Entrevista. Mary Caiado: “Daqui a 20 anos, vejo a seleção portuguesa feminina de futebol campeã do mundo”
O futebol feminino tem ganho grande projeção na última década, tanto a nível europeu, como, de um modo muito particular, em Portugal. A entrada dos famigerados grandes clubes, como o Sporting Clube de Portugal, o Sport Lisboa e Benfica e, mais recentemente, o Futebol Clube do Porto, têm trazido, não só muitos olhares do adepto comum, mas também muitas raparigas e jovens para um caminho que pode ser de afirmação e de realização profissional. A própria presença cada vez mais assídua da seleção portuguesa – também conhecida por “Navegadoras” – nas grandes competições europeias e mundiais tem consolidado esse trilho de concretização presente e de aspiração futuro. Acompanhando os ventos da sociedade contemporânea, o desporto feminino tem, no geral, ganho um papel de relevância e de legitimação, mas nem sempre foi assim, com muitos dos clubes a não terem sequer uma secção organizada de futebol feminino. Daí que as precursoras da modalidade em Portugal merecem ser destacadas, lembrando os tempos em que havia (muito) mais caminho a ser feito.
É esse o esforço feito por Mary Caiado em “História do Futebol Feminino – A grande aventura portuguesa”, sob a alçada da coleção dos livros da Federação Portuguesa de Futebol. A evolução da expressão do desporto em solo português é, assim, minuciosamente apresentada, naquele que é o primeiro esforço de percecionar o percurso feito pelo futebol feminino em Portugal. Sobre a autora, licenciada em Ciências da Comunicação pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Lisboa, desenvolveu o seu trabalho em diversos órgãos de comunicação social nacionais, como o Público, o i, a TVI/CNN e, nos desportivos, A Bola TV e o Mais Futebol.
De onde partiu a iniciativa de desenvolver esta obra sobre o futebol feminino em Portugal?
Recebi o convite da Federação Portuguesa de Futebol para escrever este livro em março de 2023, poucos dias depois de a seleção nacional ter conseguido a vitória por 2-1, frente a Camarões, no play-off que garantiu o histórico e inédito apuramento de uma equipa feminina portuguesa para um Campeonato do Mundo de futebol feminino.
“Muitas histórias deste livro também já estão a ser uma surpresa mesmo para jogadoras que já praticam a modalidade há vários anos. No fundo, vão ficar a conhecer o legado de quem tudo fez para que hoje possam treinar, jogar e competir com condições mais dignas.”
Sentiu alguma espécie de missão em abrir a história e a evolução do futebol feminino às gerações mais novas, vindouras neste desporto?
É curioso que refira a palavra “missão” nesta pergunta, porque, no mesmo instante em que recebi o convite, perguntei se existia algum arquivo com dados que me pudessem servir de base para a pesquisa e investigação. A verdade é que me responderam que não havia obra feita sobre a modalidade e que, portanto, seria eu a escrever o primeiro livro sobre a história do futebol feminino em Portugal. Constatei que tinha pela frente um enorme desafio e que tinha de partir quase do zero, porque quase tudo estava por ser contado. E senti que era uma verdadeira missão para honrar, acima de tudo, quem já tinha dado tudo ao futebol feminino e quem continua a dar. A verdade é que muitas histórias deste livro também já estão a ser uma surpresa mesmo para jogadoras que já praticam a modalidade há vários anos. No fundo, vão ficar a conhecer o legado de quem tudo fez para que hoje possam treinar, jogar e competir com condições mais dignas.
De que maneira o seu percurso jornalístico a muniu de habilidades e de recursos para este projeto de grandes dimensões?
Há quem diga “jornalista uma vez, jornalista para sempre”. E, de facto, toda a experiência adquirida ao longo de mais de 20 anos no jornalismo, especialmente no jornalismo desportivo, foi muito importante para conseguir concretizar este desafio. Mas também o prazer que tenho em escrever e o gosto por ir à procura de histórias para as contar. Os métodos de pesquisa e investigação e as técnicas de entrevistas foram outras das ferramentas essenciais em todo o processo.
Quais foram as suas principais fontes de informação para este trabalho?
Numa primeira fase, foram documentos históricos e investigações académicas que me ajudaram, não só a descobrir quando é que o futebol feminino chegou a Portugal e quando começou a ser jogado no país, como também a fazer todo o enquadramento da prática da modalidade com a realidade nacional no geral. A aventura deste livro começa em 1918 e vai até 2024, ou seja, atravessa várias épocas e contextos sociais, políticos e culturais. Depois desta primeira pesquisa, seguiram-se as entrevistas. Nesta fase, foram os testemunhos de jogadoras, treinadores, treinadoras e dirigentes que me ajudaram a montar o puzzle e foram, sem dúvida, as fontes mais ricas.
A somar a isto, milhares de artigos jornalísticos, entre entrevistas, notícias, reportagens, peças televisivas. Também me ajudou muito uma coleção de livros encadernados pelo pai da Eugénia Teixeira – antiga guarda-redes da Seleção Nacional que jogou entre 1980 e 1995, mais conhecida por Gena no meio futebolístico. Nestes livros, além de uma imensidão de recortes das mais diversas publicações, também encontrei verdadeiras relíquias desta história do futebol feminino. Tive ainda acesso a um documento fantástico elaborado por um antigo dirigente do União de Coimbra, António Luís Monteiro. Foi nesta fonte, com o título “Contributos para a História do Futebol Feminino do Clube de Futebol União de Coimbra”, que encontrei o registo de mais de 90 equipas e os seus respetivos jogos entre 1972 e 1996.
“Se até o futebol masculino era mal visto aos olhos do regime de Salazar, o feminino era considerado uma aberração.”
Qual foi o feedback das jogadoras mais antigas de futebol feminino em Portugal com que falou sobre o projeto?
O melhor possível. Foram muitas as entrevistas com antigas jogadoras e todas se sentiram felizes por poderem partilhar as suas memórias e experiências. Foi muito importante ouvir estes testemunhos de quem se entregou à modalidade, submetendo-se aos preconceitos e às condições, muitas vezes miseráveis, de treinos e jogos. Só assim foi possível unir os pontos desta história e perceber melhor a evolução do futebol feminino em Portugal.
Que paralelismos fez do futebol feminino com a evolução da sociedade portuguesa e europeia?
Mais do que paralelismos com as evoluções social, cultural e política, que obviamente impactaram o crescimento da modalidade, penso que o crescimento se fica a dever à perseverança de quem sempre trabalhou em prol do futebol feminino. Obviamente que o regime ditatorial do Estado Novo limitou a prática do futebol às mulheres, mesmo sem uma lei que a proibisse. Se até o futebol masculino era mal visto aos olhos do regime de Salazar, o feminino era considerado uma aberração.
Na minha opinião não é correto pensarmos que os avanços deste encontram paralelo nas evoluções social, cultural e política de Portugal. Apesar da aposta crucial da Federação Portuguesa de Futebol desde 2011, a verdade é que ainda hoje há diferenças no “tratamento” entre homens e mulheres. Já se registam avanços muito significativos, e mais vale tarde que nunca, mas, neste contexto, merece uma reflexão o facto de, só a partir da época 2022/2023, terem sido implementadas em Portugal algumas regras para proteger as jogadoras, nomeadamente no que diz respeito aos despedimentos por gravidez, à licença de maternidade ou à amamentação. Posso também referir as medidas da FIFA que só entraram em vigor a 1 de junho de 2024, como as 14 semanas de licença de maternidade remunerada ou o direito a uma baixa médica, paga por inteiro, por razões de saúde menstrual. Dá que pensar.
Detetou alguma afinidade ou alguma manifestação feminista através do futebol feminino em Portugal?
O que senti sempre por parte das jogadoras, dos treinadores e das treinadoras e dos dirigentes foi uma defesa muito bem fundamentada da modalidade. Uma coisa são as injustiças de tratamento entre os homens e as mulheres e outra coisa são as diferenças naturais do jogo jogado no campo por homens e mulheres. Não podemos confundir os dois temas. Independentemente de existirem essas diferenças, porque o corpo da mulher não é igual, nem se desenvolve ao mesmo ritmo do corpo do homem, é preciso separar as águas. O tratamento fora do campo deve ser igual, ou pelo menos o mais equiparado possível. Parece-me que a evolução vai neste sentido e é assim que considero que tem de ser.
Quais foram as descobertas que mais a fascinaram e/ou intrigaram?
Não vou desvendar as histórias que mais me fascinaram e que espero que deliciem os leitores. Deixo só algumas pistas: uma viagem atribulada em 1985 da equipa do Boavista a França, em que as jogadoras reclamaram por instalações péssimas e comida insuficiente, que, depois de um jogo, se resumiu a uma sandes de pasta de fígado; ou um troféu miniatura, que cabia numa mão, para entregar à equipa vencedora da Taça de Portugal em 2004 e que motivou a saída, por vontade própria, de um selecionador nacional.
“Uma coisa são as injustiças de tratamento entre os homens e as mulheres e outra coisa são as diferenças naturais do jogo jogado no campo por homens e mulheres. Não podemos confundir os dois temas.”
Qual foi a importância que sentiu ao ter a presença da própria seleção nacional [as Navegadoras, como é agora conhecida] na apresentação do livro?
O que mais me emocionou no momento da apresentação oficial na Cidade do Futebol foi ver cada “navegadora” a folhear o livro e a sorrir ao ler passagens de algumas histórias. Se muitas delas têm noção do difícil percurso que as antecessoras tiveram de fazer até hoje, outras confessaram-me que o livro ia ser uma verdadeira descoberta. Mais que a presença, sempre importante, o mais relevante para mim é saber que cada linha que escrevi vai dar a conhecer esta história e poder servir de inspiração.
Feito este caminho, o que acha que pode ser feito para que a profissionalização e a subsequente dignificação do futebol feminino possam continuar a ser feitas?
Na minha opinião, há uma palavra que importa mais que todas as outras quando se pensa no caminho da profissionalização. É a formação. Sem uma aposta forte na base, nos pilares, no que é mais estrutural, não será possível dar continuidade ao progresso. Promover e oferecer as melhores condições desde os primeiros toques na bola é certamente o melhor caminho para captar mais praticantes e para desenvolver as suas qualidades. Paralelamente a este trabalho de formação, é preciso manter os apoios aos clubes que, embora com dificuldades, têm demonstrado querem fazer mais e melhor. A profissionalização já esteve mais longe, mas é necessário que não se perca o foco e que o trabalho que a Federação Portuguesa de Futebol tenha continuidade após a substituição da atual Direção.
“O mais relevante para mim é saber que cada linha que escrevi vai dar a conhecer esta história e poder servir de inspiração.”
Mediante esta viagem que fez, como perspetiva o futuro do futebol feminino, à luz do seu presente?
No dia da apresentação oficial do livro uma das guarda-redes da Seleção Nacional, a Patrícia Morais, perguntou-me qual a página que gostaria de escrever daqui a 20 anos. Para responder à questão desta entrevista, digo exatamente o mesmo que disse à jogadora e à plateia que me ouvia: daqui a 20 anos vejo a seleção portuguesa feminina de futebol campeã do mundo. Penso que esta resposta diz tudo o que penso sobre a evolução do futebol feminino nacional.