Entrevista. Para Arianna Casellas as canções são fundamentais, tal como o vinho à refeição

por Comunidade Cultura e Arte,    1 Dezembro, 2020
Entrevista. Para Arianna Casellas as canções são fundamentais, tal como o vinho à refeição
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Um sofá Uma história”  é uma conversa informal entre o diretor artístico do CLAV-Centro e Laboratório Artístico de Vermil com os convidados das CLAV LIVE SESSION sobre as suas carreiras, processos de criação, arte, cultura, opiniões sociais e outros temas da sociedade, ou seja, dar a conhecer ao público um pouco mais o “ser” que esta por detrás do artista. Arianna Casellas nasceu na Venezuela, e de momento encontra-se a terminar a licenciatura na Faculdade de Belas Artes do Porto. Estreou o seu EP “Concepto de Madre” editado pela Discos de Platão. 

Neste, Arianna Casellas canta o seu proto diário de viagem: uma mensagem metida em garrafa de vidro e atirada a um mar qualquer; um percurso de escadarias cujas direções não se entendem mas são giras de ver. 
Este disco navega por entre histórias de aventuras, nostalgia e muita família, acompanhado por sonoplastias discretas que espreitam nos momentos narrados das canções.
Apercebeu-se então uma paisagem sonora de memórias, projeções e emoções dignas de um pirata maroto. Ou talvez só de alguém ainda bastante jovem, defendida pelos objetos aleatórios que usou para gravar as sonoplastias que acompanham as secções narradas das canções, do seu fiél Cuatro venezuelano e pela bravura do seu coração. 
Pretende não cair no típico belo nas suas explorações/composições musicais e vocais. Às vezes, aceita a sua sina e a agradabilidade de, de facto, cantar bem. Trabalha também com os Melifluo, com os Sereias e Zygosis.

Para ela, as canções são fundamentais, tal como o vinho à refeição.

Alberto. Arianna bem-vinda ao Clav. Em primeiro lugar agradeço a disponibilidade neste feriado, primeiro de maio. Costumo sempre começar com uma pergunta muito simples, como é que foi a tua experiência aqui? Como é que foi lidar com esta Clav? Como é que te sentiste?
Arianna. Foi na verdade inovador, neste mundo profissional ainda sou pequena e nova e jovem e já é novo e a maior parte das minhas experiências a nível de concertos são sempre, primeiro diferentes bandas, mas sempre com público, não interessa quanto público mas há sempre um público, ou seja, isto por um lado tem um carácter um pouco mais frio porque são câmaras, mas por outro lado não só cheguei e comecei a tocar, ainda estive aqui um tempo com vocês e a conviver um pouco. Também faz com que se sinta como se estivesse a tocar para os meus amigos porque eventualmente já não estou a ver as câmaras, já estou só a tocar para vocês e é bastante inovador de alguma maneira, sinto-me um pouco mais desnuda, de certa forma, porque se houver várias caras não tenho que focar em nenhuma e só estou ali. Agora quando se trata de menos pessoas sinto-me um pouco mais desnuda, sinto-me um pouco mais honesta e confortável. Foi muito bonito.

Sim, foi e o público gostou imenso. Olha uma coisa, como é que nasceu em ti a música? Consegues nos explicar e dizer?
A versão romântica?! A minha mãe sempre me dizia que eu antes de falar cantava, mas por outro lado os meus pais são ambos músicos, são técnicos de som e de produção. A minha mãe depois enveredou na área da pedagogia musical para crianças com autismo e foi professora de guitarra clássica e piano clássico e então, por um lado enquanto crescia cantávamos na Venezuela. Eu tinha muito contacto com o estúdio do meu pai e destes punks todos que iam para lá tocar e dos metais e de tudo isso, mas depois mais velha também tinha mais contacto com a escola de música da minha mãe, de ir ao conservatório, e eles meteram-me no conservatório com 7 anos quando viemos para Portugal, por isso, de uma forma ou de outra o leque esteve sempre presente.

Tu nasceste em Caracas não é? Essa tua experiência de lá, as raízes têm uma grande influência na criação? Na tua criação?
Tem e, até da maneira que eu menos esperei porque quando era bem mais nova, no início da minha adolescência, eu queria muito que a minha música fosse semelhante à música que eu ouvia, mas, apercebi-me que não era isso que acontecia de maneira natural. Aliás, as minhas canções são só pensamentos com melodias e depois elas ficam a sufocar-me durante muito tempo até que se transformam em canções. E é daí que vem na verdade a origem venezuelana das minhas canções que é: eu às vezes estou a pensar, estou a pensar em espanhol e com melodias que ouvia de música folclórica ou de ouvir música llanera e por aí fora, então dei por mim só a fazer uma reciclagem destes inputs todos que fui ouvindo.

Estamos numa altura complicada para os artistas e eu também sei que já tinhas um conjunto de concertos pré marcados e que foram cancelados. Como é que tu vês atualmente a música, os concertos, os espetáculos em Portugal?
Eu tenho sentimentos contrários acerca disto, porque acho que de todas as perspectivas, inclusive cultural e a música está incluída, isto é claramente uma altura de passagem e adaptação, mas eu pessoalmente tenho muitos problemas com mudanças o que é irónico sendo que sou imigrante. Tenho bastantes problemas com mudanças, então é muito interessante e criativo o processo de reinvenção tal como o que acontece aqui que é fantástico mas, por outro lado eu não consigo abandonar a ligação que eu encontro quando estou a tocar para uma série de pessoas, seja um projeto musical em que isto aconteça, porque também não se trata só do momento em que se toca na minha opinião. É uma série de logísticas que têm em comum também com esta, mas que também variam os sítios, assim como aqui existe uma logística de colocar câmaras e assim eu adoro a logística do sound check e depois sais, e depois vai outro fazer o sound check e no processo estás a conviver com o tipo de estabelecimento onde vais tocar ou com o produtor ou com quem for, e existe uma série de contactos que são bastante enriquecedores e claramente que continuarão a existir independentemente de quais sejam os outros panoramas agora abertos e presentes mas eu só tenho problemas com mudanças de maneira geral.

Olha como é que foi o processo de criação deste teu primeiro EP?
Foi durante muito tempo… estas canções mantiveram-se em hibernação total. Algumas têm 3 anos, uma delas tem 4 anos, há umas que são também mais recentes mas de maneira geral elas só foram aparecendo ao longo do tempo e, sem existir um conceito por trás a serem criadas em algum momento, eu também dei conta que tinha só que tomar coragem porque não desapareciam, e se elas não desaparecem, pelo menos é assim que eu faço, quando elas não desaparecem, por alguma razão é. Existe um alívio também emocional e psicológico que claramente aconteceu no processo de o gravar. Isto manteve-se imenso tempo numa incubadora só a ser tocado, tocado e eu a não levar isto a sério de todo. E depois quando tomei coragem apercebi-me que não havia outra hipótese. Conheci pessoas incríveis em quem eu senti que podia confiar as minhas canções e elas também me confiaram de alguma maneira as suas canções. Eu só gravei e durante muito tempo também quis fazer a parte da mistura, mas depois apercebi-me que estava demasiado próxima da questão emocionalmente e já não estava a conseguir ter o discernimento musical. Então só entreguei a discográfica, a parte da mistura e surpreendentemente quando a mistura voltou, voltou tal e qual como tinha de estar, na minha opinião. Não lhe mudava nem um pêlo.

Muito bem. Diz-me uma coisa, quais são as principais diferenças que encontras entre Portugal e a Venezuela em relação a vida artística, a criação artística ou a cultura? Ou seja, a pergunta é um bocadinho de como é que o artista vive ou vê a cultura na Venezuela? E o conhecimento que tens aqui em Portugal, mesmo esta distância grande, somos todos muito parecidos e levamos isto assim de uma forma muito intensa ou não existe aqui algumas diferenças?
É bastante semelhante, sendo que a minha opinião é que eles ainda são mais à flor da pele e, por um lado eu não encontro que esta característica específica tem a ver com a forma como o artista vê, eu só posso falar por generalizações, claramente haverá diferentes casos, mas eu acho que é uma mistura de circunstâncias que tem vindo a afetar o movimento cultural e musical na Venezuela, as circunstâncias do país políticas, económicas, sociais, várias, todas elas. Eu da vez que estive lá um ano inteiro, foi há 3 anos se não me engano, fui confrontada com esta realidade que é: se queres poder pagar contas com música ou és músico de salsa, que rende muito e na minha opinião é incrivelmente rica mesmo nesta categoria que eu gosto, que é contar histórias, muita música dançável, o que chamam de música dançável vá. Isto é uma categoria ou reggaeton que cumpre um propósito mas é bastante curto, as especialidades que existem são poucas e também na mesma circunstância do país faz com que o progresso artístico e criativo fique um pouco curto. Imagina esta situação que agora estamos a viver de quarentena, já há dois anos algo assim mas não por uma questão de uma doença mas por perigo, sair à rua é algo muito perigoso e ires visitar alguém é algo muito perigoso, então ir a um sítio gravar é complexo, os sítios onde existe segurança para poder tocar também já é por si complexo agora deste pequeno número vamos reduzir aqueles que precisam que exista rendimento no seu estabelecimento. Então tem que ser música dançável, tens que escolher entre salsa e reggaeton, ou seja, não quer dizer que não existam artistas e músicos bastante diferentes, riquíssimos no que fazem, só acho que as suas oportunidades são menores do que aqui, na minha opinião.

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Vou tentar puxar um bocadinho por ti, não só como na pele do artista mas também como na pele do cidadão ou do ser político para te fazer uma pergunta que acho que pode ser ou não importante para quem nos está a ouvir. Tudo o que nos chega aqui aos nossos ouvidos e à nossa vista da Venezuela no contexto social e político da Venezuela é realidade ou a informação chega-nos com alguma adulteração? Porque a imagem que nós temos aqui, pelo menos que nos fazem chegar aqui, é que mau, que há ali um conjunto de problemas sociais e políticos graves, intromissão de muitos países na vida política do próprio país, neste caso a informação de uma possível invasão dos Estados Unidos à Venezuela e quando eu leio as notícias ou pelo menos aquilo que vai passando nas redes sociais, muitas vezes notícias falsas, não é? E conhecendo um bocadinho a questão política de lá é assim tão mal como nos fazem crer ser?
O ser humano é incrivelmente adaptável, há uma metáfora que eu costumo usar mas é bastante badalhoca então não utilizarei, mas irei fazer uma adaptação. Imagina que durante um processo de muitos anos, aos poucos e poucos, a cada cidadão vão pondo um pauzinho no ouvido, mas é só um bocadinho, só 2 milímetros. Imagina isto desde 99, são 2 milímetros todos os dias. Só que, eventualmente, já sai pelo outro e entra no ouvido de outra pessoa. Mas tu vais-te habituando e vais-te adaptando constantemente. A minha prima costuma dizer que Venezuela é um país de oportunidades e de facto é, há circunstâncias muito peculiares nos países que têm regimes totalitaristas. A Venezuela está no regime totalitarista mesmo que não seja assumido, mas nos regimes totalitaristas há formas através de corrupção de passar certos entraves legais, e nisto é onde se encontram as possibilidades. Aquilo está mal de facto, mas há muita alegria na mesma nas pessoas o que eu acho que tem muito a ver sim com esta característica de viverem muito à flor da pele, o que dói, dói muito, mas o que sabe bem, sabe mesmo bem. E é um país que está abençoado geograficamente, tem montanhas belíssimas cheias de neve, tem desertos espampanantes, tem praias tropicais, tem selvas, tem pântanos, é riquíssimo, mesmo que não exista uma valorização direta crucial acerca da bênção da natureza, é quase uma limpeza emocional subentendida. Eu estive na Venezuela em janeiro 15 dias só, não pude ficar mais tempo. Estava mais seguro estar na rua desta vez do que quando estive há 3 anos. Há 3 anos foi aquela série de manifestações e trancas de rua e aí estava mesmo muito tenso estar na rua. Desta vez estava mais tranquilo mas a problemática económica desde então foi continuando a ficar mais complicada e as mudanças são muito rápidas, mesmo as pessoas que vivem lá têm de estar em constante adaptação. As coisas que vão acontecendo, o preço disto já subiu e agora tenho de ver o preço do dólar, ou seja, no meio de tudo isto, eu em Caracas por isso está rodeado pela montanha de La Villa, que é linda e tem entradas mesmo diretas desde a cidade. É como se tu estivesses no Porto e se chegasses se calhar ao Bolhão e houvesse uma ruína e tem uma montanha incrível uma coisa assim, e todos os dias, mas especialmente nos domingos as famílias, comunidades, não interessa a sua categoria económica, passam o dia na montanha, estão a fazer exercício mas ao mesmo tempo estão a conversar, nem que levem a coluna com o seu Reggaeton e estão tipo a subir, mas estavam a conviver e estão na montanha de alguma maneira isto me parece muito importante, a existência destas bênçãos da natureza no subconsciente dos cidadãos, mas sim, eu não recomendaria neste momento a ninguém a ir lá e se calhar há 3 anos também não recomendaria. Eu adorava que em 5 anos pudesse dizer a todas as pessoas que estão à minha volta “compra bilhete, poupa, vai que é incrível”, mas há uma série de circunstâncias que há que ter em conta e mesmo eu quando estive lá e lembro-me de dizer ao meu pai “ mas eu não posso andar pela cidade? Tenho 20 anos, não posso andar só por aí a descobrir?” e o meu pai “não filha, e não é para o teu aspecto, podias ter uma t-shirt branca e umas calças de ganga, tens andar de turista” e eu disse “não, mas eu gosto de ver as árvores, de ver os quintais, de andar…” e ele “pois, as pessoas aqui andam na rua, estão com um propósito e vão rápido e vão ao sítio para onde vão e chegam a esse sítio se calhar já suspiram de alívio e de regresso é o mesmo processo”. 

Muito bem. Diz-me uma coisa, qual é a maior riqueza da Venezuela neste momento? É o petróleo?
Pensei que estavas a falar de outro tipo de riquezas. Talvez, talvez se estivermos a falar ao nível de riquezas do mundo e da economia seja petróleo. Eu diria que…

Será que o problema da Venezuela é ter petróleo?
Também. Eu acho que nenhum problema vem do que se tem mas do que se faz com o que se tem, claramente se a gestão é bem feita, não interessa se tens um quintal pequeno ou se tens um quintal grande, é aquilo que tu fazes com o quintal que tens mas, na minha opinião a riqueza da Venezuela… Ok, eu falei da bênção da natureza numa maneira se calhar estética, mas é verdade é que há zonas na Venezuela onde se tens fome e tiveres perto da água tipo é muito fácil pescar.

Sabes que para mim, e isto é uma opinião muito pessoal, a maior riqueza que um país pode ter é as suas gentes, o povo, a cultura, as tradições, e isso que acabaste de dizer, a alegria. Depois tudo é supérfluo, não é?! Portanto diamantes, petróleo e afins para mim é um bocadinho o mal do mundo não é?! Portanto, pode provocar um conjunto de interferências, ganância, e eu fico muito satisfeito que tenhas dito que as pessoas são felizes pelo menos não é?! Portanto existe uma alegria independentemente da situação.
Existe sempre um motivo para celebrar, nem que seja só para ir ao pátio conviver um pouco.

Celebram com música, com cultura e isso também é que é importante.
Tem um pouco de tudo lá, é surpreendente no sentido, eu vou ser franca, mesmo no reggaeton não é que só se ouça aquilo, ouve-se desde musica llanera, há uma variedade muito vasta de música, tanto internacional como nacional, nas rádios também mas na rua ouve-se muito música. As pessoas têm só o rádio a dar música ou seja, não têm nenhuma ligação se calhar muito erudita perante aquilo que estão a ouvir e eles simplesmente querem algo com o qual possam abanar-se por dentro e por fora, mas isto é bastante valioso, isso é valiosíssimo, saberes que tens uma ferramenta quase imediata de alegria, um medicamento da alegria instantânea numa circunstância tão complexa eu acho que é maravilhoso.

Quais são as tuas expectativas do futuro aqui em Portugal e na na arte que tu representas?
Eu só quero continuar a fazer músicas, estou a acabar o meu curso, a minha licenciatura de artes plásticas e adoro este tipo de linguagem de multimédia, de diferentes meios, mas desde o ano passado que não percebi, isto é o que eu quero fazer o resto da minha vida. É só fazer canções e se puder cantar as minhas canções e no meio disto só cantar para o maior número de pessoas possível e variedade também. Só quero explorar.

Hoje aconteceu a tua estreia, a tua apresentação do teu 1º EP. Será que eu posso acabar esta entrevista com esta frase que tanto nos diz a nós e que também foi criada por um grande músico português “Hoje é o primeiro dia do resto da minha vida”, da tua vida?
Sim.

Pronto, espero bem que assim seja, agradeço imenso a tua presença por aqui e costumo dizer sempre isto, o que vocês precisarem e a gente puder nós cá estamos.
Obrigada. Foi uma experiência belíssima. Foi um prazer.

Obrigado nós.

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