmos nomear, num determinado momento, um telemóvel quando sabemos que é um telemóvel, por exemplo. No entanto, quando já não se consegue fazer uma tarefa que seja simples, quando já não consegue, aqui na fase mais crítica, realizar aquilo que chamamos de atividades de vida diária – o vestir-se, comer, preparar a sua refeição – aqui já entramos no campo das demências. Antes disso, quando há um defeito de memória ou uma alteração do comportamento, podemos estar numa fase inicial de um défice cognitivo ligeiro e, esta, seria a altura ideal para se fazer a avaliação e, depois, manter uma vigilância para ver se estes doentes evoluem efetivamente para síndromes demenciais – nem todos evoluirão – ou se se mantêm estagnados. Outro ponto muito importante na avaliação cognitiva dos doentes são os quadros de défices nutricionais que podem, eventualmente, conduzir a alterações cognitivas ou a um diagnóstico diferencial, por assim dizer, de demências, como um défice de vitamina B12 ou de ácido fólico. Devemos sempre fazer este rastreio quando temos alterações cognitivas no doente idoso e, também, nunca esquecer outro grande imitador das síndromes demenciais, a depressão. A saúde mental também é um outro grande problema e a depressão na população idosa, às vezes, pode-se manifestar com alterações de memória e, por isso mesmo, o clínico também tem de estar alerta. Considero que tem vindo a ser feito um trabalho de sensibilização dos profissionais de saúde e que esta é uma área para a qual tanto a população como os profissionais de saúde estão cada vez mais alerta, o que nos vai permitir também fazer os diagnósticos mais precocemente.
Também tem chamado a atenção para as nossas perdas sensoriais – a perda de audição, por exemplo – e que isso pode levar a outros problemas mais tarde como, por exemplo, a falta de interação porque uma pessoa que não ouve pode-se retrair mais no contacto com as outras pessoas. Há prevenção a esse nível? Dá-se a importância devida a estes factores?
Talvez não o suficiente, mas isso é uma mensagem fundamental a ser passada. Assumimos que o doente tem problemas de audição e que isso não precisa de ser resolvido. Os problemas de audição são um dos factores de risco para as demências e é uma das coisas que deve ser avaliada neste contexto. A Organização Mundial de Saúde propôs, há um ou dois anos, a estratégia ICOPE [Atenção Integrada para as Pessoas Idosas] que, efetivamente, pretende fazer o rastreio dos vários pontos fundamentais que garantem a não perda de funcionalidade, com o objetivo de evitar a perda de funcionalidade na população idosa. Existem vários parâmetros, sendo dois deles a audição e a visão. Estes dois recursos são fundamentais, não só para o doente estar em segurança, em casa, para conseguir ver os obstáculos que tem à frente e evitar o risco de quedas, mas também para poder interagir com os outros e facilitar a socialização, que é outro ponto fundamental. A socialização é, em si, importante para evitar o risco de demências e de défices cognitivos. A estratégia ICOPE inclui várias outras coisas que são muito importantes, incluindo a mobilidade, a nutrição, o rastreio do défice cognitivo, da síndrome depressiva e outros marcadores e pontos importantes na população idosa, como a prevenção de quedas, a incontinência urinária, relembrando que é muito importante não esquecer o cuidado aos cuidadores. Esta estratégia ICOPE ainda não está adequadamente desenvolvida no nosso país, infelizmente, mas espero que seja um dos passos a integrar nos cuidados de saúde primários e também nos cuidados hospitalares, em consultas de geriatria, e fazer sempre este rastreio para poder identificar precocemente estas potenciais pequenas lacunas que, depois, vão ter repercussão na nossa qualidade de vida, bem-estar e na perda de funcionalidade.
“Quando os familiares e os cuidadores têm de abdicar da sua profissão para trabalhar e para cuidar de uma população idosa, de um familiar idoso, é uma situação económica e socialmente complexa, não é linear. Têm, portanto, de ser dadas as condições para que seja possível cuidarmos da nossa população idosa sem que isso implique, naturalmente, ter uma absoluta perda de rendimentos e sofrer consequências negativas a nível laboral.”
Uma das questões muito abordadas é a sobredosagem medicamentosa na terceira idade. Como olha para esta questão? Medicamos muito em Portugal?
Sem dúvida que sim. A nossa população – não só em Portugal, mas também – toma muita medicação, muitos medicamentos neurolépticos, muitos medicamentos sedativos, e sabemos que quantos mais medicamentos tomamos, maior é o risco de complicações por si só, mas também devido às interacções com outros medicamentos. Este alerta é fundamental. Claro que isto é muito mais fácil de dizer do que desprescrever, realmente. Trata-se de um desafio porque, muitas vezes, há crenças relacionadas à importância dos medicamentos e que mais quantidade é mais qualidade. Isso não é verdade em muitas coisas, particularmente nos medicamentos. É sempre importante termos a certeza de que não se deixa o doente com o medicamento só por deixar. Tem de ser reflectido se o doente precisa mesmo deste medicamento e se não pode ser retirado. Trata-se de um passo fundamental. Outra coisa que ainda não temos muito bem implementada no nosso país, ainda, são as consultas de desprescrição. Alguns centros já têm consultas de desprescrição e fazem esta revisão, a conciliação terapêutica, comparando toda a medicação que se faz, vendo o que é que pode estar em falta e o que é que pode ser acrescentado. Esta é outra das áreas que pode estar incluída em consultas de geriatria, para se fazer esta avaliação, também, em conjunto com os farmacêuticos ou com os farmacologistas clínicos.
Mas porque é que esta sobredosagem acontece? Pode haver também aqui uma falha de comunicação, por exemplo, entre as diferentes especialidades que o idoso consulta? Há falta de comunicação do sistema?
Quando o doente vai a cada médico especialista – ao cardiologista, ao pneumologista, ao gastroenterologista – cada um foca-se muito na sua patologia e não vê o doente no seu todo, tendo em conta outros medicamentos e outras interações que possam ocorrer. Existe uma cultura de se evitar retirar medicamentos colocados por outros médicos e, assim, passa-se a responsabilidade para o médico que introduziu esse medicamento. Acho que é importante haver um médico centralizador – pode ser o médico de medicina geral e familiar, o médico de medicina interna, o geriatra – com competência em geriatria, idealmente, que faça esta revisão da medicação e veja qual é a que o idoso precisa mesmo de tomar e não pode ser reduzida ou suspensa. Naturalmente, esta variedade e a ausência ou a dificuldade em se ter um médico centralizador poderá ser um dos problemas. Acho, também, que se trata de uma questão cultural enraizada na população que acha que tomar medicamentos é bom. Às vezes vai-se ao médico e se não se toma um medicamento, pode ser assumido como uma coisa má. É preciso mudar esta cultura e perceber que, sem dúvida, há muitos medicamentos que são essenciais, mas outros, se calhar, já podem ter alguns efeitos adversos e devem ser evitados, particularmente nesta população idosa.
Quanto aos elevados custos da saúde, também tem vindo a desmistificar este mito: de que seria pelo facto de termos uma população envelhecida que há um elevado custo no nosso sistema de saúde. Quer falar mais um pouco sobre isto?
Isso é um dado importante que tem sido até apresentado pelo Dr. Eduardo Costa e o Dr. Pedro Barros, que fazem muito esta análise dos custos associados à saúde e que já demonstraram, claramente, que não é o envelhecimento da população que leva a um encargo económico por si, pelo envelhecimento. Tem a ver, sim, com os novos desenvolvimentos, a nova tecnologia na saúde e, naturalmente, os medicamentos que são uma grande carga económica na saúde e que, efectivamente, são utilizados pela população idosa também, mas não é pelo envelhecimento em si. É, sim, pelo desenvolvimento de novas tecnologias que inclui os fármacos. Se formos a ver, mesmo esses medicamentos que são mais caros e que, muitas vezes, aparecem nas notícias pelo seu preço exorbitante, a maior parte deles são para doenças raras em população jovem e não, propriamente, para uma população idosa. Claro que quanto mais pessoas tivermos, quanto mais população houver, vamos ter mais custos, mas não é pelo envelhecimento em si. O envelhecimento tem de ser encarado como um sucesso, como uma coisa positiva da nossa sociedade, uma mais-valia. O facto de termos a população idosa entre nós é uma mais-valia. Termos esta experiência e este conhecimento tem de ser visto como uma mais-valia e não como uma carga económica associada à saúde.