Entrevista. Pedro Freitas: “40% dos atuais professores sairão da escola nos próximos anos”
“40% dos atuais professores sairão da escola nos próximos anos, é essencial este debate mais estruturado sobre a classe docente que teremos nas próximas décadas”, avisa Pedro Freitas, investigador da Nova SBE (Nova School of Business and Economics), e especialista em economia da educação. Na sua visão, o completamento de horários, salários e extensão dos contratos de trabalho são essenciais para melhorar o ensino numa visão a curto prazo, mas também é necessária uma discussão a longo prazo sobre “o modelo de recrutamento e atração de professores que queremos”. Não é favorável à municipalização da colocação dos profissionais de ensino que tem sido abordada actualmente, mas defende que há espaço para um modelo híbrido entre o modelo centralizado actual e um modelo que dê mais autonomia às escolas nessa decisão e que leve em conta o trabalho desenvolvido ao longo do tempo pelos professores.
Sem ser defensor da propina zero, reconhece as assimetrias do acesso ao ensino superior, uma vez que avisa “que a desigualdade no ensino superior é o espelho da desigualdade que aconteceu ao longo do percurso escolar até ao ensino secundário” e que “no ensino universitário público a percentagem de alunos com mãe com ensino superior é cerca de 40%”, evidenciado uma correlação entre o sucesso escolar e famílias mais escolarizadas, neste caso as mães. Por isso avisa que o problema da desigualdade vai mais além do que o valor da propina, tem a ver com a desigualdade estrutural que se revela desde logo, mesmo com os avanços após o 25 de Abril, e por isso diz que é essencial que, depois, “o Estado, para aqueles alunos mais carenciados, tenha mecanismos redistributivos para os poder ajudar, sobretudo neste momento”, ou seja, defende uma atenção em específico às necessidades dos alunos, de forma a perceber onde essas carências se encontram, como a habitação, actualmente.
Após a massificação do ensino, esclarece que estamos na fase de pensar a qualidade. Revela-se um total defensor do pré-escolar, “até porque os maiores resultados que se vêm em economia da educação garantem que o pré-escolar é essencial”, afirma. Quanto às creches, até aos três anos de idade, também explana que são mais do que meros depósitos de crianças enquanto os pais vão trabalhar. O problema é que há “muitos poucos dados sobre as nossas creches”, enfatiza. Pelas suas palavras, “temos muita pouca informação sobre a qualidade dos projectos pedagógicos que se desenvolveram aí.” Estes foram os temas que Pedro Freitas abordou em entrevista à Comunidade Cultura e Arte.
Podemos começar com a elevada média de idades dos professores e o elevado número de aposentadorias, correlacionando com o facto dos mais jovens não quererem seguir a profissão. Como é que olha para esta questão e como é que podemos aliciar pessoas mais jovens a ingressar no ensino?
Há um enorme envelhecimento da classe docente, aliás, fizemos aquelas previsões do número de docentes que seriam precisos nos próximos dez anos e calculámos que serão necessários 34 mil e 500 docentes do pré-escolar até ao ensino secundário. O problema é que existe um encontro de duas coisas: o envelhecimento da classe — há muita gente a sair — e uma grande queda dos diplomados nas áreas de educação nos últimos anos. Aliás, Portugal era, até 2015, acho eu, o país em que menos jovens de 15 anos diziam que queriam ser professores. Acho que há várias razões para isso: há razões pecuniárias, financeiras, há razões relacionadas com a forma como profissão é vista e percepcionada, o que influencia muito esta descida grande do número de diplomados e há, também, a dimensão da reacção ao mercado.
Esquecemo-nos um pouco, mas há 15 anos, no início do ano lectivo, tínhamos aquelas reportagens dos professores desempregados, com a casa às costas e, naturalmente, as pessoas reagiram a essa informação, no sentido em que escolheram menos as áreas de educação, que eram percepcionadas como áreas de grande desemprego. Como combater esta situação? Acho que há aqui dois momentos: o momento a curto prazo e o momento a médio prazo sobre como, estruturalmente, mudar a carreira docente, em Portugal. A curto prazo, acho que é muito sério o problema.
Tem havido medidas, já este ano, no sentido de diminuir o número de horários por preencher. Acho que algumas destas medidas tiveram o efeito de tentar amenizar o problema, mas acho que é difícil dizer que se tenha resolvido o problema todo — por esta altura tivemos 300 professores a aposentarem-se. Portanto, ao longo do ano, vamos ter uma grande quantidade de professores que se vão aposentar, ou seja, vai haver o reforço das necessidades dos docentes, não só no início do ano, mas ao longo do ano, há medida que eles vão saindo.
Acho que a curto prazo há aqui dois pontos essenciais. Um desses factores é como é que nós trazemos pessoas. Para trazermos pessoas a questão pecuniária, a questão salarial, é importante: fizemos um levantamento de políticas de atracção de professores que poderiam funcionar em curto prazo. As questões salariais são importantes porque dentro das escolas temos pessoas de áreas científicas diferentes: de humanidades, da área do desporto, mas também temos áreas das ciências e tecnologias que têm, hoje, uma enorme competição no sector privado com salários mais altos.
Depois há a questão da estabilidade. Acho que, de facto, no horizonte, a estabilidade é importante, no sentido de as pessoas não saltitarem de um lado para o outro e, conjuntamente com estas medidas, há, depois, medidas cirúrgicas e indo ao encontro de algumas coisas que têm sido feitas como, por exemplo, mais horários completos; contratos transformados em plurianuais para que as pessoas tenham mais estabilidade e tenham possibilidade de aceitarem aqueles horários e contratos porque sabem que vão ter mais estabilidade. Diria que estas quatro coisas: salário, estabilidade, completamento de horários e extensão de contractos pode ser o que, no curto prazo, resulte. Mas é preciso estarmos conscientes que este não é um problema fácil de resolver porque não há, exactamente, uma bolsa de pessoas disponíveis para serem professores.
Depois há uma discussão mais profunda, de longo-prazo, sobre o modelo de recrutamento e atração de professores que queremos.
Além do congelamento das carreiras durante muito tempo e falta de vínculos laborais, uma das questões que também está em cima da mesa na questão da greve dos profissionais de ensino é a tal questão da municipalização das colocações dos professores. Como olha para esta questão e como olha para a proposta do governo? Concorda ou não com os argumentos contra esta ideia por grande parte dos professores? O que acha que aqui está em causa?
Nunca chegámos a saber bem os detalhes da proposta inicial do governo, e aliás esse foi um dos problemas na raiz de toda esta situação. Não sendo favorável à municipalização, uma vez que a contratação dos professores é uma decisão pedagógica, também não posso achar que manter o atual modelo de recrutamento é sustentável.
Os professores são colocados através de uma lista centralizada, que se baseia essencialmente em dois critérios: os anos de experiência e a nota de curso. Faz sentido termos professores com 40 e 50 anos já com décadas de trabalho feito nas escolas a serem distribuídos pelas escolas com base numa nota de curso que pode ter sido atribuída há 20 anos? Não me parece, sobretudo porque os professores têm características diferentes entre si, as escolas têm diferentes contextos e nada disto é internalizado no modelo de recrutamento atual.
Os professores têm vocalizado que um modelo que dê mais autonomia às escolas nesta escolha pode abrir espaço a amiguismos. Mas então discutamos estes riscos, e procuremos uma solução de equilíbrio. Por um lado, podemos manter a lista centralizada como parte do concurso, mas por outro, numa outra fase podemos dar margem às escolas no recrutamento. E aqui o debate interessante é que margem é esta, quem dentro das escolas pode fazer esta escolha (um papel que deve ir para além dos diretores), que critérios de escolha devem ser usados e depois como podemos auditar as escolhas das escolas. O Alexandre Homem Cristo e o João Oliveira no âmbito da SEDES apresentaram uma interessante proposta nesta sentido e que vale a pena revisitar. Vamos passar pela maior entrada de professores novos do sistema desde os anos 80, é agora que esta reforma de fundo se deve fazer.
“40% dos atuais professores sairão da escola nos próximos anos, é essencial este debate mais estruturado sobre a classe docente que teremos nas próximas décadas.”
Pedro Freitas
Como acha que o sistema de avaliação dos professores deveria ser feito? Uma das queixas dos professores, também, é o sistema de quotas para o 5.º e 7.º escalão, independentemente da avaliação que possam ter, porque essas quotas acabam por limitar.
Mais uma vez é essencial pensarmos a longo-prazo e entendermos que neste domínio precisamos de uma reforma mais abrangente que vá para além da mera questão das quotas do 5.º e do 7.º escalão. Pergunto se, hoje, as quotas nestes escalões fossem eliminadas, a avaliação dos professores que temos seria uma avaliação boa? Não creio, e os próprios professores não se reveem nessa avaliação.
O sistema atual tem três falhas essenciais: 1. Não é uma avaliação formativa dos professores, ninguém vai ali beber elementos para mudar as suas práticas; 2. Não informa a formação contínua dos professores, ou seja, os professores não fazem formação ao longo da vida alinhada com aquilo que são os domínios identificados como aqueles em que devem progredir; 3. A avaliação não informa sobre as características dos professores no momento de mudarem de escola.
A literatura diz-nos que a avaliação dos professores deve ser baseada num conjunto rico de elementos, só assim é possível ter um retrato mais completo do trabalho do professor. Desta forma é essencial que os descritores da avaliação dos professores sejam mais claros e objetivos e que se valorize mais a qualidade científica e pedagógica dos materiais usados pelos professores em sala de aula, assim como o seu envolvimento em projetos da escola.
Algo também muito visível da atual discussão é a pouca confiança que os professores têm em quem os avalia. Mas quem os avalia são os pares, são outros professores. Logo, é necessário diversificar os professores que intervêm na avaliação interna (aquela que acontece dentro da escola) e reforçar a avaliação externa (aquela que vem de elementos fora da escola). Desenhar um plano de avaliação tem sempre dificuldades, porque os professores contribuem em diversas dimensões para o desenvolvimento dos alunos (cognitivas e não cognitivas) e porque é preciso encontrar um modelo que responsabilize o trabalho dos professores, mas que ao mesmo tempo não os desmotive a melhorar a sua prática pedagógica. O modelo atual está muito longe disto e, por isso, há muito espaço para melhorar.
Como olha, no plano geral, para a greve e conjunto de manifestações dos profissionais de ensino, mas também dos professores neste momento?
Acho que é muito visível que se colocam muitos problemas em cima da mesa ao mesmo tempo. Por isso diria que o que assistimos é quase uma catarse dos vários problemas que o sistema atravessa. Não nos esqueçamos que vimos de dois anos muito duros nas escolas com a pandemia, a que se soma a instabilidade de alguns professores e a insatisfação com a carreira de outros.
O desafio é compreender que em vários domínios, tais como o recrutamento, avaliação ou atração da carreira precisamos de mudanças de fundo. Só assim será possível diminuir a rotação dos professores entre escolas. Em 2017/18, em mais de 90% das escolas, um quinto dos professores era novo naquela escola. Estes valores são particularmente altos em escolas em contextos mais desfavorecidos, de onde os professores desejam sair mais rapidamente. E não é de estranhar, que incentivos dá o sistema para atrair professores para escolas de contextos sociais difíceis? Nenhum, e é nestas escolas que estes professores são mais necessários.
40% dos atuais professores sairão da escola nos próximos anos, é essencial este debate mais estruturado sobre a classe docente que teremos nas próximas décadas.
“Cerca de 87% dos professores portugueses reportam níveis de stress elevados, segundo o TALIS (Teaching and Learning International Survey). Este valor é mais do dobro da média da OCDE. Os professores estão expostos muitas vezes a contextos de grande complexidade social e pressão emocional.”
Pedro Freitas
Outra questão muito debatida foi a questão da mobilidade por doença. Como olha para esta questão?
Não queria entrar em concreto nesta questão, salvaguardando que há de facto professores com situações de grande fragilidade e cujas situações se devem atender. Mas colocaria a questão numa perspetiva mais lata. Cerca de 87% dos professores portugueses reportam níveis de stress elevados, segundo o TALIS (Teaching and Learning International Survey). Este valor é mais do dobro da média da OCDE. Os professores estão expostos muitas vezes a contextos de grande complexidade social e pressão emocional. Acho que era relevante, que mesmo dentro do sistema, pudéssemos ter apoios de proximidade, veículos de suporte a quem os professores pudessem recorrer e onde pudessem partilhar experiências com os colegas.
Como olha para a forma como o governo e o ministério da educação estão a lidar com a questão? Lançou-se a vinculação a contracto após três anos de serviço que, afinal, parece que já era uma medida existente. Como olha para esta questão em particular?
A medida colocada em cima da mesa vai ao encontro de dar maior estabilidade aos contratados. Em vez da vinculação ao fim de três contratos seguidos, propõem-se uma vinculação no Quadro de Zona Pedagógica em que atualmente se encontram os professores com o equivalente a 1095 dias de trabalho e com horário completo este ano. É um passo importante. Há contudo que ter atenção que esta medida acontece agora quando há muitos professores que no passado se afastaram de casa com a perspetiva de se vincular e depois aproximar-se de casa. Esta medida de vinculação extraordinária pode assim distorcer o horizonte de aproximação destes professores.
“Um filho de uma família pobre hoje tem melhores resultados do que tinha há trinta anos, e isso é bom, mas o filho de um rico, ou de uma família mais rica pode ter uma maior vantagem nessa progressão, o que significa que a diferença ainda não fechou.”
Pedro Freitas
Podemos ou não ter uma avaliação positiva do ensino após o 25 de Abril? Fez-se a massificação do ensino, diminuiu-se o analfabetismo, mas como olha para forma como o ensino se massificou, por exemplo?
No ensino pós-25 de Abril, temos de olhar para uma terceira fase, na evolução do sistema. Numa primeira fase houve, então, uma normalização do sistema porque era necessário: tínhamos uma população que até tinha uma frequência do ensino primário razoável mas, depois, no que diz respeito à frequência do segundo ciclo, secundário e superior, era muito baixo. Ou seja, havia, claramente, uma necessidade de urgência de criar uma escola que chegasse aos alunos, coisa que não existia: há uma fase de massificação, que é o corpo dos professores e alunos dentro das salas de aula, e, depois, uma segunda fase em que se começa a pensar na qualidade.
A partir do final dos anos 1990 e início dos anos 2000, temos o início da percepção da qualidade do que é dado porque, isso, corresponde a um período histórico em que começam a sair resultados do país em testes internacionais como os PISA’s — aqueles testes internacionais de leitura, matemática e ciências que permitem comparar um país com outros países — e começam a aparecer resultados significativamente maus, com o país a aparecer no fundo das listas. Há uma mudança do paradigma de pensamento nesta forma, “ok, já não necessitamos de acesso, agora há uma batalha de qualidade para se fazer, a qualidade de aprendizagem”. Acho que isso foi feito, acho que houve um esforço, nesse sentido, independentemente de haver diferentes visões. Houve uma série de medidas desde a série de avaliação externa até aos problemas focados no apoio a determinadas disciplinas, nomeadamente a matemática, até a programas próprios de desenvolvimento de sucesso escolar.
Considero que, globalmente, esse esforço tem sido bem sucedido, acho que houve uma progressão global dos resultados. Agora, estamos numa terceira fase que é a seguinte: olhamos para estes resultados e percebemos que massificamos, melhoramos os resultados no sentido em que melhoramos a qualidade, mas não acabamos com a diferença entre os mais ricos e os mais pobres. Acho que é nesse momento que o sistema está: haver clara evidência de todos terem progredido e isso é bom, ou seja, um filho de uma família pobre hoje tem melhores resultados do que tinha há trinta anos, e isso é bom, mas o filho de um rico, ou de uma família mais rica pode ter uma maior vantagem nessa progressão, o que significa que a diferença ainda não fechou.
Se olharmos para a configuração do ensino universitário, percebemos que houve uma série de alunos de famílias mais pobres ou pelo menos famílias menos escolarizadas que não conseguiram chegar ao superior. É nesta fase que nós estamos, como é que nós garantimos que o sistema continue a evoluir, fechando o diferencial de famílias entre alunos de famílias de diferentes extractos sociais.
“O desafio é compreender que em vários domínios, tais como o recrutamento, avaliação ou atração da carreira precisamos de mudanças de fundo.”
Pedro Freitas
Os testes não são consensuais, há quem os defenda e há quem os critique, por parecer que os resultados são mais importantes do que a qualidade ou que isso faz com que se estude para os rankings e não pelo conhecimento. Como olha para a questão?
Essa visão acerca dos testes de avaliação externa parte normalmente da seguinte premissa: os exames são maus porque os filhos dos mais ricos terão sempre melhores resultados que os filhos dos mais pobres, desde logo porque, por exemplo, têm acesso a explicações. Isso é verdade, mas isso é sempre verdade, quer falemos de avaliação externa, ou interna, nas notas dadas pelos professores.
A questão relevante é: se retirarmos os exames, quem ganha e quem perde com essa medida? E hoje temos vasta evidência que mostra que a retirada dos exames pode prejudicar vários tipos de alunos. Desde logo os rapazes. Se olharmos para as notas internas, vemos um cada vez maior diferencial a favor das raparigas. Tal é muito explicado porque as notas dadas pelos professores internalizam outras dimensões dos alunos, como o comportamento em sala de aula. Por isso, o exame serve como regulador destas diferenças nas notas internas.
Pela mesma razão temos hoje evidência que os alunos de meios socioeconómicos mais desfavorecidos são mais penalizados na avaliação interna do que na avaliação externa, precisamente porque esta primeira considera dimensões não-cognitivas onde estes alunos podem também ter uma desvantagem em relação aos seus colegas. Avaliar é sempre difícil, e não há métodos perfeitos, e por isso, mecanismos de avaliação externa e interna não são substitutos, mas complementares.
Quanto aos rankings, há certamente margem para melhorá-los. Por exemplo: 1. Em vez de uma lista ordinal, fazer uma lista por grupos de escolas, na verdade a diferença de média de resultados entre a escola no lugar 1 ou no lugar 10 é estatisticamente insignificante; 2. Internalizar as características da escola, obviamente um 18 numa escola privilegiada não é o mesmo que numa escola num contexto difícil. Agora, nós necessitamos de informação sobre o sistema e a sua evolução, e não é com menos informação que conseguimos tomar melhores decisões.
Neste domínio da avaliação importa também olhar para o que está a acontecer à avaliação interna nas escolas. Ao abrigo de vários programas educativos, há hoje uma grande mudança nos parâmetros e na escala usada para dar as notas internas dos professores. Este tem sido um processo extraordinariamente burocrático para os docentes e é essencial acompanhá-lo para compreender melhor os impactos no curto e no longo prazo sobre a perceção dos alunos acerca do seu desempenho académico.
Há também quem defenda que só favorecem as escolas privadas e a inflação das notas internas. A verdade é que as escolas públicas, com melhores ou piores anos, aparecem quase sempre já a meio da tabela do ranking. Como olha para estes casos?
Daí a importância da existência de mecanismos de avaliação externa. Foram os desvios sistemáticos entre a avaliação interna e externa que permitiram a Inspeção Geral da Educação mover processos formais contra alguns colégios com inflação sistemática das notas. Quanto aos lugares que a escola pública ocupa hoje nestes rankings é de facto preocupante. Quando estes rankings começaram a ser divulgados os primeiros lugares da lista eram divididos entre escolas públicas e privadas. Isso já não acontece, e tal também resulta de uma escola pública que se foi descapitalizando socialmente. Por exemplo, entre 2011/12 e 2020/21, o número de alunos inscritos em cursos científico-humanísticos no ensino secundário na escola pública cresceu cerca de 4%, já o número de alunos no ensino privado subiu 76%, de 10700 para perto de 19000. Isto diz-nos muito sobre a perda de atratividade da escola pública.
Fala-se na desigualdade no acesso a determinados cursos. Determinados cursos de determinadas áreas podem exigir mais esforço financeiro e, tal, pode afectar a escolha universitária dos alunos mais carenciados. Como olha para esta questão?
Estamos a falar da desigualdade de acesso a diferentes áreas científicas, no fundo. A minha visão é a seguinte: no estado de desigualdade que temos, a composição do ensino universitário ainda tem uma grande franja de pessoas de famílias mais privilegiadas, para quem esse custo não faz qualquer diferença na decisão de entrar no ensino superior.
O que acho que temos de ter é um sistema claro de como é que se apoiam os alunos que não podem, que não têm essas condições. Tenho visto alguns passos nesse sentido, houve agora uma reforma no acesso às bolsas no ensino superior, um alargamento das bolsas de mestrado, mas não tenho certeza de que seja suficiente. Diria que, dado o ensino superior que temos hoje, um ensino superior ainda marcado por desigualdade, no sentido em que temos muitos filhos de famílias mais ricas no ensino superior, diria que dada a sua composição social, o que parece mais lógico é não haver uma política de custo zero, mas manter alguns custos e ter a certeza que, depois, o estado, para aqueles alunos mais carenciados, tenha mecanismos redistributivos para os poder ajudar, sobretudo neste momento.
Apesar de ter havido este esforço da questão das bolsas, há uma questão latente, neste momento, que extravasa a educação, é a habitação. Obviamente que ir estudar para o Porto ou para Lisboa é incomensuravelmente mais caro do que para outras zonas do país e, aqui, na dimensão da habitação dos estudantes, estamos, claramente, abaixo do apoio que deveríamos estar a dar àqueles alunos deslocados de famílias com menos meios económicos e que precisam desse apoio.
“A creche e o pré-escolar têm um papel pedagógico, aliás, o que a evidência científica nos diz é que o pré-escolar e a creche só funcionam se estiverem enquadrados num projecto educativo e pedagógico estruturado.”
Pedro Freitas
Há notícias que dizem, inclusivamente, que há estudantes a desistirem dos cursos por causa do preço das rendas.
Por isso acho que o foco das medidas deveriam estar onde as necessidades estão, isto é, a queda das propinas de mil para 600 euros não fez nenhum filho de uma família mais rica deixar de ir para o ensino superior. Não foi aquele diferencial de 400 euros por ano que fez um aluno de uma família mais rica não ir para o ensino superior. Temos é de ter políticas focadas naqueles que precisam e, precisamente, perceber como é que as nossas políticas afectam as decisões dos indivíduos. Diminuir uma propina de 1000 para 600 euros não influi em nada a decisão de um aluno de uma família mais rica. Os alunos ricos vão sempre para o ensino superior, não precisam que lhes baixem as propinas.
Mas como olha para a indicação, feita pela OCDE, baseada em propinas calculadas segundo os escalões de rendimentos? Nota-se que ainda há, por exemplo, um peso ou uma relação entre a escolarização das mães e o sucesso escolar dos alunos e, consequentemente, o acesso ao ensino superior?
Essa relação é muito clara. No ensino universitário público a percentagem de alunos com mãe com o ensino superior é cerca de 40%, o dobro da observada nas escolas públicas no ensino básico. Ou seja, a desigualdade no ensino superior é o espelho da desigualdade que aconteceu ao longo do percurso escolar até ao ensino secundário. O que a proposta da OCDE vem chamar a atenção é que uma baixa horizontal de propinas pode, de facto, ser uma política regressiva uma vez que no ensino superior, em particular no ensino público universitário, muitos alunos vêm ainda de famílias mais escolarizadas e com maior rendimento.
Tendo em conta que quando as crianças chegam à primeira classe já podem estar em grau de desvantagem na capacidade de aprendizagem, que importância terá o pré-escolar no desenvolvimento da criança? Como olha para o ensino pré-escolar nacional?
Sou total defensor do pré-escolar, até porque os maiores resultados que se vêm em economia da educação garantem que o pré-escolar é essencial. E porque é essencial? A escola, muitas vezes, não tem espaço para suprir falhas comportamentais e cognitivas, mas o pré-escolar é isso, não é? É quando um aluno chega e se senta numa mesa no primeiro ano, já vai saber como estar numa sala de aula, que comportamento deve ter, qual é a rotina da escola, porque já aprendeu. Essa é uma das grandes vantagens do pré-escolar. A taxa da pré-escolarização em 1990 situava-se entre os 40 ou 50% e, em 2020, situava-se perto dos 98% — mais do que duplicou, portanto.
As crianças entre os 3 e os 5 anos têm, hoje, muito mais acesso ao pré-escolar do que há 30 anos e isso é muito bom e acho que isso é uma das razões por trás de alguma melhoria de resultados. Onde acho onde temos um trabalho a fazer? Na creche, até aos 3 anos. Acho que a creche, como o pré-escolar, não é um sítio onde se vai pôr apenas as crianças enquanto se vai trabalhar, não é esse o seu papel. A creche e o pré-escolar têm um papel pedagógico, aliás, o que a evidência científica nos diz é que o pré-escolar e a creche só funcionam se estiverem enquadrados num projecto educativo e pedagógico estruturado. Ou seja, que aqueles anos sirvam para transmitir à criança, não diria conhecimentos, mas aprendizagens, descobertas cognitivas, emocionais e comportamentais que as vão ajudar.
Não estamos a falar, portanto, de um depósito de crianças, é um sítio essencial para se fazer uma formação da aprendizagem. Acho que no pré-escolar, temos um pré-escolar de qualidade, por outro lado, acho que temos pouca evidência da qualidade do ensino nas nossas creches. Temos muitos poucos dados sobre as nossas creches, que eu acho que é um problema: temos muita pouca informação sobre a qualidade dos projectos pedagógicos que se desenvolveram aí. Claro que temos algumas creches óptimas, sem dúvida, mas temos de ter mais dados sobre a qualidade as nossas creches. Se estas ofertas não forem estudadas, então o impacto positivo que podem ter nos alunos perde-se.
Como olhou para a forma como o governo lidou com a educação no tempo da pandemia? Acha que esta geração foi prejudicada por isso, na sua evolução de conhecimentos?
A pandemia é um claro caso de falta de representação no espaço público. No momento de exigir o fecho das escolas houve um clamor público muito forte. Aqueles que tinham condições de apoiar os seus filhos durante ao ensino a distância fizeram-no, os outros que não tinham acesso aos meios tecnológicos para o ensino online e que não tinham meios de ajudar os seus filhos ficaram muito ausentes do debate publico. E isso reflete-se no pós-pandemia; há muita pouca exigência sobre a necessária recuperação de aprendizagens.
Segundo dados recolhidos pela Banco Mundial, em 16 dos 19 países analisados há perdas de aprendizagens. Em média estima-se que estas perdas sejam o equivalente entre metade e um terço de um ano letivo. Em Portugal, os dados que temos vindos das provas de aferição mostram que os alunos portugueses estão melhor do que antes da pandemia. Seria um caso único no mundo, dado o tempo que o país teve as escolas encerradas e que nos deve chamar a atenção sobre a necessidade de melhorar a comparabilidade das nossas provas e exames ao longo do tempo.
Existe, e bem, no terreno um plano de recuperação de aprendizagens, de cerca de 900 milhões de euros. Mas sabemos pouco sobre a aplicação deste programa: como foram os recursos distribuídos pelas escolas? A que alunos estamos a chegar? Quantos alunos receberam um apoio individualizado depois da pandemia? De que forma estamos a medir os impactos das medidas no terreno? Estas questões são essenciais, mas infelizmente há uma letargia pública coletiva em torno daquilo que podem ser as sérias consequências para o percurso educacional desta geração da pandemia. Sejamos claros: estes alunos não vão recuperar por si ou apenas através da mera gestão curricular. Temos de ser mais exigentes sobre o trabalho que temos que fazer com estes alunos.