Entrevista. Rafael Gallo: “Nunca senti pressão em falhar e ter de arranjar outro sonho”
Rafael Gallo é o vencedor do Prémio José Saramago 2022 e está em Portugal para apresentar a obra vencedora “Dor Fantasma”. Com 41 anos, o autor já experienciou as crises provocadas pela frustração dos sonhos que não se tornam realidade. Sonhou, em criança, ser desenhista, e em adolescente virou-se para a música, alimentando, de alguma forma, o sonho de ser uma rockstar. Sempre de mãos dadas com a arte, Rafael Gallo vira-se para a escrita aos 30 anos. Vence dois prémios literários — Prémio SESC de Literatura e Prémio São Paulo de Literatura, com as obras “Réveillon e outros dias” e “Rebentar”, respetivamente — mas, mesmo assim, nunca chegou a estabelecer-se como escritor. Recebe, aos 41 anos, um prémio muito desejado pelo próprio, numa altura em que passava por uma crise pessoal e se preparava para desistir da escrita. Numa conversa aberta que vai desde a vida do autor, passando pela sua obra e chegando até à vida do autor dentro da sua obra, explorámos os caminhos e paixões do escritor brasileiro.
Entre felicidades e infelicidades, como defines a tua infância?
Acho que a minha infância foi razoável. Não houve nenhum trauma, nenhuma grande tragédia. A partir disto, não posso classificar a minha infância de forma negativa. Desde pequeno que sou muito introspetivo. Era normal, para mim, ficar num canto imaginando personagens que ia criando.Imaginava super-heróis e perguntava-me qual a história deles. Depois criava, tudo isto através do desenho. Comecei a escrever literatura perto dos 30 anos, mas penso que a parte criativa sempre esteve presente em mim. Quando comecei a escrever, o músculo da criatividade já estava bem crescido.
Tens formação em música. Os teus sonhos estão todos relacionados com a arte?
Quando era criança queria ser desenhista, era o meu sonho. Mas quando comecei a entrar na adolescência, reparei na música e nas bandas e fiquei agarrado a elas. Aí o meu sonho mudou. Queria ser rockstar, mas depois com o passar do tempo comecei a pensar que provavelmente também não ia acontecer. Mas foi tudo passando, nunca senti pressão em falhar e ter de arranjar outro sonho.
Quais os instrumentos que tocas?
Toco violão, piano, guitarra. A fase rockstar está mais ligada com a guitarra. E canto também, mas sou péssimo. Também já compus música, e quando compunha ligava sempre muito à letra, não queria que fosse nada de óbvio do género: “só penso em você, não consigo te esquecer”.
“A poesia parece-me um outro desporto que não é para todos os romancistas. Sinto um respeito, talvez até excessivo pela poesia, então não acho fácil escrevê-la, não consigo entrar na poesia e ficar solto.”
Rafael Gallo, escritor brasileiro vencedor do Prémio José Saramago 2022
Como surgem as artes na tua vida?
Gradualmente. Surgiram, desde logo, na minha imaginação quando ia para um canto e me punha a imaginar os super-heróis. Depois foi o adolescente que queria ser rockstar. Fui entrando na arte e no intelecto e tudo surgiu naturalmente. Observava, por exemplo, quadros do Van Gogh e sentia necessidade de me expressar, não necessariamente através da pintura, mas da arte.
Quando falhaste, por exemplo, em ser rockstar, seguiste em frente sem mágoa ou sentiste alguma frustração?
Claro que há frustração. O caminho do artista é pavimentado por frustração. Até na literatura. O “Dor Fantasma” foi recusado por editoras, houve gente que leu e não gostou. Foram 6 anos a escrever e aperfeiçoar o “Dor Fantasma”. Estava cansado já das recusas e tive as minhas próprias crises pessoais. Se eu não tivesse ganhado o Prémio Saramago, o livro provavelmente ia para o lixo. E eu mesmo ia parar de escrever, por muito tempo acho. Na infância desenhei, na adolescência toquei música, dos 30 aos 40 escrevi, e agora qual é a próxima coisa? Tinha este pensamento depois de ver o “Dor Fantasma” recusado. Estava já a ver cursos de cerâmica para me inscrever e deixar a escrita.
Não só como escritor, mas renasces com o Prémio José Saramago?
Sim, é essa a palavra. O Prémio José Saramago foi uma salvação. O prémio até me salvou de mim mesmo, sempre foi um sonho ganhar este prémio. Às vezes perguntam se preferia ganhar este ou aquele prémio, e eu escolho sempre o Prémio Saramago, sei tudo ou quase tudo sobre o prémio. Se fizessem um trivia sobre o prémio eu ia acertar quase todas as perguntas.
Qual o teu posicionamento em relação à religião?
Ateu praticante, igual ao Saramago.
Quando é que um escritor se torna escritor?
Sou a pessoa menos indicada para responder a isso. Mas consigo identificar quando me senti escritor: foi quando tive o meu primeiro livro na mão. Não basta pegar na caneta para se ser escritor. Até posso dizer que comecei a ser escritor quando era criança e criava os super-heróis. Se tivesse sucedido na música, poderia dizer que comecei a ser músico quando criava as personagens e desenhava, o aspeto da criatividade começou muito cedo. Não me lembro de mim mesmo sem esse lado de imaginar e criar coisas. Mas, definitivamente, só me senti escritor quando peguei o meu primeiro livro.
“[o amor] acho que é uma série de afinidades e gestos, uma série de escolhas, uma responsabilidade ética. Acho que é uma soma disso tudo e é muito dinâmica (…)”
Rafael Gallo, escritor brasileiro vencedor do Prémio José Saramago 2022
Quais os teus autores preferidos?
Sou suspeito para falar, mas gosto muito da literatura portuguesa. Saramago, José Luís Peixoto, Dulce Maria Cardoso, Afonso Cruz, Valter Hugo Mãe, Gonçalo M. Tavares. Eles ajudaram-me a encontrar o meu estilo de escrita. Às vezes olho para os meus textos e consigo identificar certos autores, leio e vejo o Saramago, leio e vejo a Clarice Lispector, mas são coisas que provavelmente só eu é que noto.
Quais as tuas influências musicais?
Gosto, por exemplo, do Chico Buarque, do Tom Jobim. Acho que eles me influenciaram na escrita. Em relação ao “Dor Fantasma”, penso que ninguém vai falar que o texto está malcuidado, podem não gostar do livro, mas acho que não falarão que o texto está desleixado. E isto vai de encontro à música muito cuidada do Tom Jobim. Mas também gosto de bandas de rock. Alice in Chains, Nirvana, Soundgarden, por aí.
Uma das inspirações do Saramago foi a Pilar. Quais são as tuas inspirações aos 41 anos?
Acho que são as minhas rebeliões íntimas. Penso no que é que me incomoda, quais os fantasmas que me perturbam e digo-lhes: “senta aqui, agora vamos conversar”. Em vez de matar logo os fantasmas, tento sentá-los e tirar a partir dessa conversa uma desforra.
Ao mesmo tempo que te sentas e falas com o fantasma, matas o fantasma?
Sim. O “Dor Fantasma” é exemplo disso. Eu trabalhava em música antes e depois fui trabalhar num emprego fixo e chato, e isso provocou-me uma crise gigantesca. Trabalhei no Tribunal de Justiça, e isso provocou uma crise, mas se eu escrevesse essa história ninguém quereria ler. Então fiz uma analogia dessa minha história para outra realidade ficcionada. Criei um pianista de música clássica, virtuoso, que sofre um acidente. Transportei as dores da minha história para uma narrativa ficcionada bem mais interessante do que a minha realidade no Tribunal.
Além do perfecionismo da personagem principal, quais os outros temas e problemáticas que abordas na obra “Dor Fantasma”?
Há mais coisas além do pianista obcecado com perfecionismo que sofre um acidente e não toca mais. O meu livro anterior “Rebentar”, fala da mãe de um filho desaparecido, falo muito do vínculo maternal e paternal. É quase como se o “Rebentar” fosse o livro da mãe, e o “Dor Fantasma” o do pai. Neste novo livro quis debruçar-me muito sobre a masculinidade dos vínculos. A personagem principal adora o pai, quer agradar o pai, quer ser como o pai, só que isso é um problema. Há um problema na parte da sensibilidade masculina, até nas coisas que ficam por dizer. Quando casei o perfecionismo do Rómulo com esta problemática dos vínculos, então foi aí que nasceu a história.
“O caminho do artista é pavimentado por frustração.”
Rafael Gallo, escritor brasileiro vencedor do Prémio José Saramago 2022
Algumas dessas problemáticas são dores pessoais?
Sim, claro. Há sempre uma parte dos autores na literatura.
Escreveste dois romances e um livro de contos. E a poesia?
Já escrevi algumas coisas, mas acho que não sou um grande poeta. A poesia parece-me um outro desporto que não é para todos os romancistas. Sinto um respeito, talvez até excessivo pela poesia, então não acho fácil escrevê-la, não consigo entrar na poesia e ficar solto.
Quando acabas um livro consegues depois distanciar-te da história e personagens?
Não, fico muito agarrado. Agora quando me sentar para escrever o próximo romance vou sentir essa dificuldade. Vou estar a escrever e a criar e ao mesmo tempo vou estar a dizer ao Rómulo para sair da minha cabeça. Vai ser difícil.
Sei que caíste de joelhos e começaste a chorar, mas o que é que sentiste quando te ligaram a congratular-te por teres vencido o Prémio José Saramago?
Estava, na altura, numa fase de crise, a ver o livro recusado. Fui do fundo do poço até ao topo do mundo assim num instante, através de uma chamada telefónica. Ligaram-me inicialmente e eu não atendi. Vi que era um número estranho e não liguei, mas depois fui pesquisar o número e era de Portugal. Pensei que poderia ser do prémio e liguei de volta. Quando a Guilhermina Gomes atendeu e disse que eu era o vencedor do prémio, o meu corpo caiu no chão. Perdi-lhe o controlo e não me lembro das palavras exatas da Guilhermina. Eu chorava e ria, fiquei incrédulo e só sei que ela falou: “é seu, ninguém lho tira”, e até tatuei essa frase.
Qual a primeira pessoa a quem contaste a novidade de ser o vencedor do prémio?
Foi à minha namorada, a Babi. Pediram-me para só contar a pessoas muito próximas, porque o vencedor só seria revelado na cerimónia. Lembro-me que o resultado do prémio foi adiado e que um meu amigo escritor que também tinha participado me ligou a perguntar: “você sabe alguma coisa do Prémio Saramago?”, e eu fui obrigado a dizer que não, mesmo já sabendo que era o vencedor.
Quarenta e um anos e estabelecido na literatura, o que é que vês quando olhas para o futuro?
O ato da criação, esse é o motor para mim. Tenho o sonho de escrever o próximo livro. Sou inquieto, fico sempre querendo a próxima coisa, a próxima história. É uma fome que tenho.
Ninguém consegue responder melhor à próxima pergunta do que um romancista. O que é o amor?
Essa é a pergunta dos meus livros, na verdade. Para saber o que é o amor, vou mostrar tudo o que não é o amor. O “Dor Fantasma” é isso. Não sei exatamente o que é o amor, mas acho que é uma série de afinidades e gestos, uma série de escolhas, uma responsabilidade ética. Acho que é uma soma disso tudo e é muito dinâmica e não sei se ao falar isto não estou a dizer nada. O amor é a pergunta central dos romances.
É possível amar a paixão?
Acho que não. A isso chama-se a paixão pela paixão. E como a paixão é muito vaidosa, ela gosta de enganar e dizer que ela mesma é o amor. Mas não, não é. O amor vem depois da paixão. O tempo é que faz o amor.