Entrevista. Pedro Mexia: “A direita moderada está, desde os anos 30, no seu momento mais débil”

por Ana Monteiro Fernandes,    3 Novembro, 2024
Entrevista. Pedro Mexia: “A direita moderada está, desde os anos 30, no seu momento mais débil”
Pedro Mexia / Fotografia de Rui André Soares – CCA

“Poemas reunidos” é a nova coletânea de poesia de Pedro Mexia, no qual o tempo, a memória e o período da juventude têm um grande peso. Em entrevista à Comunidade Cultura e Arte (CCA), revelou que, quanto ao plano de ação do Governo para a comunicação social, uma vez que ainda não estando implementado um modelo de crowdfunding para a imprensa, não acha mal que o Governo fomente algumas medidas de apoio, embora não lhe agrade uma comunicação social dependente do dinheiro do Estado devido ao comprometimento da sua independência face ao Governo. Não acredita que um organismo independente responsável por fiscalizar tráfico de influência seja uma boa solução, e dá o exemplo da ERC: “A ERC é uma produtora de indignidades semanais, de decisões arbitrárias e sectárias“.

Quanto à RTP, não é favor de privatizar tudo, nem de manter tudo como está. Não faz sentido para si a RTP ter uma programação mainstream e, por isso, a RTP1 deveria ser como a RTP2, ou seja, receber conteúdos de relevo e qualidade nos quais os canais privados não têm interesse. Enfatiza que, politicamente, não quer ter nada a ver com o que se passou nos Estados Unidos, França e Brasil, e revela que a direita se encontra emparedada entre as questões de esquerda e extrema-direita ou, então, “vemos a direita que copia os temas e as causas da extrema-direita“, disse Pedro Mexia à CCA na Livraria Travessa, em Lisboa. O conservadorismo para si interessa-lhe como forma de conservar as coisas boas, e o progresso e a evolução tem de ser aceite, embora haja também um progresso que possa ser pernicioso, tal como o fabrico da bomba atómica. Dá também o exemplo das redes sociais: “As pessoas fartaram-se de louvar a internet quando o Obama foi eleito e fartaram-se de culpar a internet quando o Trump foi eleito. Isso prova bem que uma novidade tecnológica não é boa nem má. Pode acontecer uma coisa, pode acontecer outra“.

Porque é que no início preferiria apenas 25 poemas e não os duzentos para esta coletânea? Trata-se de uma maior exigência perante a sua própria poesia?

Essa frase que está no texto final é uma semi brincadeira. Quando comecei a pensar numa antologia, num volume com os poemas dos quais gosto mais, ou que acho melhores, comecei a ser muito exigente e, na altura, disse à minha editora, quase a brincar, que o livro iria ter 25 poemas. Ela disse que não fazia sentido nenhum, evidentemente, fazer um livro com 25 poemas. Mas, na verdade, nunca chegou a ser uma ideia para levar à prática. De facto, senti que só haveria, talvez, 25 poemas com que estivesse completamente satisfeito e, por essa razão, disse isso. A escolha dos poemas a incluir demorou mesmo muito tempo e acaba por ser uma espécie de pedido de desculpa e uma brincadeira com a minha editora.

Ao fim de alguns anos, noto que existe nestes versos uma insistente posição idealista, no
sentido filosófico, e uma decrescente atitude idealista, no sentido vulgar do termo.” O que
quis dizer com esta frase? O que significam estas duas posições idealistas?

Há o idealismo no sentido comum em que as pessoas usam a palavra: no fundo, trata-se de uma pessoa que acredita na mudança, na felicidade, na revolução, seja o que for e, esse, é o sentido corrente da palavra idealista. Nunca fui, a não ser quando era muito novo, idealista nesse sentido. Hoje, sou completamente idealista no outro sentido da palavra — sempre fui — que é o sentido filosófico. O sentido filosófico da palavra idealista significa que as coisas, mais do que acontecem na realidade, acontecem na nossa cabeça. Apercebemo-nos do mundo segundo o funcionamento da nossa cabeça, mais do que da realidade objetiva. Por isso é que pessoas diferentes que presenciam a mesma realidade objetiva têm visões completamente diferentes. A nossa lente é a nossa mente.

Grande parte destes poemas, tal como disse, foram escritos dos 20 aos 35, portanto, durante a juventude. Como é que olha para esse Pedro Mexia mais jovem e de que forma influenciou a sua poesia?

Os poemas não foram todos escritos nessa altura mas, mesmo os que foram escritos depois, referem-se a essa altura. Apesar de tudo, a juventude é uma fase particularmente interessante, praticamente formativa das primeiras experiências, das primeiras ideias sobre o mundo. Essa época, portanto, entre os 20 e os 35 anos, foi absolutamente formativa para mim. Mas não foi deliberado, acabei por perceber que escrevia repetidamente sobre a juventude. Isso também tem uma razão de ser, é porque há muitos poemas familiares e, portanto, na juventude e na infância o contexto familiar tem um peso particularmente importante, uma vez que se refere a pessoas que estavam vivas nessa altura e hoje já não estão.

Pedro Mexia / Fotografia de Rui André Soares – CCA

Uma grande parte destes poemas também foca muito o lado da memória. É algo que acaba por estar muito presente. Como é que olha para o processo da memória? Acaba por ser sempre uma transfiguração nossa?

Sim. Na verdade, há dois temas que mal se distinguem no livro: o tempo e a memória. Não sabemos bem o que é o tempo, mas sabemos que é objetivo, algo que passa, e temos a consciência de que envelhecemos. A passagem do tempo é das poucas certezas que temos. Mas também, no meu caso — isso tem a ver com o tal idealismo filosófico — tendo a lembrar-me das coisas que me aconteceram num determinado tempo de acordo com uma visão subjetiva que pode não ser factual. Tento que não seja fictícia ou inventada, mas é uma perspectiva do tempo, da passagem do tempo. Por isso é que não há uma diferença muito substancial entre o tempo e a memória, porque se falo sobre o tempo que passou, estou lembrar-me dele, se falo da memória estou a falar do tempo. É quase impossível separá-los, completamente.

“O catolicismo é um sistema que se pode estudar. É um sistema de valores, de práticas, de ritos. A fé é intangível.”

No livro tem um poema interessante que liga o São Sebastião, o santo, e o D. Sebastião. De alguma forma, acha que Portugal ainda está à espera do sebastianismo?

O poema não tem nada a ver com o sebastianismo. É uma mistura entre uma determinada imagem muito forte, a imagem do São Sebastião cravejado de setas, que as pessoas conhecem, e essa imagem mítica do D. Sebastião que morreu, mas pode voltar. Mas não é especialmente sobre o sebastianismo, não é um tema que me interessa particularmente. Foi apenas o facto de serem figuras quase míticas e que morreram de uma forma violenta. Gerou toda uma imagem à volta disso, à volta da iconografia de um e do outro.

O São Sebastião acaba por ser uma das iconografias mais fortes da igreja.

Até penso mais nele como uma das iconografias mais fortes da história da pintura.

Mas a Igreja também precisa dessa iconografia forte. A igreja está repleta, aliás, de iconografias bastante fortes.

Sim, é verdade, mas hoje em dia essas imagens, essa pintura figurativa e representativa correspondem, essencialmente, a outra época. Era uma forma de, numa época em que havia muitíssimos analfabetos, as imagens da Bíblia serem transmitidas ou pelo discurso ou pela pintura. Isso interessa-me bastante mas, como digo, o sebastianismo em si mesmo não me interessa particularmente.

Capa do livro / DR

A religião também acaba por estar presente neste livro.

Pouco, muito pouco.

Mas também está.

Também está.

Há outro poema que começa desta forma: “Vencido do catolicismo sem plural, que me conforte ou confronte, sem um ombro gratuito, conveniente, de uma geração que me consola.” A fé é algo que é sempre constante, ou vai tendo oscilações ao longo do tempo?

Não sei ao certo responder a isso. Na verdade, o poema é uma glosa a um livrinho do João Bénard da Costa que se chama “Nós os Vencidos do Catolicismo”. Por isso é que digo que não uso o plural, uso o singular. Ele está a falar, evidentemente, de uma série de pessoas, dos chamados católicos progressistas no tempo do Estado Novo, e que viviam aquela tensão entre serem católicos e estarem contra o regime que tinha a bênção da Igreja. O poema parte dessa ideia, de tornar o plural singular e, depois, descreve algumas relações ambivalentes com o catolicismo. A fé é outra coisa. Creio que nunca escrevi sobre a fé. Escrevi sobre o catolicismo uma dúzia de vezes.

Encara como duas coisas podem ser diferentes, a fé e o catolicismo.

Sim, são completamente diferentes porque o catolicismo é um sistema que se pode estudar. É um sistema de valores, de práticas, de ritos. A fé é intangível. É uma pessoa acreditar em qualquer coisa. Não seria capaz, certamente, de escrever sobre a fé porque não saberia por onde começar.

“Havia uma aura da poesia que se perdeu. Mas também se perdeu a aura do cinema, pelo menos do cinema em sala. Várias auras acabaram por se perder.”

Por que é que acha que a poesia ainda surge revestida de uma certa aura, mas acaba por ser menos vendida? Ou pode acabar por não ter tanta expressão?

Na verdade, não tenho certeza nenhuma dessas coisas. A poesia, tirando meia dúzia de autores, ontem como hoje vende pouco, nunca vendeu muito. Houve sempre o Eugénio de Andrade, a Sofia, etc. A maioria dos poetas do século XX vendiam tantos livros como os poetas de agora. Em relação à aura, existe em algumas pessoas, mas é uma espécie de aura já desgastada. Já não tem aquele efeito mais ou menos glamoroso que a poesia tinha. O Leonard Cohen, que era o Leonard Cohen, dizia que já não se impressiona nenhuma mulher com um poema. No caso dele, era manifestamente falso, mas quero dizer que havia uma aura da poesia que se perdeu. Mas também se perdeu a aura do cinema, pelo menos do cinema em sala. Várias auras acabaram por se perder. A poesia ainda tem um elevado prestígio porque, apesar de tudo, num país como Portugal, ainda há um número suficiente de poetas tão importantes como os maiores poetas mundiais. Havia uma aura em Herberto Helder, assim como em muitos poetas, mas não saberia dizer hoje se há algum poeta vivo português que tenha uma aura especial. Acho que isso largamente acabou, pelo menos em Portugal.

Numa entrevista para a “Prova Oral”, do Fernando Alvim, disse gostar de Freud como escritor e que essa era uma das razões para ainda se manter interessante atualmente mesmo que, cientificamente, possam existir divergências com a sua teoria. Ainda mantém esta visão?

Sim, digamos que há três dimensões do Freud. Uma é a que está mais posta em causa hoje em dia e diz respeito ao funcionamento da mente. Hoje sabemos uma série de factos acerca do funcionamento da mente que, na altura, não sabíamos. Temos, portanto, instrumentos que nos permitem perceber como é que funciona o cérebro. Desse ponto de vista, o Freud foi ultrapassado pela evolução tecnológica. Há, depois, um segundo aspeto do Freud que diz respeito ao homem de teorias fascinantes, mas que são teorias basicamente impossíveis de provar. O complexo de édipo, assim como teorias desse género, têm um certo fascínio, mas parecem mais literatura, aliás, vêm da literatura. Mas o Freud, sobretudo, escrevia maravilhosamente. Aliás, ganhou o prémio Goethe pela sua escrita [em 1930] e é um dos grandes escritores do século XX. Isso faz com que tenha um poder de sedução para o leitor que ultrapassa a nossa adesão, ou não, às teses dele e ao que diz, mesmo quando não percebemos ou não concordamos. Estão, no entanto, formuladas de uma maneira muito forte e muito literária.

Pedro Mexia / Fotografia de Rui André Soares – CCA

No título de uma entrevista de alguns anos surge esta citação: “Sou conservador, ma non troppo”. Ainda se revê assim?

As pessoas tendem a definir o conservadorismo como um adjetivo, mas o conservadorismo é um substantivo. Ou seja, as pessoas podem dizer que esta pessoa tem uma maneira de cozinhar muito conservadora. Não é esse tipo de conservadorismo que me interessa, não é a maneira como as pessoas fazem as coisas e também não é, certamente, uma associação que é quase obrigatória entre o conservadorismo e o conservadorismo em matéria de costumes ou comportamento sexual. Não é nada disso que me interessa. Interessa-me o conservadorismo no sentido de ser uma tentativa, e digo tentativa porque, geralmente falha, de, no meio de tantas mudanças — e existem algumas mudanças positivas, naturalmente — tentar preservar as coisas que são boas e que não necessitam de mudança. Como dizem os teóricos do conservadorismo, coisas que sobreviveram à prova do tempo.

Por esse ponto de vista, sim, não sou um adepto de mudar por mudar, mas a mudança é inevitável e é necessária em muitas matérias. Acho que a hostilidade ao conservadorismo, na verdade, é uma espécie de mistificação porque toda a gente quer conservar aquilo que gosta. Toda a gente quer conservar as pessoas de quem gosta, toda a gente quer conservar os objetos de que gosta. Isto é uma forma não política de conservadorismo, de certa forma, mas quero conservar coisas de que gosto. Por exemplo, neste momento — embora, historicamente, nem sempre os conservadores tenham sido propriamente amigos da liberdade de expressão — acho que é importante conservar a liberdade de expressão e deixar que as pessoas digam e escrevam coisas que vão ofender outros, magoar outros, ou ferir suscetibilidades porque, caso contrário, não há liberdade de expressão. Se só vamos poder dizer coisas que não afetam ninguém, isso não é liberdade de expressão. Este é um combate que, estranhamente, está mais a cargo dos conservadores do que dos progressistas que, tradicionalmente, eram os maiores amigos da liberdade de expressão.

“As pessoas tendem a definir o conservadorismo como um adjetivo, mas o conservadorismo é um substantivo.”

Mas, por outro lado, o progressismo também pode estar ligado à ideia do avanço e progresso. Como é que definiria as palavras avanço e progresso? Como é que olha para o significado destas palavras, hoje em dia?

O progresso, se lhe quisermos chamar assim, é um facto da vida. Basta pensarmos como vivíamos há cem anos e como vivemos hoje: a quantidade de instrumentos, de gadgets, de técnicas médicas, em tudo isso houve um progresso. Não há nada de errado com o progresso, naturalmente. Não só é inevitável como é bom. Evidentemente que se pode dizer que há certos tipos de progresso que trazem um lado problemático agarrado a si, por exemplo, a energia e a bomba atómica. É evidente que aquilo foi um progresso mas, também, é evidente que esteve ligado a um dos momentos mais tenebrosos do século XX: Hiroshima e Nagasaki. Não sou, portanto, capaz de dizer que todo o progresso é bom ou mau, depende muito da sua utilização. Uma coisa muito engraçada, as pessoas fartaram-se de louvar a internet quando o Obama foi eleito e fartaram-se de culpar a internet quando o Trump foi eleito. Isso prova bem que uma novidade tecnológica não é boa nem má. Pode acontecer uma coisa, pode acontecer outra. Faz-me impressão que alguém adira cegamente ou recuse inteiramente o progresso. Não faz sentido para mim.

Acha que a direita ao centro tem tido uma maior dificuldade em encontrar a sua identidade
principalmente depois da crise de 2008 e o avanço de ideais mais extremistas? Ou pelo
menos tem tido uma maior dificuldade em recentrar os valores cristãos na solidariedade e
partilha?

São duas perguntas. Na verdade, os valores cristãos estavam mais ou menos disseminados pelos vários partidos de direita, particularmente europeu, sobretudo por uma peleia de partidos democratas cristãos. Isso já não existe agora com a mesma força. Claro que não é preciso ser-se democrata cristão para ter ideias políticas que tenham alguma coisa a ver com o cristianismo. Mas acho que a direita moderada, chamemos-lhe assim, está, desde os anos 30 do séc. XX, no seu momento mais débil. Está completamente emparedada entre as questões da esquerda e da extrema-direita. Acho que neste momento não há quase nenhum partido que escape a essa realidade ou, então, ainda pior, vemos a direita que copia os temas e as causas da extrema-direita. Nesse aspeto, vejo com muita preocupação o que se está a passar nos partidos de direita europeus e nos americanos nem vale a pena falar.

“A hostilidade ao conservadorismo, na verdade, é uma espécie de mistificação porque toda a gente quer conservar aquilo que gosta.”

Acha que os ideais do liberalismo e do neoliberalismo se complementam com os ideais do cristianismo?

É difícil responder porque sei, perfeitamente, o que são os ideais do cristianismo enquanto que há vários liberalismos. Acho que, certamente, muitos valores do liberalismo não chocam com o cristianismo mas, certamente, outros sim, tal como a ideia de que as pessoas se devem bastar a si mesmas, caso contrário paciência. Essa não é uma ideia cristã. Partindo desse ponto de vista, esse tipo de liberalismo sem consciência social é um liberalismo claramente não cristão. Aliás, hoje em dia, é muito raro o liberal ser o chamado liberal cristão. Embora seja possível, até na questão das liberdades, porque depois também há a diferença entre o liberalismo político, económico e social, que não sei bem o que é, mas há de ser alguma coisa. Mas acho que, do ponto de vista social e da preocupação social, o cristianismo e o liberalismo não casam bem.

Pedro Mexia / Fotografia de Rui André Soares – CCA

Até porque há aquela frase da Bíblia que é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico no reino dos céus.

Sim, mas não é preciso ser-se rico para se ser liberal. Há países onde os partidos liberais têm uma votação significativa e há, até, partidos liberais no governo. Não creio, portanto, que essa identificação absoluta com os ricos seja uma obrigação. É verdade que há algumas ideias do liberalismo, tal como o concebemos hoje, que agradam mais aos ricos. Isso é um facto. Temos um partido liberal e a votação corresponde às classes médias e médias altas das grandes cidades, isso é verdade, mas isso não é uma regra universal. Há muitos liberais que acreditam nos valores do liberalismo sem terem, digamos assim, um interesse pessoal, sem que isso seja a defesa do seu status mas, simplesmente, por ser uma ideia política na qual se acredita.

“Do ponto de vista social e da preocupação social, o cristianismo e o liberalismo não casam bem.”

No início da crise de 2008, por exemplo, tentou-se promover esta ideia do liberal que vendia um estilo de sucesso social: só se é válido se, socialmente, se conseguir um determinado tipo de sucesso. Lembro-me, por exemplo, de uma palestra do Miguel Gonçalves em que ele quase goza com uma jovem que estava desempregada há já algum tempo. Foi um período bastante difícil e, se calhar, houve interesse em que esta fosse a face mais visível do liberalismo para a sociedade. Acreditou-se que “o fazeres por ti próprio” seria a verdadeira solução para a crise e para a situação precária dos jovens.

Que seja mais visível não é um problema, acho que é normal que as ideias políticas queiram ser visíveis.

Mas foi visto como um tipo de solução na altura.

Bom, talvez, mas acho que essas ideias são particularmente perniciosas. A ideia de que o valor de uma pessoa depende do seu sucesso, da sua conta bancária, do seu cheiro para os negócios, trata-se de uma perspetiva que não só não é cristã como é francamente chocante.

Na peça de teatro “Suécia” há o confronto entre o sogro que é acusado pelo genro de ser contra a igualdade, a educação, o pleno emprego, os impostos, a segurança social, os direitos dos trabalhadores e a solidariedade. Mesmo que este não seja um texto que expresse o seu pensamento político, não poderíamos encontrar este confronto em Portugal também, agora, nos dias de hoje?

Provavelmente, mas nunca me ocorreu Portugal. Trata-se de um texto que resultou de um convite para o Teatro Nacional de São João, para eu escrever uma peça para eles. Disse-lhes que só tinha uma ideia sobre uma peça, até hoje, e era sobre a Suécia. Tinha lido muito sobre a Suécia e a discussão, portanto, é puramente situada no tempo. Tem a ver, por exemplo, com o facto do Partido Social Democrata sueco ter estado no governo durante 44 anos. Tem a ver com a ideia de que o modelo sueco era a sociedade democrática ideal mas, também, tem a ver com um grande descontentamento. Percebemos que as pessoas mais descontentes com o modelo sueco eram os intelectuais e os artistas. O Ingmar Bergman exilou-se por causa da política fiscal e das acusações que lhe fizeram nessa matéria, assim como muitos escritores suecos escreveram sobre essa tal Suécia paradisíaca de uma forma nada paradisíaca.

Interessava-me muito essa ideia. Nasci em 72 e não me lembro bem dos anos 70, mas fiquei sempre com a ideia de que, não somente para mim, mas para muita gente, aquele era o sistema ideal. Achei curioso, ao longo dos anos, ter lido tanta gente — boa parte de esquerda, essa é a parte mais interessante — a dizer que a Suécia era, digamos, socialmente justa mas que, por exemplo, era uma sociedade que incentivava a uniformidade, a unanimidade, uma liberdade bastante controlada. Como tinha lido muito sobre isso e porque gosto muito de um dramaturgo sueco, o [August] Strindberg, de facto já tinha uma bibliografia. Aliás, a peça tem uma bibliografia extensa porque a maioria das conversas são inspiradas em textos dos anos 70 que li sobre a Suécia. A Susan Sontag, que era o ídolo da esquerda americana, foi à Suécia e odiou. Tem, aliás, um texto violentíssimo sobre a Suécia. Não tem absolutamente nada a ver com Portugal, nunca vivemos num regime daqueles, o nosso Partido Social Democrata é de direita.

“Vejo com muita preocupação o que se está a passar nos partidos de direita europeus e nos americanos nem vale a pena falar.”

A pergunta estava focada no confronto de ideologias e se, de alguma forma, não poderia ter ressonância nos dias de hoje.

Não é bem, porque como a peça tem uma dimensão de comédia, pelo menos em certos momentos do texto há, claramente, partes em que se percebe que a discussão ideológica tem a ver com confrontos pessoais. São pessoas que não gostam uma da outra a discutir e aproveitam a política para isso. De facto, a personagem que se podia dizer que tem opiniões políticas mais parecidas com a minha é, de longe, a personagem mais antipática do texto, a mais injusta e mais preconceituosa. Portanto, não me preocupei com isso, pelo contrário.

Pedro Mexia / Fotografia de Rui André Soares – CCA

Sim, mas, de alguma forma, mesmo os livros que não sejam políticos podem acabar por ter essa ressonância. “O Grande Gatsby”, por exemplo, é essencialmente político embora seja o romance que apareça em primeiro plano.

Claro que podemos ler tudo como política, mas acho que, às vezes, força-se demasiado essa nota. Não me parece que a lírica do Camões seja política. “Os Lusíadas” têm uma dimensão política, evidentemente, mas não tenho essa tentação de ver política em tudo. A política está em todo lado, de facto. Mas há dimensões da nossa vida em que ela é menos permanente ou premente. O que não quer dizer que não haja leituras políticas interessantes e originais de textos que não nos parecem políticos. Há vários casos desses. Mas, à partida, tenho mais resistência a isso.

“A ideia de que o valor de uma pessoa depende do seu sucesso, da sua conta bancária, do seu cheiro para os negócios, trata-se de uma perspetiva que não só não é cristã como é francamente chocante.”

“Temperamentalmente sou um pessimista. Filosoficamente, um conservador. Politicamente
um moderado, socialmente, sou esquivo, e pessoalmente sou um radical”, foi o que escreveu em “Malparado – Diários 2012-2015”. O que significam todas estas distinções? O que é ser-se filosoficamente um conservador e politicamente um moderado?

Porque o conservadorismo, tal como o marxismo e outras ideias é, antes de mais, uma filosofia. Ou seja, é uma compreensão do mundo. Não é, simplesmente, o programa político dos partidos conservadores. É uma maneira de ver o mundo, de olhar para o progresso, para a mudança, para a conservação. Nesse sentido, quis sublinhar a ideia de que o conservadorismo é uma filosofia. Seria mais normal ter dito que politicamente sou conservador. Mas aí interessou-me a expressão moderado porque, evidentemente, desde 2006, pelo menos, a direita bloqueou e, portanto, não quero ter nada a ver com o que se passou nos Estados Unidos, no Brasil, em França atualmente, e em outros países. A moderação é uma qualidade que aprecio e que acho que pratico. Claro que não se é politicamente moderado, é preciso ser-se moderado em algum campo. Mas tal como quis dizer que o conservadorismo é uma filosofia, quis também dizer que a moderação é uma virtude política, como acho que é.

“A diferença de classe é, depois da anatomia, a mais nítida e atuante distinção entre as
pessoas. E não há diferença sem conflito. Acreditar na luta de classes não é uma ideologia.
A luta de classes é uma lei tão evidente e tão férrea como a lei da gravidade”. Quer explicar
melhor esta sua frase?

Não há dúvida de que existem classes, que as classes têm interesses contraditórios e que estão em confronto. Nessa parte o Karl Marx estava certinho. Isso é uma evidência. Há consequências em se ter nascido numa determinada classe em termos de preconceito social, de vingar, seja o que for. Portanto, sim, parece-me que é uma evidência.

Pedro Mexia / Fotografia de Rui André Soares – CCA

Como é que olha para o plano de ação do Governo para a comunicação social e as medidas para a RTP?

Tenho em conta que há cada vez menos pessoas a comprar jornais, acho que o modelo dos jornais vai ser quase um modelo de crowdfunding. Ou seja, vão ser os leitores e os amigos do jornal a sustentar o jornal. Não havendo ainda essa formula, pelo menos cá, no que diz respeito aos jornais, não acho mal que o Governo faça algumas medidas de apoio em termos de assinaturas, essas coisas todas, mas — aí, realmente, sou liberal — não me agrada muito que os jornais fiquem dependentes do dinheiro do Governo. O Governo é, naturalmente, um dos alvos normais, saudavelmente normais, dos jornais: trata-se de quem faz as políticas que determinam a nossa vida. O facto de isso poder significar que os jornalistas pensem duas vezes antes de publicarem uma notícia negativa para o Governo porque, caso contrário, podem cortar o subsídio, isso é bastante problemático.

Em relação à RTP, tenho uma posição que não direi que é única, mas não é nenhuma das posições mais comuns: manter tudo como está, ou privatizar tudo. No meu entendimento da RTP, a estação devia ser uma televisão de serviço público e que, portanto, devia exibir programas de serviço público, minoritários, que o mercado não quer, e aos quais as pessoas não teriam acesso de outra maneira. Nesse sentido, para mim é totalmente absurdo que haja concursos e novelas na RTP. Não faz sentido. Considero, portanto, que a RTP devia ser a RTP 2, ou seja, uma forma de dar resposta ao que não é popular e de sucesso, mas que são conteúdos aos quais os espectadores têm direito a ter acesso. Não vejo sentido nenhum que a RTP tenha o mesmo tipo de programas de um canal comercial.

“Não há dúvida de que existem classes, que as classes têm interesses contraditórios e que estão em confronto. Nessa parte o Karl Marx estava certinho. Isso é uma evidência. Há consequências em se ter nascido numa determinada classe em termos de preconceito social (…)”

Mas acha que se fez essa divisão, o cultural foi chutado para a RTP 2.

Isso foi, não há dúvida nenhuma. Não acho que seja negativo, mas há um grande empenho no facto da RTP poder ser concorrencial em termos de audiências e, obviamente, a RTP 2 tem audiências marginais. Mas, honestamente, não consigo perceber porque é que uma coisa que toda a gente quer, como novelas ou concursos, é pago pelo dinheiro público, em vez de se investir em boas séries estrangeiras, documentários e outros produtos menos apelativos: isso é a função da RTP.

Mas também há, por exemplo, na questão do cinema, muitos bons filmes que já passaram pela RTP – falo do conjunto da RTP — e que agora estão, também, sempre disponíveis na RTP Play. Há muitas pessoas que, de outra forma, não poderiam ter acesso a este tipo de cinema. Também houve o financiamento, por exemplo, de documentários importantes como foi “O Deus de Cérebro” e que tiveram reconhecimento.

Entendo o Estado de duas maneiras: o Estado, por um lado, monopolista, ou seja, só o Estado é que pode organizar a justiça, a defesa e a segurança. Sem dúvida nenhuma. Mais ninguém pode nem o deve fazer. Nas outras coisas, o Estado devia ser supletivo, ou seja, devia existir na falta de privados que o façam com qualidade. Não vejo, particularmente, a necessidade de haver uma programação totalmente mainstream e comercial na RTP. Parece-me, francamente, dinheiro atirado à rua porque não são programas que deixassem de ser exibidos na televisão, caso a RTP não os quisesse. A RTP tem a obrigação de programar aquilo que é bom, que as pessoas, muitas ou poucas, já viram ou não, isso faz parte da lógica. Mas preferia que houvesse, tal como na RTP2, muitos filmes, muitas séries e muitos documentários. Tenho a noção que isso provocaria um motim na RTP, mas seria o que para mim faria mais sentido.

Como é que é ser o assessor da cultura do Presidente da República?

É muito fácil por ser uma pessoa que tem genuíno interesse por cultura, conhecimento e hábitos culturais. Todos os assessores, de todas as áreas, dizemos às vezes que o Presidente não precisava de assessor nenhum porque não há praticamente nada que ele não domine. O trabalho passa por dar conselhos, ajudar a escolher, lembrar-lhe alguém que está esquecido, uma efeméride e saber o que foi. Mas o Presidente sabe perfeitamente, e não é desde que é Presidente, sempre foi assim, o que é que lhe interessa. É bastante mais fácil do que se estivesse a cumprir uma função para a qual o titular do cargo não tivesse apetência ou gosto.

“A RTP devia ser a RTP 2, ou seja, uma forma de dar resposta ao que não é popular e de sucesso, mas que são conteúdos aos quais os espectadores têm direito a ter acesso.”

Como é coordenar a coleção de poesia da “Tinta da China”.

É ótimo porque foi uma coisa em que nunca tinha, realmente, pensado fazer. Mas quando foi proposta gostei muito da ideia e, claro, gosto muito de fazer. É um pouco frustrante porque só publicamos quatro títulos por ano. O que significa, evidentemente, que todos os anos tenho 10, 12 ou 15 livros que gostaria de publicar e não posso, uma vez que foi esse o compromisso. Um compromisso prudente, uma pequena editora não publica quatro títulos por ano, mas é fantástico. Conhecer, portanto, e dar a conhecer um poeta novo é excelente. Gosto muito de fazer isso. Se fosse possível, no mundo ideal, e tivesse 20 títulos por ano, teria outra margem, mas foi essa a combinação. Trata-se de uma combinação sensata para uma editora que não pode, propriamente, entrar em aventuras.

Regressando à sua resposta sobre os jornais, o Estado, e uma possível influência que comprometesse a isenção e a liberdade jornalística, esse dilema não poderia ser resolvido se houvesse um organismo independente que pudesse, de alguma forma, prevenir e fiscalizar essas possíveis influências do Estado?

Vou-lhe dar um exemplo. Não acredito nisso porque o organismo mais conhecido que temos em matéria de comunicação social é um organismo com um comportamento absolutamente vergonhoso, a ERC. A ERC é uma produtora de indignidades semanais, de decisões arbitrárias e sectárias. Houve um caso positivo, que penso que continua a ser positivo, embora não tenha seguido tanto, que é o Conselho Geral Independente da RTP. Parece-me que funcionou bem, mas o problema é que a independência é difícil. Percebemos, num caso como a ERC, de onde vem a pessoa X ou Y, como é que vai votar ou que recomendação vai escrever ou propor. Portanto, ter um organismo independente, que é pouco independente e pouco eficaz, não me parece bom. Temos este exemplo e é muito mau, francamente negativo.

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