Entrevista. Marisa Matias: “Estamos há quase 50 anos em democracia e nunca tivemos uma mulher presidente”
O projeto Os 230 não podia deixar passar em branco as eleições presidenciais de janeiro de 2021 que vão resultar na eleição do próximo Presidente da República. Na primeira entrevista da rubrica “Especial Presidenciais” ficamos a conhecer mais sobre a candidata Marisa Matias, que conversou com Francisco Cordeiro de Araújo, fundador da iniciativa.
Em plena pandemia, as próximas eleições presidenciais são marcadas por uma questão particularmente sensível. Muitos portugueses podem vir a ser privados do direito ao voto, já que as pessoas infetadas com COVID-19 em Portugal nesse período não vão poder votar, com os emigrantes em países com restrições mais elevadas a poderem enfrentar também problemas.
É neste contexto que Marisa Matias fala numa “situação muito delicada” e em respostas que têm de ser criadas. “Temos de pensar muito seriamente numa forma de poder garantir que as pessoas possam votar mesmo numa situação destas”, defende.
Natural de Sé Nova, Coimbra, Marisa Matias recorda uma “infância muito feliz”, semelhante a de outras pessoas da sua geração. Fui “bastante acompanhada por parte da família e amigos e tive muito espaço e tempo para brincar”, conta.
Numa viagem pelo tempo, a candidata às eleições presidenciais recorda ainda a importância que Álvaro Febra teve na sua vida. Vizinho dos seus avós, e com quem passou muitas horas à conversa, o “comunista”, como ficou conhecido, ensinou-lhe muito sobre política e resistência antifascista, apesar de o comunismo não os unir. “Nunca me senti propriamente entusiasmada, decidida ou a abraçar a causa comunista, mas há valores que são comuns e valores importantes”, garante.
É em Coimbra que Marisa Matias inicia e conclui os seus estudos, com um doutoramento. Licenciada em Sociologia, destaca a importância que vê nas ciências sociais e nas humanidades. “Muitas vezes cometemos erros de avaliação e de decisão política por estarmos a tentar impor medidas em sociedades para as quais essas medidas nunca vão dar resposta aos problemas e, por isso, é importante conhecer essas sociedades”, explica.
Mas qual a mais valia da Sociologia no mundo da política para a eurodeputada? “Ensinou-me a incluir complexidade nas questões, a identificar os problemas sociais de uma maneira mais atenta e acho que é uma formação muito útil na minha atividade”, garante, apesar de frisar que qualquer formação é útil na atividade de representação dos cidadãos.
Das profissões “invisíveis” à política
Habituada desde cedo a ser trabalhadora estudante, Marisa Matias mostra-se surpreendida com a perda de proteção laboral e direitos laborais, destacando a precariedade que considera ser uma realidade hoje em dia. Da sua experiência profissional fica, no entanto, uma lição: “valorizar os direitos de quem trabalha e saber que termos um contrato que nos protege faz toda a diferença”.
Ter sido empregada de limpeza num bar em Coimbra motivou-a a dar visibilidade e importância a todos os tipos de trabalho. “Há muitas pessoas que acabam por ser invisíveis nas tarefas que fazem e que são fundamentais na nossa vida”, explica.
Vice-presidente da Aliança Alzheimer Europeia, Marisa Matias aborda ainda a questão da saúde mental durante a entrevista. A questão, defende, “deixou de ser tabu mas continua a ser tratada de uma forma muito diferenciada”.
Começando a vida política sem estar filiada a qualquer partido, foi apenas com 30 e poucos anos que Marisa Matias passou a ser militante do Bloco de Esquerda (BE) . E porquê? Viu no partido uma resposta em linha com a sua ideologia política, provando que “podemos encontrar em partidos uma tradução prática daquilo que defendemos”, como também os podemos influenciar. E a eurodeputada olha para o BE como o “projeto político mais completo que temos em Portugal”.
Quanto à experiência enquanto deputada, Marisa Matias considera que o trabalho feito no PE e nas instituições europeias devia ser mais valorizado visto que afeta bastante a vida de qualquer pessoa. “É um trabalho que é mais difícil de comunicar, mas a verdade é que uma grande parte da legislação que temos de aplicar em Portugal é definida em Bruxelas, às vezes para o bem, às vezes para o mal”, afirma.
E esta presença em Bruxelas fez com que a eurodeputada vivesse situações que nunca teria oportunidade de presenciar, “muitas delas trágicas e que não recomendo a ninguém”, garante. “Confrontei-me com situações mesmo muito complicadas estando em Bruxelas”, relacionadas, por exemplo, com situações de abandono e de violação dos Direitos Humanos. É neste contexto que Marisa Matias fala em “retrocessos enormes” na União Europeia.
A estratégia de Marisa Matias para as presidenciais
Tendo já sido candidata para as eleições presidenciais de 2016, Marisa Matias volta a fazer a mesma aposta e explica a razão. “Em 2016 estávamos a sair de uma situação de crise (…) e achei que era importante apresentar-me na altura. Neste momento a crise é mais recente, não sabemos quanto tempo vai durar e estamos longe de saber as consequências do ponto de vista económico e social”, explica.
E o que traz Marisa Matias nesta candidatura? “Uma proposta de resposta a situações difíceis e de recuperação do país para nos tentarmos proteger e não termos de passar por esta situação novamente”.
A eurodeputada fala, por isso, numa “proposta programática muito clara” de: defesa dos serviços públicos e da igualdade em todos os seus sentidos plenos e de uma luta contra a precariedade. Marisa Matias define o programa como “uma proposta de um país que combata todas as formas de racismo e descriminação e um modelo de desenvolvimento que finalmente comece a representar as preocupações de combate às alterações climáticas e a fazer essa transição ecológica que precisamos de fazer que está tão atrasada”. “Faz falta ter estas questões representadas”, considera.
A proposta foi para a frente, mesmo com os preconceitos associados, até, porque, afirma, “onde há relações sociais há preconceitos”. Marisa Matias confessa que numa certa altura da sua vida se preocupava muito com o que as pessoas diziam sobre si, mas agora a situação é diferente, mesmo estando ciente de que os comentários são ainda mais prováveis de surgir por ser mulher. “Estamos há quase 50 anos em democracia em Portugal e nunca tivemos uma mulher presidente”, comenta.
Quando questionada sobre o que diferencia a sua candidatura de outras, Marisa Matias tem uma resposta muito clara: “trago nesta candidatura aquilo que são causas de uma vida inteira”. E que visões é que o programa de Marisa Matias partilha com outros candidatos? Com o atual Presidente da República (PR) Marcelo Rebelo de Sousa, por exemplo, questões de agenda como as preocupações com os cuidadores informais e com as pessoas que não têm casa.
E onde é que Marisa Matias quer ver o país em 2026? “Gostava de ver um país preparado, com respostas e cuidados para todos, com direitos consagrados, que conseguiu eliminar a ameaça da extrema direita (…)”, explica.
Marisa Matias define ainda o que, para si, significa ser presidente de todos os portugueses: “Ter o interesse maior do país para todos, sem exclusões”. Aos eleitores indecisos, deixa claro que “nos votos somos mesmo todos iguais”, algo que para a eurodeputada é a principal razão para os cidadãos votarem no dia 24 janeiro de 2021. “É das poucas situações em democracia em que temos exatamente o mesmo poder de decidir o que quer que seja”, frisa.
Na entrevista, Marisa Matias explica ainda algumas das funções que o PR tem e, quanto ao poder de dissolver a Assembleia da República, fala numa “bomba atómica”, que, quanto menos for usada, melhor.
As escolhas da candidata à Presidência da República
Na segunda parte da entrevista, Marisa Matias responde a alguns “dilemas”. Quando questionada sobre o líder mundial com o qual a candidata se recusaria trabalhar, Bolsonaro é a figura eleita. De temas políticos, para outros mais pessoais, Marisa Matias não consegue escolher entre cães e gatos e os restantes dilemas também se revelam desafios particularmente difíceis.
Houve ainda tempo para a eurodeputada responder a duas questões de seguidores do projeto Os 230: Como é ser mulher numa área dominada por homens e qual a estratégia que tem perante as dificuldades dos jovens que querem ser independentes?
Confiante de que “estamos muito longe de esgotarmos todas as possibilidades” de aproximação entre cidadãos e políticos, a eurodeputada deixa uma mensagem aos portugueses no final da entrevista: “sejam felizes, mas façam por isso”.
Artigo escrito por Ana Filipa Duarte, colaboradora do projeto Os 230.