Entrevista. Phill Veras: “Indirectamente, o meu objectivo é fazer música para curar a ansiedade de alguém, assim como a minha com o processo criativo”
Foi ao tentar tirar as músicas dos Nirvana de ouvido que o maranhense Phill Veras aprendeu a tocar violão. E assim deu os seus primeiros passos na música, tendo Kurt Cobain e companhia como primeiros professores. O gosto mais depurado e atento pelo MPB começou mais tarde ― na senda dos grandes mestres ― até porque, segundo o próprio, “ouvia bastante Caetano Veloso, Gilberto Gil, só que, para mim, ainda era difícil acompanhar as músicas, então acho que o rock era bem mais fácil.” Ainda na escola, por volta dos catorze anos, formou a sua primeira banda e teve o seu primeiro contacto com o palco, o que acabou por ser mais complicado porque, segundo as suas palavras “sou um cara muito tímido”.
O EP ‘Valsa e Vapor’, o seu primeiro trabalho discográfico, saiu em 2012. Seguiram-se, depois, os álbuns ‘Gaveta’, de 2013, e o álbum ‘Carpete’, de 2014. Inicialmente, mesmo com bateria e teclados, notava-se um foco ainda maior nas guitarras, numa vertente mais indie-folk, até. Houve, no entanto, uma evolução que se pautou por uma compreensão mais sedimentada da produção e das próprias ferramentas de gravação como, também, pela introdução dos sintetizadores e beats electrónicos. Atenção, as músicas continuam a ter o mesma linha de continuidade e a mesma sensibilidade na guitarra e no violão, até porque é nesse instrumento que Phill geralmente compõe — isso não mudou. Mas ganharam, ainda, uma maior leveza — quase como se sentíssemos as ondas sonoras a flutuar no ar — como lucraram com a introdução dos beats e sintetizadores.
É impossível dissociar este cantautor de uma suavidade musical que lhe é inerente, assim como um trabalho assente na exploração de uma maior extensão da sua voz. Tudo isso é visível em ‘Alma’ [2018] o seu último álbum, pautado por uma maior espiritualidade, completamente interior, como se fosse uma conversa de si para consigo mesmo. Consegue, ainda, aprofundar um lado onírico, uma ligação à ideia de sonho que, de forma mais ou menos subtil, sempre esteve presente nas suas letras. É algo completamente ligado à fantasia, que também tem muito de visual. Phill diz que “esse lado fantasioso na temática das músicas vem, sem dúvida, de uma fonte visual, abstracta, do lance da fantasia — bem fantasioso — meio como se fosse um Peter Pan.” Outra característica sua prende-se com a própria lírica que escreve. No seu caso, a composição vem sempre primeiro e, depois, a letra. As palavras são, desse modo, imbuídas, elas próprias, de uma sonoridade musical. Ou seja, há uma ligação muito grande à forma como se encaixam na métrica e à sua fonética, como soam. Dessa forma, quando ouvimos uma música de Phill, podemos ter a certeza que houve uma preocupação em encaixar cada palavra no seu lugar certo, como que a relembrar-nos que lirismo pode ser poético como musical, até porque a origem é a mesma. O artista, vindo diretamente do Brasil, vai actuar em Portugal nos dias 9 de Agosto, em Famalicão, no ‘Devesa Sunset’, e dia 10, em Lisboa, no Estúdio Time Out. Enquanto os concertos não chegam, atentem nas palavras do Phill, na seguinte entrevista cedida por Whatsapp.
É verdade que o teu gosto por música começou pelos Nirvana? Era o que ouvias na adolescência?
Sim. Nirvana foi o primeiro contacto, a altura em que comecei a interessar por música. Me influenciaram bastante, aprendi a tocar violão tocando as músicas deles e tudo mais. Foi, assim, o meu primeiro professor de música.
Então, eras mesmo fã de toda aquela onda e aura do Kurt Cobain!
Sim, era bastante fã e ainda sou. Mas, naquela época, escutava mais, quando tinha uns quinze ou catorze anos.
Então violão foi o teu primeiro instrumento?
Isso, exactamente. Foi o meu primeiro instrumento. Aprendi a tocar tentando tirar as músicas dos Nirvana. Tirava de ouvido.
O que ouvias mais?
Passei muito tempo só a ouvir Nirvana, tocava as músicas da banda para aprender a tocar violão. Mas, naquela época, eu lembro-me de ouvir muita música brasileira. Ouvia bastante Caetano Veloso, Gilberto Gil, só que, para mim, ainda era difícil acompanhar as músicas, então acho que o rock era bem mais fácil.
A música brasileira, ou MPB, também exige uma outra destreza ao violão. Num certo sentido acaba por ser mais complexa.
Exactamente. Eu ouvia mais por causa do meu pai, o meu pai ouvia bastante. Como eu era meio roqueiro, só ouvia Blink 182 e Nirvana, era o que me interessava. Depois, eu comecei a me interessar por música brasileira, comecei a escutar mais por volta dos dezoito anos, talvez.
A tua família é ligada, também, à música?
O meu pai colecciona discos. Guardava um quarto inteiro só para os discos e tudo mais. Ele é um consumidor muito forte e a colecção serviu como fonte durante muitos anos.
Lembras-te da tua primeira composição? Da primeira vez que te sentaste, com o teu violão, para compor?
Olha, não tenho uma lembrança muito clara, mas devia ter uns catorze anos quando formei a minha primeira banda, na escola. O que foi complicado para mim porque sou um cara muito tímido e foi o meu primeiro contacto com o palco. Mas, da minha primeira composição, não tenho uma lembrança muito clara.
Tu tens um lirismo muito interessante. Cada palavra das letras que compões parece estar, em comunhão com a sonoridade da música, no seu devido lugar. Tendo isso em conta, é interessante afirmares que, no teu caso, a composição vem primeiro e, só depois, a letra. A sonoridade, para ti, tem esse condão de puxar pelas palavras? As palavras têm de ser certeiras?
Nunca me considerei um bom letrista. Gosto das coisas que escrevo, às vezes me surpreendo, parece que vem do inconsciente, assim uma coisa, mas nunca é planejado. Nunca penso num tema para começar a escrever. Às vezes demora, às vezes escrevo uma música em uma hora, outras vezes demoro dias, mas sem planejar. Vou deixando as palavras fluírem respeitando, sempre, a métrica, com a qual tenho um certo perfeccionismo. Eu sou meio chato com isso, então, procuro mais as palavras que soam melhor. Prefiro uma palavra que soe bem do que alguma coisa com, sei lá, um significado profundo. Não me prendo muito ao significado das palavras.
Então, no teu caso, a relação com as letras é, antes de mais, uma relação com a fonética.
Exactamente isso, exactamente. Eu sou meio chato quanto à fonética. Acho que a palavra tem de encaixar bem na métrica. Não sei focar exemplos agora, mais na prática mesmo, mas é bem isso, eu penso mais no som do que no significado.
Começaste com o EP, o ‘Valsa e Vapor’, que é mais curto, mais restrito. Depois partiste para os álbuns, mais longos. Quais foram os desafios, nessa altura, dessa transição.
Na verdade, foi o meu primeiro contacto com a gravação, com o processo de produção de um disco. Eu era super leigo e amador mas, ao estar num estúdio, me deixei envolver por aquilo tudo, com a situação, com os instrumentos, os amigos. Nos primeiros álbuns que fiz envolvi também os amigos, sempre foi uma coisa colectiva, na produção e tudo mais e, como primeiro contacto, eu consegui evoluir bastante do primeiro disco para o segundo. Tenho uma ligação maior com a ferramenta de gravação hoje em dia, acho que é um ponto muito importante ao longo dos discos gravados.
Tens algumas músicas nas plataformas digitais que não constam nos álbuns nem no EP, por exemplo, ‘Vida Vingará’ e ‘Pode vir Comigo’. Foi algo momentâneo? Depois de escritas, essas canções foram logo publicadas ou, as postagens, foram apenas para lhes dar uma outra vida uma vez que não constam nos álbuns?
Na verdade, a maioria dessas músicas já são bem antigas,ainda da minha adolescência. Pode vir comigo e Vida Vingará são dois temas que fiz há muito tempo, antes de gravarmos o meu primeiro EP, Valsa e Vapor. Elas já estavam prontas mas não entraram para nenhum álbum. Aconteceu naturalmente, nem pensei muito nisso. Fui gravando os discos e deixando essas músicas antigas para trás, mas já tinha o registo audiovisual delas e já estavam na rede e tudo o mais. Talvez, futuramente, eu faça isso numa ocasião mais nobre e as inclua, mas não sei muito bem explicar a razão porque aconteceu de forma muito natural, nunca foi algo planejado.
Mas não te chateiam nem te pedem para incluíres esses temas?
Pois é, ainda não veio a calhar, pode ser que aconteça futuramente, em algum álbum. Até agora ainda não aconteceu, mas não é uma coisa sobre a qual eu pense muito. Acho que o momento delas foi bem aquele momento. Não sei, talvez não tenha como colocar um ponto final nisso, mas pode ser que sejam resgatadas num álbum futuro, não sei.
O MPB está num momento muito bom, de rejuvenescimento, com artistas como Cícero, Rubel, Tuyo, Luiza Brina ou O Terno. O que é que achas de toda esta nova vaga que tem chegado, também, até nós, portugueses?
Eu acho incrível, maravilhoso. Gosto quando as pessoas me citam no meio dessas pessoas. Cícero eu conheço pessoalmente, Rubel também conheço. Gosto e admiro o trabalho de todos eles. Eu estou achando muito legal porque acho que esse pessoal todo tem sido muito benéfico. Eles estão vindo com um material muito bom, muito bem feito, muito bem produzido, com disco muito bem gravado, vídeos muito bem feitos. O Terno é um exemplo disso, admiro bastante. Eles utilizam sempre um material áudio e visual de muito bom gosto. Acho que quanto mais material a gente for produzindo assim, desse nível, a coisa tende a crescer, eu acho. Admiro bastante.
E não deixa de haver uma relação muito forte e respeito pela língua portuguesa, pelas palavras em si.
Sim, eu acho incrível. Trata-se de um trabalho bastante rico. É isso que eu estou te falando, o material na rede, o material audiovisual é o que causa impacto no público e é isso que não pode cessar nunca ― o facto de estar sempre na rede, postando coisas, produzindo material audiovisual novo e, enfim, ocupando toda a rede da internet, todas as plataformas. Acho que esse é que é o caminho certo.
Tu começaste pela internet, foi a tua catadupa. Tendo em conta o mercado editorial, como está actualmente, qual o papel da internet? Garante, de facto, um tipo de independência e projecção que, caso contrário, não existiria?
A internet foi a salvação disso. Os artistas fazem a sua própria vitrina, produzem as suas próprias coisas e têm o seu próprio espaço independente de qualquer empresa, gravadora ou qualquer outra coisa. Acho que a internet ajudou bastante nesse sentido, da produção independente e da auto-promoção.
Uma das coisas que é perceptível em todo o teu trabalho, desde o EP até ao ‘Alma’, é, precisamente, a ideia de sonho. Há um lado onírico no que apresentas, bastante forte.
Essa coisa do onírico e dos sonhos vem muito do facto de eu não me prender a significados. Eu gosto muito de escrever de uma forma livre e abstracta, aí isso me leva para esses ambientes de sonho e fantasia. É uma das minhas referências, algo que eu gosto muito em filmes, livros, histórias e tudo mais. Vem daí, essa é a fonte.
Isso leva a um contraponto, também, visual, imagético, quase que cinematográfico. Por exemplo, a ideia do “elevador ao pés”.
Ah, com certeza, com certeza. Eu sou um amante da arte do cinema. Mas é o que estou te falando, esse lado fantasioso na temática das músicas vem, sem dúvida, de uma fonte visual, abstracta, do lance da fantasia — bem fantasioso — meio como se fosse um Peter Pan.
Nos comentários ao teu trabalho, muitos dos teus fãs dizem que a tua música acalma e serve, quase, como uma terapia. Como é, para ti, ouvir ou ler isso?
Realmente, a minha música e a forma como eu componho serve como terapia para mim. Então, se isso se reflecte em outra pessoa, ou em outras pessoas que me ouvem, já é gratificante demais. É meio como se fosse o meu objectivo, fazer uma música para curar a ansiedade de alguém, assim como eu consigo curar a minha no processo de criação, mesmo.
Como caracterizas o teu lado espiritual? Pergunto isso porque é algo que está muito implícito no ‘Alma’. É algo mais teu, puramente interior. Encontras essa espiritualidade na natureza, por exemplo, como muitos fazem. Como é que a caracterizarias, de uma forma geral?
Olha, inicialmente acho que é uma coisa interior, sim. Acho não, tenho certeza. Isso é uma coisa minha, uma conversa comigo mesmo para me entender, me encontrar e me buscar ― o que significo e o que estou a fazer aqui. O ‘Alma’ fala muito disso. É uma viagem para dentro de si, uma viagem para se acalmar, para buscar serenidade e foco. A natureza é o ambiente em que a gente vive e onde a gente se mostra e explana ideias e tudo mais, até como espaço cultural. Eu não sei muito bem se isso influenciou muito a intenção do disco. Acho que é muito mais individual mesmo, não é tão social assim, não levanta uma bandeira social, é uma coisa mais para dentro de si próprio.
A tua voz dá-se muito bem nos agudos e falsetes. Ultimamente isso tem-se notado mais. Há uma actuação magistral tua com o Hélio Flanders, em que os dois interpretam Se Tiver Que Ser Na Bala, Vai, em que a harmonia de vozes está excelente e muito bem pensada. Isso para ti é consciente? É algo que tens tentado desenvolver?
É algo que se foi tornando mais consciente ao longo dos discos, até. Hoje em dia eu me cobro mais desse lado técnico da coisa. Eu sou autodidacta, nunca tive aula de canto, nunca entrei numa escola de música, o que aprendi foi resultado do que fui vendo e tentando repetir. Hoje eu me preocupo, tenho essa preocupação que se tem aguçado, tenho me interessado em procurar a teoria da coisa toda, estudar e tudo isso. Mas é um interesse que tem começado agora e, só neste momento, é que tenho procurado a parte teórica da música.
Actualmente como são as tuas composições? Continuam a ser ao violão ou já compões de propósito em outros instrumentos como, por exemplo, o piano?
Geralmente é ao violão, o instrumento com que me sinto mais seguro para me expressar. Mas já comecei a tocar sintetizadores, também, os sintetizadores mais simples. Piano não é um instrumentos com o qual tenha muita intimidade. Não sei tocar de uma forma tradicional, mais séria. Sei lá, vou ouvindo a nota e vou procurando as notas que se encaixam, na verdade. O sintetizadores já são mais fáceis para mim, com os beats electrónicos são mais simples, dá para fazer mais coisas por instinto, talvez.
A tua relação com os sintetizadores como começou e onde vais buscar as influências para isso?
Ouço muitas bandas que usam bastantes sintetizadores, desde as minhas bandas favoritas dos anos 80 até algo mais recente como Tame Impala. Acho bonito e nostálgico. Na prática eu utilizo de uma forma intuitiva, por não ter muita intimidade com instrumentos de teclas.
Estas vão ser as tuas primeiras actuações em Portugal, certo? Já conheces o país? O que podemos esperar dos concertos?
Não conheço, estou muito animado. Não faço ideia de como vai ser mas a experiência, com certeza, vai valer. Estou ansioso.