Entrevista. Raquel Vaz-Pinto: “A opção da China tem sido diminuir a força do colectivo em detrimento do líder”

por Hélder Beja,    1 Março, 2023
Entrevista. Raquel Vaz-Pinto: “A opção da China tem sido diminuir a força do colectivo em detrimento do líder”
Raquel Vaz-Pinto / DR
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Revelação Cultural é um podcast sobre a China da autoria de Hélder Beja, feito a partir de Portugal. Conta com o apoio da Comunidade Cultura e Arte, do jornal Ponto Final e do Centro Científico e Cultural de Macau.

A investigadora Raquel Vaz-Pinto considera “extremamente hábil, mas com imensos riscos” a forma como a liderança chinesa tem sabido gerir algum descontentamento popular. Em entrevista ao podcast Revelação Cultural, fala ainda da guerra na Ucrânia e da relação de Pequim o seu passado recente, em especial com a Guerra de Resistência contra o Japão, conhecida fora da China como II Guerra Mundial.

China’s Good War, de Rana Mitter, é um livro que trata o modo como a China contemporânea se vem relacionando com o passado sangrento da II Guerra Mundial e foi a obra escolhida por Raquel Vaz-Pinto, investigadora e docente de Relações Internacionais, para lançar um olhar sobre o país no novo podcast Revelação Cultural. “Aquela leitura que estamos habituados a fazer é de que as ditaduras têm uma relação muito difícil com a história, e em particular a história que não lhes corre bem, mas este livro é muito mais do que isso e mostra-nos como de uma forma muito inteligente a China tem vindo a recuperar o seu papel [na II Guerra Mundial], está a fazer esse caminho”. 

Este novo olhar de Pequim sobre a II Guerra Mundial serve, de acordo com Vaz-Pinto, dois propósitos: um propósito internacional e a ideia de que a China de 2023 de certa forma já fez as pazes com a China que existia antes de 1949 – importa lembrar que “a luta na II Guerra Mundial, de um ponto de vista formal, foi feita pelo governo de Chiang Kai-shek, o governo dos nacionalistas da República da China”. Ao reivindicar este papel na guerra como de certa forma sendo seu, “esta China de hoje, a República Popular da China (RPC), está a fazer a normalização com o passado, algo que foi ao longo da sua história sempre difícil”. Este primeiro aspecto “dá peso à China a nível internacional”. Um segundo aspecto está relacionado com a questão de Taiwan, adita Raquel Vaz-Pinto: “Chiang Kai-shek, aos olhos de Xi Jinping e companhia, não está totalmente reabilitado, mas pelo menos já não é vilipendiado, o que é algo muito positivo. E isto explica-se de uma forma muito simples: à medida que o tempo passa, na ilha de Taiwan, cada vez mais os jovens nascem e se sentem taiwaneses, já não têm aquela vivência óbvia dos que vieram fugidos da China, chegaram à ilha, e, enfim, massacraram boa parte dos nativos da ilha e, portanto, também isto é uma relação difícil. Nesse sentido, é muito importante a Xi Jinping fazer tudo para que a narrativa seja a de que Taiwan é uma China que pode ter sido diferente, mas é encaixável, o que não pode ser de todo é Taiwan. Todos [os países] fazem esta utilização da história. Nós então… há episódios que enaltecemos, que exaltamos, e depois quando começamos a desconstruir…”

A história não é estanque

A forma como olhamos para a história vai evoluindo, declara Raquel Vaz-Pinto. “Neste caso concreto, mais do que ser uma relação com algo muito longínquo, é o redescobrir de uma República da China fundada em 1912 por parte dos historiadores da RPC, uma República da China que já não é considerada o arqui-inimigo mas que pode ser útil e que pode ser patriota.” A autora de A Grande Muralha e o Legado de Tiananmen não tem dúvidas em afirmar que “Chang Kai Check, não há maneira suave de dizer isto, era igualmente um ditador”. Seja como for, o livro de Rana Mitter mostra que “aquilo que interessa retirar desta fase tão importante da história do mundo é a ideia de ordem. Esta República da China, para todos os efeitos, era do ponto de vista do regime político muito mais fácil de encaixar, precisamente porque não era uma democracia, do que aquilo que hoje Taiwan é de forma declarada como aliás mostram todos os índices e formas de a classificar: é como uma democracia liberal plena, não há sequer aqui aquela meia-haste de Hong Kong e Macau”.

Escolhas de Raquel Vaz-Pinto / DR

A China está a tentar ser um país do pós-II Guerra e nesse ponto “é muito interessante a forma como a liderança chinesa está a redescobrir esta fase”. Para Raquel Vaz-Pinto, há aspectos que são muito importantes para os dias de hoje, no contexto de rivalidade assumida entre os EUA e a RPC: “a questão de a China ser ou não uma grande potência revisionista ou se é mesmo um país revolucionário, que quer um outro sistema, uma outra ordem internacional. São questões em aberto”. Esta leitura enfatiza uma expressão que hoje voltamos a ouvir que é a ideia da “potência responsável”, uma dimensão à qual a RPC “associa uma parte importante desta sua forma de regressar ao poder a nível internacional”. 

Raquel Vaz-Pinto, que está a terminar um segundo livro sobre o país, reitera que “a China continua a ser uma ditadura de pedra e cal”. “Relativamente às brechas de 1989, o regime tem conseguido sustê-las. Penso que elas continuam, podem agora não se chamar Tiananmen e chamar-se pandemia ou aquilo a que fomos assistindo em Hong Kong. Podem ter outros nomes, mas continua a existir esse movimento heterogéneo de contestação quanto baste. A luta continua, mas do outro lado o regime tem sido muito hábil em permitir que haja alguma contestação, mas sobretudo em impedir que haja um líder, que haja uma articulação coordenada dos esforços de insatisfação.” Para a académica, esta “tem sido uma receita extremamente hábil, mas com imensos riscos, porque a opção da China tem sido a de diminuir a força do colectivo em detrimento do líder e isso também traz consigo outro tipo de riscos”.

Raquel Vaz-Pinto considera que falamos pouco sobre o que está a acontecer na China, “sobre os seus problemas, os seus desafios, os seus obstáculos”. “Assumimos em termos de debate que o caminho da China para superpotência só pode ser travado por questões externas, só pode ser travado pelos EUA. E, no entanto, não me parece que seja esse o caso, há imensas questões internas nesta China que são para mim o grande desafio nesse caminho para um estatuto de superpotência que ainda não tem.”, acrescenta.

Guerra na Ucrânia

A dependência chinesa face aos EUA é a grande questão em cima da mesa no que toca a eventual apoio da China à Rússia no conflito com a Ucrânia, acredita Raquel Vaz-Pinto. “Se a Rússia tivesse invadido a Ucrânia uns anos mais à frente, talvez os processos de separação em algumas áreas fundamentais já tivessem permitido à China uma maior independência em termos de componentes ou de aspectos que são muito relevantes para as suas principais áreas de actuação económica e comercial. Nesta fase específica isso não se verifica de todo.” 

A proposta da China para a resolução do conflito na Ucrânia vinca bem a “enorme preocupação sobre esta decisão dos EUA e dos seus aliados de pôr em marcha sanções económicas e financeiras”, acrescenta Vaz-Pinto. “Parece-me arriscado [que a China apoie a Rússia], em termos de custos políticos, económicos e financeiros não sei se nesta fase será útil, mas também por outro lado não me parece que uma derrota inequívoca da Rússia seja do interesse explícito da RPC. Para já, o que podemos perceber é que este alegado plano de paz favorece muito mais o agressor do que o país invadido.”

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