Entrevista. Ricardo Esteves Ribeiro (Fumaça): “O modelo actual dos órgãos de comunicação social e produção de jornalismo está morto”
Para Ricardo Esteves Ribeiro, o Ricardo do “Fumaça”, órgão de comunicação social independente e progressista [que também entrevistamos em maio de 2018], “o modelo actual dos órgãos de comunicação social e produção de jornalismo está morto.” A crença no modelo da publicidade como forma de rentabilizar órgãos de comunicação está, a seu ver, ultrapassado e teve, como consequência, transformar “jornais em órgãos produtores de conteúdos e notificações, e esse não é o objectivo”, uma vez que estes se vêem mais dependentes do número cliques efectuados. Por isso, o “Fumaça” crê que o adiantamento da publicidade pago pelo Estado às empresas de média durante a pandemia foi uma premissa errada porque, além de não ter apoiado, directamente, o jornalismo — “está-se a dar, portanto, dinheiro à TVI e a TVI pode utilizar o dinheiro para o que quiser. Se quiser utilizar no “Big Brother”, vai para o “Big Brother”, se quiser que vá para a “Casa dos Segredos”, vai para a “Casa dos Segredos” — caiu no mesmo erro de reforçar um modelo que, a seu ver, já não faz sentido. Como se resolve o problema?
Nas propostas que o Fumaça levou ao SECAM [Secretário de Estado do Audiovisual e Media], cargo actualmente extinto, estão incluídas a criação de um instituto para a comunicação social, como existiu outrora, e a inclusão dos órgãos de comunicação social sem fins lucrativos na categoria de entidades de utilidade pública. A Comunidade Cultura e Arte [CCA] teve uma uma longa conversa com o Ricardo do Fumaça sobre, exactamente, estes aspectos, mas, também, sobre a relação do jornalismo e política com as redes sociais, as rubricas de fact checking, passando pelo facto da extrema-direita ditar, muitas vezes, a actualidade, “Não posso ir atrás das coisas estúpidas que o Ventura diz e publicar todas elas.”
Rui André Soares [RAS] – Sophia de Mello Breyner disse no poema “Cantata da Paz” que “Vemos, ouvimos e lemos / não podemos ignorar”. São essas as premissas que guiaram a fundação do Fumaça e que te levou a ser jornalista?
Acho que, olhando para trás, é mais fácil, para mim, perceber o que é que me levou a ser jornalista e o que é nos levou, a nós, a criar o Fumaça, do que na própria altura. O Fumaça não cresceu como um projecto de jornalismo, mas de um podcast de conversas. Havia um grupo de pessoas amigas que achavam que uma série de pessoas, uma série de backgrounds, de ideias, não estavam a ter a devida representação por parte de órgãos de comunicação social. Havia uma série de temas que não estavam a ser abordados com a profundidade necessária em Portugal, uma série de perguntas que não estavam a ser feitas, na altura, mas que achávamos que eram necessárias.
Víamos outros projectos, principalmente outros podcasts, de órgãos de comunicação social mediáticos, diferentes, fora do país — o “Agência Pública”, do Brasil, o “Democracy Now”, o “Athens Live”, na Grécia — e, na altura, o que nós pensávamos e discutíamos — éramos, na verdade, quase todos amigos de secundário ou de pessoas que, entretanto, se tinham conhecido, viviam juntas, ou que tinham vivido juntas durante a sua vida — e aquilo que nós pensámos foi que era bom que alguém fizesse essas perguntas, em Portugal, ou que alguém abordasse esses temas com a mesma profundidade que nós víamos no “Democracy Now”. Em Portugal, ninguém estava a fazer isso.
Lembro-me, perfeitamente, de chegar a casa, na altura, e dizer isso à minha companheira de então, que era a Maria — foi, também, fundadora do “Fumaça” e trabalha connosco a full time — que era bom que alguém fizesse essas perguntas. A Maria disse, “então faz”, e decidimos, até no próprio dia, que íamos falar com outros amigos nossos e perguntar-lhes, caso quiséssemos fazer isto, se eles faziam connosco — disseram que sim. Decidimos, então, enviar um e-mail a três pessoas e, se alguma dessas três pessoas aceitasse, começaríamos a fazer esse tal podcast que, na altura, nem tinha nome. Portanto, quando me perguntas se começámos o Fumaça porque víamos, ouvíamos e não conseguíamos ignorar, hoje, olhando para trás, eu sei que sim: sim, são estes temas que são importantes e que estão a ser esquecidos por órgãos de comunicação social, sim, há estas pessoas que também deviam ser ouvidas, não porque têm uma opinião melhor do que as outras, mas porque deve ser representativo.
Claro que devemos ouvir essas pessoas e as únicas pessoas que se ouviam — e quase que pode ser transposto para hoje, 4 ou 5 anos depois —, as únicas pessoas que se ouvem, quase, e que têm lugar cativo nos programas semanais de comentário são homens, brancos, barrigudos, carecas, de classe média alta, heterossexuais. Todos eles se conhecem uns aos outros, não é? Costuma-se, até, dizer que, quando um se casa, os outros vão todos ao casamento. Conhecem-se, vão quase todos aos mesmos sítios, são das mesmas famílias, estudaram nas mesmas escolas, tiraram os mesmos cursos e, portanto, quando, na altura, começámos o Fumaça — já não sei bem que idade tinha, mas talvez 22 ou 23 anos — queríamos ouvir falar sobre racismo, sobre como os nossos manuais escolares de história nos tinham enganado na nossa escola secundária.
Queríamos falar sobre colonialismo, sobre pobreza, sobre desigualdade social. Queria falar sobre o facto de ter nascido no bairro mais branco da Amadora, de classe média-alta, ao lado da Cova da Moura, e ter vivido 18 anos numa casa que estava a dez minutos da Cova da Moura e nunca ter entrado lá. Queria falar sobre essas coisas. Quando pensava sobre esses assuntos, não conseguia ignorar. Sim, queria que se falasse sobre eles e, depois, também acabámos por falar de nós. Só consigo dizer isto hoje porque, na altura, era impossível assumir que essa era a razão. Na altura não quis ser jornalista, eu vi-me jornalista.
Ana Isabel Fernandes [AIF] – Um dos vossos motes são as entrevistas e reportagens de fundo. Seja o que for, gostam de aprofundar e ir ao nervo da questão. Acham que os novos órgãos de comunicação de raiz online acabaram por contornar a ideia de que o jornalismo para a internet tem de ser simples, conciso e pouco esmiuçado?
Não diria que todos os órgãos de comunicação social novos, alternativos, do digital, fizeram isso. Se fores olhar para a maioria dos órgãos de comunicação social — agora estou a falar só dos alternativos e independentes, (o que queiras chamar), recentes, pequenos, que não são de grandes estruturas — se olhares para todos, não têm todos essa política, nem têm todos de ter essa política editorial. Não acho que todos os órgãos de comunicação social tenham de fazer uma investigação ou que tenham de fazer long form.
A actualidade é importante, tem de existir actualidade. A actualidade é, na prática, uma base gigantesca para a nossa investigação. Se não houvesse actualidade, não conseguíamos fazer o trabalho de investigação que nós fazemos. O trabalho de jornalismo de investigação, no fundo, não substitui o trabalho de actualidade, complementa-o e, esse trabalho, tem de existir. O Fumaça faz isso, mas nem todos têm de se reger por essa lógica.
Aqui, não estou a falar, só, de Portugal. Olhamos para o panorama dos órgãos de comunicação independentes e alternativos e, o que acho que deve caracterizá-los, é o quererem desafiar as lógicas de produção de jornalismo. Tu podes desafiar as lógicas de produção de jornalismo de diversas maneiras. Podes desafiá-lo dizendo que queres fazê-lo com mais tempo, portanto, produzir menos, mas melhor. É umas das coisas que podemos fazer, um dos princípios. Também podes focar-te, apenas, em temas que outras pessoas não estão a focar. Quisemos fazer isso, de alguma maneira, mas, na verdade, não é aquilo, direi eu, que nos diferencia de outros.
Há outros projectos que também fazem isso e que nasceram, cresceram — se calhar, diria que o início do “Shifter” foi um pouco assim. Aquilo que queriam fazer era focarem-se em temas como a tecnologia, que não estavam a ser escrutinados noutros sítios. Também podes fazê-lo de outra maneira como, por exemplo, desafiar os modelos criando jornalismo que tenha um formato diferente e que dê primazia à utilização de dados, como o “Interruptor” faz. Eles desafiam, portanto, de outra maneira.
Também é possível desafiá-lo através da criação colaborativa em que, na verdade, se cria um espaço para que mais gente possa falar, para que não sejam sempre os mesmos. Acho que, quanto a mim, olhando para trás, aquilo que a CCA fez foi isso, foi dizer, “há mais gente que pode falar, não são sempre os mesmos que vão falar, e nós vamos dar um espaço, uma plataforma para que outras pessoas possam vir fazer jornalismo, produzir crónicas, produzir opinião do que quer que seja.” Ainda podes ir para outra coisa — quisemos fazer isso, não só desafiar a maneira como fazemos jornalismo, mas a maneira como nós gerimos o nosso órgão de comunicação social que, também, precisa de ser desafiado.
Queremos fazer isso tudo, mas queremos fazê-lo dando condições de trabalho, dando contratos de trabalho às pessoas, sendo contra a precariedade, não tendo falsos recibos verdes, ou falsos estágios, tendo uma política de transparência radical, tentando ser sustentável através das pessoas, sem publicidade. Acho que respondendo directamente à tua pergunta, não é, apenas, a investigação ou o tempo para se fazer coisas que é comum a estes órgãos de comunicação social mas, também, não tem de ser. Aquilo que temos vindo a fazer é desafiar um modelo que está morto. O modelo actual dos órgãos de comunicação social e produção de jornalismo está morto.
“Essa ideia que os órgãos de comunicação social não têm recursos humanos para fazer jornalismo de fundo é uma mentira, é uma falácia que eles próprios nos têm tentado vender, mas na qual eu não acredito.”
Ricardo Esteves Ribeiro
AIF − É sustentável para um órgão de comunicação como o Fumaça, que começou do nada, fazer jornalismo de investigação profundo, quando tal se torna difícil para os órgãos tradicionais pela falta de recursos humanos? As pessoas respondem bem ao jornalismo de fundo, quando a crítica e o queixume é o de que as pessoas não compram comunicação? No fundo, o que quero saber é se o bom jornalismo chega.
Acho que aquilo que nós temos vindo a demonstrar é que sim. Esta é uma das perguntas que era muito mais difícil respondê-la há três ou quatro anos, quando nós nos propusemos a fazer isso, do que agora. Há três ou quatro anos, quando dizíamos que queríamos fazer jornalismo com menos peças, mas muito melhor e com mais qualidade, em que, se calhar, vamos demorar dois anos para produzir uma investigação e ficar um ano e meio, que é o que está a acontecer neste momento, sem publicar uma grande investigação e, ainda assim, queremos ser financiados só pelas pessoas, talvez as pessoas dissessem que nós estávamos loucos porque, na verdade, nós tínhamos zero, ou quase zero de contribuições mensais.
Hoje em dia, nós temos quase 50% do nosso orçamento pago pelas pessoas. Podemos, até, falar sobre isso, temos tido bastantes dificuldades, porque há um ano e meio que não lançamos uma grande investigação e o crescimento da nossa comunidade acontece, particularmente, quando nós estamos a lançar essas investigações. O crescimento que nós tínhamos vindo a ter nos últimos dois ou três anos, tinha sido ainda maior do que nós imaginávamos. Já não é tanto, neste momento, mas acreditamos que isso vai voltar quando nós lançarmos as coisas que estamos a preparar agora.
Mas acho que o que nós temos vindo a demonstrar é que sim, é possível, dá para fazer. Ainda não chegamos lá, não estamos 100% sustentáveis mas, também, os outros órgãos de comunicação social tradicionais dizem-se com fins lucrativos e nenhum deles deu lucro. Se calhar, também não são sustentáveis. A conversa da sustentabilidade é uma conversa que nós estamos, particularmente, dispostos a ter porque, sendo nós pela transparência radical, as nossas contas estão todas abertas e, se calhar, é fácil olhar para lá e dizer, “bem, vocês não são sustentáveis.” Pois, realmente, não somos sustentáveis, agora a única razão porque não chamamos aos outros órgãos insustentáveis é porque não mostram as suas contas porque, se não, iríamos perceber que, também, não são sustentáveis.
AIF – Mas achas que a falta de aposta dos meios de comunicação nas long reads…
É uma decisão editorial.
AIF – Se calhar, o que levou a isso foi pensar que, na internet, o que resulta é só o conciso para se chamar logo à atenção.
Sim, essa é a segunda parte da minha resposta. Acho que não fazer jornalismo lento, de investigação, profundo, é uma decisão editorial, não é uma decisão financeira, contabilística. Essa ideia que os órgãos de comunicação social não têm recursos humanos para fazer jornalismo de fundo é uma mentira, é uma falácia que eles próprios nos têm tentado vender, mas na qual eu não acredito.
“Temos de fazer com que as pessoas desafiem aquilo que estão a ler, mesmo que não seja desinformação. Mesmo que seja informação feita por jornalistas, com rigor, é preciso desafiar aquilo que está lá escrito e como está lá escrito.”
Ricardo Esteves Ribeiro
AIF – Achas que sim?
Não acho que sim, tenho a certeza. As redacções de órgãos de comunicação social como o “Público” têm dezenas de jornalistas, eles não têm falta de recursos para fazerem investigações, eles escolhem é utilizar as pessoas que têm nas redacções para fazer um tipo de jornalismo e não outro, portanto, é uma decisão editorial. Já vou chegar à parte se dá, ou não, lucro sustentável, financeiramente, mas é uma decisão editorial. Os jornalistas estão lá e podem ser utilizados para fazerem um tipo de peças ou outras de estilo diferente. Não foram escolhidos para fazer investigação. Porquê? Aí tens razão, concordo contigo, porque quem manda nos órgãos de comunicação social, ou mandou nos últimos anos, achou que ia conseguir sustentar ou, eventualmente, ter lucro utilizando, exactamente, o mesmo modelo de negócio que utilizavam antes da digitalização do jornalismo, que era o modelo da publicidade.
Antes, os jornais que se faziam, semanal ou diariamente, tinham publicidade em x páginas e, depois, eram vendidos. Tinhas, portanto, um dia para fechar a tua peça, ou uma semana enquanto fechavas o jornal. Estava fechado, era publicado e, depois, compravam. Nesse jornal que as pessoas iam ler, tinha lá, eventualmente, a publicidade. Quando existiu a digitalização do jornalismo, no início do século, quem mandou nos órgãos de comunicação social teve esta triste ideia que, hoje, para mim, está completamente morta — se calhar, na altura, não se sabia e, portanto tentou-se mas, hoje em dia, parece-me, completamente, morta — que é dizer, nós vamos utilizar, exactamente, o mesmo modelo, o modelo da publicidade, mas fazendo-o diferente, porque já não vendemos tantos jornais.
Temos muita mais produção digital e, portanto, criou-se este modelo, que é um ciclo vicioso. A verdade é que é bastante fácil perceber-se que é um ciclo vicioso porque viste que a publicidade online tem a ver com o número de impressions, o número de pessoas que olham para aquela publicidade, na maior parte dos casos, ou número de vezes que uma pessoa clica — o número de cliques que uma publicidade tem — então, nós precisamos de mais e mais cliques e, se precisamos de mais cliques, precisamos de produzir mais e, se precisamos de produzir mais, os jornalistas vão produzir mais com o mesmo tempo que têm.
As horas não aumentaram, aumentou a produção jornalística, mas as horas de trabalho não aumentaram. Se calhar, aumentaram para alguns, mas não podiam aumentar exponencialmente, portanto, tiveram de produzir com menos. Se têm de produzir com menos, vão produzir com menos qualidade. Se vão produzir com menos qualidade, vão ter menos espaço para edição. É impossível que, se produzias uma peça, num dia, e passaste a produzir oito peças num só mesmo dia, consigas ter os mesmos passos de edição. Há muitos casos, até, em que não é o teu editor a editar. Portanto, se tu não consegues ter o teu editor a editar, se não consegues fazer fact checking, se não tens tempo para encontrar novas pessoas — que acho que o problema de ouvirmos sempre as mesmas pessoas é que nós não vamos ter tempo de encontrar – estou a dizer nós no geral – não vamos ter tempo de encontrar novas pessoas.
Se agora te perguntar, “diz-me, em dez segundos, quem são as pessoas que falam de economia em Portugal.” Tu vais dizer aquelas que falam todas as semanas na televisão, é normal. Se te disser, tens uma semana para encontrar a pessoa certa para falar de economia, vais descobrir muitas mais alternativas. Este ciclo vicioso foi o da produção massiva que transformou os órgãos de comunicação social em órgãos produtores de conteúdos e, aqui, estou a utilizar a palavra conteúdos com toda a carga negativa que a palavra conteúdos tem no jornalismo, porque os jornalistas usam a palavra “peças”, “reportagens”, “notícias”, e não “conteúdos”, que é mais usado em marketing.
Nós transformamos jornais em órgãos produtores de conteúdos e notificações, e esse não é o objectivo. Agora, porque é que isso foi feito? Mais uma vez porque nós — quem manda, quem decidiu, quem mandou nos órgãos de comunicação social nos últimos tempos — decidiu que era preciso continuar com este modelo que, na altura, até podia ser razoável achar isso, mas hoje já não é. Passaram 20 anos. Achou-se, depois, que tinha de se fazer lucro e acho que o objectivo do jornalismo não é, nem deve ser, o lucro. Não é esse o objectivo do jornalismo. O acesso à informação é um bem essencial, é um bem público, portanto, não pode ter como objectivo o lucro.
RAS – Íamos fazer essa pergunta, mas já respondeste. Era sobre a questão de serem financiados, a 100 por cento, pelas pessoas. No momento, isso constitui 50 por cento do vosso financiamento, faltam, portanto, outros 50 por cento. É isso? [O Fumaça tem a intenção de ser o primeiro projecto de jornalismo em Portugal, 100 por cento financiado pelas pessoas].
Temos a previsão de 50 por cento, um bocadinho menos, do nosso orçamento, mas temos uma previsão de quando poderemos chegar lá. Achamos que conseguimos — vamos ver se vai ser possível ou não, talvez agora, na verdade, as previsões não estejam a bater certo como nós queríamos, mas elas estão públicas — chegar aos 100 por cento de sustentabilidade, até ao final de 2023. Quando digo 100 por cento de sustentabilidade, é conseguirmos garantir que a nossa redacção funcione com todos os nossos gastos pagos a partir de contribuições mensais, recorrentes. Portanto, aqueles quase 50 por cento que nós temos, têm a ver com contribuições mensais recorrentes. Não estou a contar bolsas ganhas ou, até, imagina, se fores ao nosso site e quiseres dar 1000 euros, nós não contámos isso. Contamos coisas que vêm todos os meses. O nosso objectivo é chegar à sustentabilidade no final de 2023, vamos ver se conseguimos.
RAS − Além da bolsa da Open Society Foundation, anunciaram, também, que receberam o apoio da fundação Rosa Luxemburgo para uma investigação sobre saúde mental. Têm pessoas que se dedicam a encontrar este tipo de apoios? Como funciona esta dinâmica na vossa redacção?
É uma coisa que, na verdade, tem mudado. Temos aprendido a fazer isto ao longo do tempo. Em 2018, quando ganhámos a primeira bolsa que nos permitiu quatro pessoas a começarem a trabalhar — na altura eram duas pessoas part time e duas a full time — tivemos, pela primeira vez, a possibilidade de termos uma redacção profissional, antes, era um projecto completamente voluntário. A partir daí, começamos a pensar como é que um dia vamos chegar à sustentabilidade e decidimos que iríamos tentar fazê-lo através de contribuições mensais recorrentes, tendo todo o nosso jornalismo aberto a toda a gente, criando uma comunidade que não só nos apoiasse financeiramente, mas que, também, fizesse parte do projecto.
Sabemos que isso é uma coisa que demora tempo, não é uma coisa que se chegue lá de um dia para o outro nem de um ano para o outro. Se calhar, nem em cinco anos — até lá, precisávamos de conseguir ter condições laborais, pagar salários — então, começámos a perceber que tínhamos de ter uma estratégia activa de procura destas bolsas. Já na altura, quem fazia isso era eu e, aí, estávamos, basicamente, a aprender. Candidatávamo-nos a tudo: a bolsas, bolsas específicas para reportagens, bolsas mais estruturais, em Portugal e fora de Portugal.
RAS- Fazem, então, esse trabalho e existem muitos nãos.
Começámos em 2018, 2019, a fazer isso. Posso estar a exagerar, não fiz essas contas mesmo, mas, durante um ano, um ano e meio — até porque, na altura, contratámos uma pessoa para ajudar em marketing e fundraising —, candidatámo-nos a mais de 20, 30 fundos e tivemos 20, 30 nãos. Foi muito difícil porque estávamos, activamente, à procura dessas coisas. Fazíamos candidaturas, escrevíamos documentos gigantes, complexos, para tentar ter coisas.
Aliás, começámo-nos a aperceber de uma coisa terrível, percebemos que começávamos a fazer decisões editorais a longo prazo, sobre aquilo que estávamos a investigar, tendo em conta as bolsas a que nos queríamos candidatar, ou as bolsas que ganhávamos. Hoje, consigo perceber que era um erro, mas, na altura, era quase o nosso desespero a falar, queríamos arranjar dinheiro e achámos que era por aí que se ia. Começámos a perceber que não só isso era um erro a nível editorial mas que, por acaso, até deu um bom resultado, um só, acho eu, que foi o “Exército de Precários”, sobre a segurança privada. O “Exército de Precários” começou porque começámos a pensar que projectos é que queríamos candidatar à bolsa da Gulbenkian — lembramo-nos deste e candidatamo-nos.
Mas, ainda assim, neste caso, tratava-se de uma bolsa aberta onde nós podíamos propor qualquer coisa, não estávamos, na verdade, condicionados, a não ser pelo facto de que tínhamos de decidir, naquela altura, o que é que íamos fazer. Depois, como ganhámos, tivemos que nos manter. Mas havia outros casos ainda piores, que acho lamentáveis, na verdade, que isso aconteça — fundações que abrem projectos específicos para financiarem jornalismo, apenas para coisa específica. Dizem assim, “tu candidatas-te, mas só para fazer uma peça sobre uma espécie qualquer que está em vias de extinção na Amazónia”, e tu, como precisas de dinheiro, dizes, “está bem, vou lá tentar ver uma maneira de fazer qualquer coisa que pareça que estamos a trabalhar aquele tema e, ainda assim, que dê para fazer qualquer coisa que nós queremos.”
Fizemos isso durante algum tempo, durante um ano, mas perdemos todos, todos, não ganhámos um único, a não ser esse da Gulbenkian. Decidimos, no final desse ano, que não era uma boa decisão, não era uma boa estratégia, então, a partir desse momento, depois a pessoa que estava a fazer fundraising e marketing acabou por sair, para ir fazer um projecto dele na República Checa com a família — agora tem um restaurante lá, era o sonho dele ter um restaurante libanês lá — e passei eu a fazer, outra vez, fundraising. Depois, juntou-se o Nuno [Viegas], que saiu do Observador e veio trabalhar connosco, e os dois estamos a fazer isto. Neste momento, eu e o Nuno somos as duas pessoas que, a part time, numa parte do nosso mês, vamos fazendo isso.
Mas, pá, percebemos uma coisa, nós não nos candidatamos a fundos que sejam específicos para um tema ou reportagem, a não ser que nós já estejamos a fazer esse tema ou essa reportagem — aí não vamos mudar nada, é aquilo que é, a que nos candidatámos — mas focamo-nos, principalmente, em fundos estruturais, bolsas que nos dão dinheiro para nós pagarmos salários, contabilidade, a renda do escritório, essas coisas, que é o caso da Open Society Foundation. Na verdade, não é exactamente, mas acho que é o caso da Fundação Rosa Luxemburgo. Apesar de eles darem dinheiro para fazermos uma peça específica, na verdade, o que aconteceu desde sempre foi que eles disseram, “queremos que façam isso, achamos que o vosso trabalho é importante, queremos que vocês façam.” Nós dissemos, “estamos a fazer estas peças, o que é que vocês acham?” Eles, até hoje, têm dito, sempre, sim. Faz sentido e já nos deram duas, três bolsas, já não me lembro.
Sim, temos pessoas que fazem esse trabalho. Neste momento, sou eu e o Nuno. Felizmente, desde a última bolsa que ganhámos da Open Society do ano passado, deu-nos a possibilidade de mantermos a nossa relação com os tais 50% que vêm da comunidade, durante dois anos, mais ou menos. Já estamos muito menos stressados com isso, vamos ver no futuro.
RAS − Já há muito que a sociedade em geral tem demonstrado um descontentamento ou descrédito para com as instituições. Por inerência, sendo este pensamento o correcto ou errado, tem havido, igualmente, essa tentativa de incluir toda a comunicação social nesse lote, daí o aparecimento de expressões como “jornalixo” e outras que tais. Como olham para esta questão? No vosso caso, têm sentido isso?
No nosso caso, sinto que estamos no reverso da medalha, que é uma medalha má, uma medalha de merda, mas estamos no reverso dessa medalha. É estranho dizer que estamos a utilizar, como oportunidade, a desconfiança do jornalismo para crescer, mas a verdade é que para as pessoas que se juntam à nossa comunidade, enviamos sempre um e-mail de boas vindas onde, entre outras coisas, perguntamos às pessoas porque é que decidiram contribuir, juntarem-se à comunidade. Muitas das vezes, se calhar, a resposta mais ouvida é, “vejo no ‘Fumaça’ algo fresco, novo, diferente daquilo que era um jornalismo com o qual já não me identificava e não confiava”.
Na desconfiança que existe no jornalismo — ela existe e já vou dizer como olhamos para ela, mas existe — a verdade é que aquilo que sentimos é que as pessoas olham para o nosso trabalho dizendo, “bem, vocês são diferentes destes e, portanto, bons.” Acredito que muitos órgãos de comunicação social novos, alternativos, estejam a sentir o mesmo que nós. Não acho que seja uma coisa particularmente boa, mas é a maneira como temos lidado com isso. Agora, como nós vemos a desconfiança, como é que eu, pessoalmente, vejo essa desconfiança, ela tem um sentido. Este ciclo que eu estive a descrever, há pouco, da perpetuação massiva de conteúdos, leva a isso. É óbvio que, se produzimos mais, com menos tempo, vamos produzir cada vez pior, portanto, é normal que, se for cada vez pior, as pessoas desconfiem. Não vou muito, na verdade, naquelas teorias conspirativas em relação a notícias compradas por empresas e políticos — não acho que seja isso, na verdade.
Acho que é uma coisa muito mais sistémica, que é, “jornalistas não têm tempo para fazer o seu trabalho bem, fazes mal”. É tão simples quanto isto. Falas sempre com as mesmas pessoas, não tens tempo para investigar, para fazer fact checking, não tens edição, não tens várias cabeças e olhos a olharem para o texto, para garantirem que ele vai estar bem, portanto, vai haver mais erros, as pessoas não confiam mais.
RAS − Depois cometem-se erros, que, para quem lê, não esperava que esses erros ocorressem no jornalismo.
Exactamente, tu confias que o processo de edição de um jornalista passa por todas as etapas — porque, aliás, esse é que é o processo de edição jornalístico, é um processo que passa por várias mãos — eu escrevo o texto, o Rui vai ler, editar, sugerir sugestões, a Ana vai fazer uma revisão para ver se há alguma gralha e, depois, alguém vai fazer fact checking para ver se tudo está escrito. Agora, estes passos que acabei de descrever em cinco segundos demoram, numa redacção, semanas. Se tu tens de publicar numa hora, não vais fazer nenhum dos passos, nenhum. Nem sequer vais escrever, na verdade, se calhar vais copiar de alguma coisa que foi escrita em inglês e traduzir para português. A desconfiança, portanto, acho que vem daí, vem de uma série de decisões que foram feitas.
AIF − Mas achas que essa desconfiança pode estar a ser manipulada por trás? No sentido em que vivemos um período social complicado, em que parece que as esferas públicas estão a entrar em descrédito.
Acho que vivemos aquilo que o Daniel Oliveira descreve como uma crise de meio, uma crise de mediação. Todos os mecanismos e organismos que tinham o papel de mediar estão, eles, em crise — a justiça e os órgãos da democracia representativa. Sim, eles estão em crise, se calhar podemos ficar aqui a discutir a crise da social-democracia ou da dita social-democracia, da esquerda e da democracia representativa, por aí em diante. Sim, podemos discutir todas essas coisas, agora, não sei se diria que é manipulado, acho que é uma crise, uma desconfiança, na autoridade. Por um lado, até pode ser bom, é verdade, mas, por outro, tem essas consequências.
Não sei se é manipulado, é uma consequência, um descrédito na autoridade, porque a autoridade não soube responder a todas as crises. Se calhar, é a primeira vez, em cem anos, que as gerações actuais têm menor privilégio do que as gerações anteriores. Tenho menor privilégio do que os meus pais e isso acontece com a maior parte das pessoas que conheço da minha idade. É normal que o descrédito em relação à autoridade, à democracia representativa e à justiça esteja presente. Não diria, no entanto, que é manipulado, é só uma consequência daquilo que tem acontecido e das falhas que essa democracia representativa tem. Podíamos pensar em como é que se resolve isso, mas isso é muito maior do que o jornalismo.
AIF – A minha questão é que o jornalismo também parece estar dentro desse lote de descrédito.
Sem dúvida, sem dúvida!
AIF – De que forma olham para o centralismo da comunicação e como tentam contornar o problema? Trata-se de um problema que vos interessa?
Se o problema nos interessa, interessa-nos muito, sim. Sinto que, às vezes, em algumas discussões que tenho tido com algumas pessoas que estão fora do jornalismo — que não são como nós, que estão a trabalhar em órgãos de comunicação social, mas que estão fora —, creio que há esta ideia, que é um ideia errada, que os jornalistas são todos de Lisboa e que, portanto, o problema está nos jornalistas, individualmente, que não são de fora. Acho que é uma ideia errada porque, na verdade, há imensos jornalistas, de imensas partes do país, que estão em redacções, essas sim, em Lisboa, e esse é o maior problema. Ou seja, não é o facto de os jornalistas serem todos de Lisboa mas, sim, trabalharem, quase todos, temas que são de Lisboa.
Como é que nós resolvemos? Em primeiro lugar, a redacção em si — não sei se foi uma escolha que nós fizemos, activamente, em relação a isso — é bastante diversa, nesse aspecto, geograficamente. Temos duas pessoas que são de Lisboa, mas, depois, todas as pessoas que são jornalistas são de fora — uma pessoa de Felgueiras, uma pessoa de São Martinho do Campo, dos Açores — mas isso resolve um problema que acho que não existe, assim, tanto, porque há imensos jornalistas que são de fora.
Há, no entanto, outro problema: apesar de eles serem de fora, quase sempre fazem temas que são de Lisboa e que, muitos deles, só interessam a pessoas que são de Lisboa. É um problema maior na actualidade do que é na investigação, que há pouca, mas acho que é um problema menor no jornalismo que é feito com tempo, do que o é na actualidade porque, quase sempre, nos órgãos de comunicação social tradicionais, a actualidade significa ir atrás dos representantes políticos, não quer dizer mais do que isso. Se a actualidade quer dizer ir atrás dos representantes políticos e servir, em muitos casos, pé de microfone dos líderes partidários dos deputados, dos ministros, dos secretários de Estado e das pessoas que estão à frente dos vários organismos do Estado, isso significa, então, que quase todas essas coisas são feitas em Lisboa, que todas essas coisas são feitas tendo em conta essa óptica.
“O fact checking é um passo do jornalismo, o fact checking tem de estar incluído no jornalismo. O facto de alguém fazer fact checking a seguir, não invalida que eu não tenha de fazer fact checking porque, senão, isso não é método jornalístico — não é a metodologia e a prática deontológica que define aquilo que é o trabalho jornalístico.”
Ricardo Esteves Ribeiro
AIF – Mas como é que olham para o jornalismo local, em específico?
Uma das razões porque acho que, no jornalismo de investigação, num jornalismo mais lento, não temos tanto, pelo menos eu não tenho sentido tanto essa centralidade ou centralização, é só porque, quando tens mais tempo, vais encontrar mais pessoas e, quando vais encontrar mais pessoas, vais perceber que há mais pessoas do que Lisboa e há mais do que a capital, portanto, não é que elas não existam, é só porque, se tu tens menos tempo, vais encontrar as pessoas que estão mais perto de ti e as pessoas que são sempre faladas, essas são as que estão na capital.
Acho que é, mais uma vez, uma consequência do ciclo que falamos há pouco, fazer cada vez mais, com menos tempo. Por exemplo, no caso do “Exército de Precários” foi a última grande série que nós fizemos e que lançamos — uma grande parte das pessoas que ouvimos e que eram vigilantes trabalhavam em imensos sítios, fora de Lisboa, muitos deles no Porto, mas até mais a norte do Porto. Numa série que fizemos, o “Dá-lhe Gás”, foi feita no centro de Portugal, sobre a produção de Gás Natural. Quando consegues ter tempo, consegues resolver esses problemas da centralização.
Mas como olhamos para o jornalismo local e regional? Na verdade, começamo-nos a aperceber, também — eu falo como lisboeta da redacção, portanto, não sabia, se calhar, tão bem como colegas meus que já tinham um contacto muito maior com esse tipo de jornalismo, agora vivo na Azambuja e tenho um contacto muito melhor do que tinha antes — mas o que começámos a aperceber, quando fizemos essa investigação, é que muitos dos temas que trabalhávamos, na verdade, estavam a ser trabalhados, há anos, por jornalistas regionais e locais, que trabalhavam em órgãos de comunicação social locais, a fazer coisas que eram para as redacções grandes, tradicionais, que estavam em Lisboa, provavelmente insignificantes.
Como estava a dizer, mudei-me há um ano para Azambuja. Quando vais ver do que se fala no jornalismo local e regional daquela zona, e estou a falar do concelho, é sobre as mega centrais fotovoltaicas, sobre o aterro do lixo que existe lá, sobre a falta de médicos de família e falta de médicos, em geral, no centro de saúde, bem como o facto de metade, mais ou menos, das pessoas não terem médico de família. Esses casos, aí, que estão a ser tratados e que não têm expressão nenhuma nos órgãos de comunicação sociais nacionais, estão a ser tratados há muito tempo ali. Se tu disseres assim, “agora o que vou explorar são as grandes centrais de produção verde limpa e perceber, exactamente, se são verde limpa. Na verdade, o que tu vais fazer é sair de Lisboa, e vais perceber que quem está atrás desses temas são, exactamente, esses jornalistas.
AIF – Então, aí, pode ter um papel importante na aproximação com as pessoas.
Totalmente, absolutamente. Acho, até — e aqui é uma opinião pessoal, absolutamente, cingida à minha ligação à Azambuja, que é recente — que a desconfiança de que falávamos há bocado é menor em relação ao jornalismo local e regional, do que é em relação ao jornalismo produzido na capital, nas grandes redacções. Têm, obviamente, muitos menos meios, não é? Aí sim, há uma falta de meios gigantesca para fazer isso e, também, há outros problemas que existem, obviamente, como o caciquismo. Estás num sítio onde existem dois ou três jornalistas, numa redacção muito pequena, a falar sempre com os mesmos representantes, obviamente, há um conflito.
AIF – Tinha preparado uma pergunta nesse sentido. Se notam que o caciquismo existe e se o jornalismo local acaba por estar refém das relações com as autarquias.
Obviamente, aí parece-me um facto. Se estás numa terra onde os teus representantes locais se contam pelos dedos das mãos e dos pés, se vais falar com eles todas as semanas, todos os meses, não é como eu que estou a produzir uma peça sobre produção de gás natural no centro do país, não vivo lá, não costumo trabalhar aquele tema, apareço, faço uma entrevista, e se às pessoas não lhes agradar a reportagem que fiz, bem, está pronta e vou para outro sítio qualquer falar com outras pessoas — se não lhes agradar, passo para outra. Ali não, se não lhes agrada, perdem a única fonte que têm. Sim, há esse problema, agora, não sei absolutamente nada, não tenho experiência como resolvê-lo, nunca fiz esse trabalho.
AIF – Os próprios políticos já não estão tão dependentes de fazerem passar a sua mensagem pela imprensa. Podem as redes sociais e a internet serem efectivamente, o quinto poder, sendo a comunicação social o quarto?
Não, não podem ser. Acho que é impossível esperar que as redes sociais, seja lá isso o que for, ou o que será no futuro, possam fazer o papel de escrutínio que órgãos que estão limitados a um código deontológico e método jornalístico fazem.
RAS – Mas a questão, aqui, não é uma coisa substituir a outra. A questão é, sendo os órgãos de comunicação sociais o quarto — tanto poder ou contra poder — concordas com a afirmação de que as redes sociais podem ser o quinto, não substituindo, mas indo mais longe? Vou-te dar um exemplo prático: o Trump foi eleito graças, ou muito graças, às redes sociais, é esse o ponto. É pelo facto dos políticos já não precisarem de aparecer, a internet chega.
Se podem ser utilizadas como marketing, como ferramentas de marketing, claro que sim, podem ser, mas tantas outras coisas podem ser utilizadas como ferramentas de marketing. Mas arriscaria dizer que o Trump não foi eleito por causa das redes sociais, o Trump foi eleito por causa das falhas que a democracia representativa teve nos Estados Unidos ao, por exemplo, vender esta ideia do american dream, que, se todos nós nos esforçássemos muito, íamos chegar lá, que a meritocracia iria resolver todos os problemas de todas pessoas que se esforçassem, que todas as pessoas, na verdade, hoje, estão piores do que há vinte ou quarenta anos. Foi isso que elegeu o Trump, não foram as redes sociais.
RAS – Mas no caso do Trump, houve aquele estudo dos dados da “Cambridge Analytica”. Os dados foram usados para afinar o discurso dele.
É uma ferramenta de Marketing. Mas não percebo a comparação com o jornalismo.
RAS – A questão é a seguinte, quando assinas a coluna de um jornal, dá-te, enquanto figura pública, estatuto mediático. Mas, actualmente, com as redes sociais, já não precisas ou não estás tão dependente dos jornais para o mediatismo.
Mas não lhe chamaria um quinto poder. Percebo o que estás a dizer e percebo que têm uma influência, cada vez maior, na política e na intervenção — e aqui, política, não estou a falar, só, de política representativa, mas na sociedade — sim, têm, talvez terão, sempre, e de maneiras diferentes, com formatos diferentes. Acho que isso não enfraquece o jornalismo, no entanto. A única coisa que faz, é que o jornalismo também usa as redes sociais como o Trump usa. No Fumaça temos, também, uma estratégia para usarmos as redes sociais, como o Trump faz, com menos dinheiro [risos].
RAS – Sentes que as redes sociais vieram fragilizar o papel dos jornalistas? Achas que a forma como os jornalistas, por vezes, actuam, ou estão nas redes sociais, pode entrar em conflito com o código deontológico e, por sua vez, fragilizar a imprensa?
Acho que as redes sociais não vieram fragilizar o jornalismo, acho que os órgãos de comunicação — e aqui ia dizer os próprios jornalistas, mas acho que é injusto dizer que foram os jornalistas, individualmente, foi a tal estratégia de que estivemos a falar há pouco — mas acho que foram os próprios órgãos de comunicação, ao produzirem coisas que se assemelham àquilo que outras pessoas que não são jornalistas produzem, fazendo coisas mais simplistas, rápidas e sem conteúdo, sem aprofundamento que, na verdade, aproximaram os conteúdos dos jornais aos conteúdos que qualquer outra pessoa que não utilize o método jornalístico produz. Mais uma vez, se tens menos tempo para produzir jornalismo, tens menos tempo para fazer o método jornalístico e, portanto, estamos a assemelhar aquilo que estamos a produzir àquilo que qualquer outra pessoa produz, que não use esse método.
Não acho, e quero fugir a essa ideia, que jornalistas são os que quem têm carteira, não é isso que estou a dizer. O que estou a dizer é que são jornalistas as pessoas que fazem jornalismo. Portanto, se estou num órgão de comunicação social, tenho uma carteira muito bonita e produzo um texto que não tem edição, fact checking, investigação, então não é jornalismo. É igual àquilo que qualquer outra pessoa pode produzir nas redes sociais. Quando nós estamos, continuamente, a apostar e a aproximar essas duas coisas, aquilo que acontece é que é igual. Acho que uma das maneiras do jornalismo poder resolver e distanciar-se do problema das fake news ou da desinformação, é produzir coisas com jornalismo. Fazer coisas que tornem mais claro o que é jornalismo e o que não é. Podes publicar aquilo que tu quiseres, não sendo jornalismo, e é válido à mesma, só tem de ficar claro que não é jornalismo.
Não acho que tenham sido as redes sociais a causar isso, agora, quanto à segunda pergunta. Tenho sempre alguma dificuldade em analisar o comportamento individual dos jornalistas, em redes sociais, porque já disse muita merda em redes sociais — não tens noção da quantidade de merda que já disse no Twitter. Nem preciso de dizer que são coisas que disse há dois anos e não concordo, são coisas que disse ontem e que hoje não concordo.
Mas aquilo é a minha rede pessoal, do Twitter. No Twitter, apresento-me, digo que sou jornalista, por uma questão de transparência, mas quando estou no Twitter não estou a fazer jornalismo. É muito claro. Acho eu, espero eu que seja claro. Na verdade, muitas vezes estou lá para me divertir, ponto. Agora, se, para as pessoas, isso cria um sentimento de desconfiança — estás aqui e dizes essas coisas —, mas se esse fosse o problema do jornalismo, estávamos nós muito bem. Esse não é o problema do jornalismo, eu acho.
Há outra pergunta que, talvez, esteja subjacente a essa, que é a acção, a estratégia, a táctica ou a utilização das redes sociais por parte dos órgãos de comunicação social. Acho que isso, talvez, seja um problema maior e é um problema que não tem só a ver com a utilização de redes sociais, tem muito a ver com a rapidez e o querermos fazer coisas, publicarmos para as redes. Se, há pouco, falámos do erro que é colocar o lucro, a saúde financeira ou as receitas à frente da produção das decisões editoriais, há, também, uma crítica clara a ser feita — usar as redes sociais à frente das decisões editoriais.
Trata-se do seguinte, já não estou a produzir jornalismo e a distribui-lo nas redes sociais, mas a fazer jornalismo para distribui-lo nas redes sociais. Parece-me que isso é um problema óbvio, não é? As redes sociais avançam a um ritmo completamente diferente daquele que é a produção jornalística. Nós, às vezes, fazemos isso.
Imagina aquelas coisas do tempo das eleições. No tempo de eleições, é preciso fazer coisas rápidas que vão ter mais retweets se fores o primeiro a dizer quem foi que ganhou as eleições. Nós também fazemos isso. Pões o tweet logo — PS, PSD, e não sei que mais — só faltam as percentagens. Até metes o símbolo das percentagens para ires só ao site da CNE [Comissão Nacional de eleições] para publicar e seres o primeiro. Ficas, obviamente, mais perto de errar, mais perto de dizeres coisas que não devias dizer. Aí parece-me que sim, que há uma crítica que pode ser feita. Agora, em relação aos jornalistas, individualmente, se são mais ou menos queridos nas redes sociais, se estão acessos e a criar conflito, e tal, isso aí não sei. Acho que não é um problema do jornalismo, é, mesmo, um problema das redes sociais no geral.
RAS – No caso de Portugal, por exemplo, o Miguel Esteves Cardoso referiu numa entrevista nos anos 1990 que, dado à quantidade mínima de leitores de jornais em Portugal, era arrogante pensar-se, sequer, na sua importância ou que esta poderia, de facto, fazer a diferença. Aos olhos de hoje, concordam com esta afirmação?
Não, não posso concordar.
AIF – Explica melhor [risos].
Claro que têm uma importância gigantesca. Não vai mudar o mundo, é verdade. Eu não acho que vou mudar o mundo. Na verdade, faço jornalismo, porque gosto, mesmo, de contar histórias e gosto de fazê-las bem — dá-me prazer, também. Não gosto daquela ideia, “ah, sou jornalista porque temos uma missão maior.” Não. Claro que também gosto da ideia de trazer para a discussão temas que acho que são importantes e que podem trazer uma mudança para o mundo, mas a principal razão pela qual eu sou jornalista é porque gosto, mesmo, de ser jornalista. Mas tem importância, claro que tem, é inegável que tem uma importância na definição de política pública, no questionamento, no desafio, agora, se calhar não tem tanta importância quanto poderia ter por todas as razões que estivemos a falar aqui e que vocês elencaram bem.
Poderia ter mais se não houvesse uma desconfiança tal, se tivesse sido feito um bom trabalho, se tivesse existido uma ligação maior com o público, tantas outras coisas que poderiam ser feitas e que poderiam tornar esse impacto maior. Por isso é que, se calhar, em muitos casos, o jornalismo local e regional tem um impacto muito maior do que os outros porque, sim, quando o jornalista do jornal “Valor Local”, em Azambuja, vai falar com o presidente da Câmara e vai entrevistá-lo sobre o aterro ou os painéis fotovoltaicos, aquilo, realmente, faz uma diferença na vida das pessoas e nas decisões políticas que aquele governo local faz. Há uma ligação maior com as pessoas e, essa ligação maior, faz falta. Tu, hoje, não pensas, “vi esta reportagem no ‘Público’, vou mandar um e-mail ao jornalista a dizer se gostei, não gostei ou a agradecer a peça ou dizer que foi um bom trabalho”. Não fazem isso porque, do outro lado, não está — e aqui é num sentido mais hiperbólico — mas não está o jornalista, está o “Público” que fez uma peça e amanhã fará outra.
No Fumaça, também queremos criar isso. Acreditamos que a audiência, quem vê e quem ouve jornalismo, pode fazer jornalismo. Não são eles que vão escrever as peças, não são eles que vão fazer fact checking, mas eles podem apontar caminhos, sugerir perguntas, sugerir com quem falar, quem entrevistar. Acho que falta essa ligação. Mas esta é só uma das vertentes que poderia ser melhorada para que existisse mais impacto. Não concordo que não tenha impacto e que não seja relevante, isso não é. Nem o Miguel Esteves Cardoso concorda. Acho que estava só a mandar aquela laracha para dar título de entrevista.
AIF – Mas no caso de Portugal como achas que isso funciona? Achas que os opinion makers dependem, ainda, do meio televisivo para um maior mediatismo?
Acho que a televisão, parece-me a mim, por exemplo, que ainda tem um impacto brutal. Talvez tenha menos impacto do que antes, é relativo, mas tem um impacto brutal. Não será, com certeza, a bolha do Twitter que faz a opinião pessoal, talvez faça a opinião da bolha do Twitter. Não tenho, realmente, experiência em televisão, nunca fiz televisão — fui falar à televisão umas duas ou três vezes, não tenho grande experiência. Mas, também, sei que quando uma coisa qualquer que nós fazemos é falada por uma opinion maker, num desses programas semanais de comentário, temos mais pessoas no nosso site do que alguma vez tivemos, antes. Portanto, tem um impacto real.
RAS – Foi o que aconteceu com a entrevista ao José Sócrates.
Foi o que aconteceu, por exemplo, com a entrevista do José Sócrates. Foi o que aconteceu, na altura, com o Daniel Oliveira — acho que foi com o “Exército de Precários” — que ele falou de nós no comentário semanal do “Eixo do Mal”, ou assim. No “Exército de Precários”, a SIC fez uma reportagem baseada na nossa investigação. O Bruno e o Pedro foram falar ao “Sociedade Civil”, na RTP2, e tivemos um enchente de contribuições nesse dia. Acho que ainda tem um impacto, talvez relativamente menor, mas ainda tem bastante impacto. Mas não sei se os opinion makers precisam disso para serem opinion makers. Na verdade, eu queria que os opinion makers deixassem de ser opinion makers. Queria que se deixasse de ir à procura de uma pessoa para vir dar opinião sobre tudo. É o oposto do que os órgãos de comunicação social deviam fazer. Agora, eu sei que os mais conhecidos serão os que vão à televisão. Acredito que, assim, seja porque a televisão terá um impacto maior do que todos os outros.
RAS – Aliás, os estudos ainda referem que a televisão é o meio que mais faz decidir o sentido de voto.
E, na verdade, se tu olhares — sei que também usas Twitter — acho que, se calhar, quem lá está, vai todos os dias e vê as tricas entre pessoas, está a par do que acontece. Mas às vezes entras no Twitter e pensas, “eu vi cá ontem, agora cheguei e já não percebo nada do que estão a falar. O que é que eu perdi?”
RAS – Já não sabes o assunto do dia, não é?
Mas quantas pessoas saberão? Às vezes, pensa, eu não sei, mas quantas é que sabem? Duzentas?
RAS – Acho que tu não vives esse dia-a-dia, vais lá de vez em quando. Mas quando se vai lá todos os dias, o próprio algoritmo o que para ti vai ser o assunto do dia.
Mas hão-de ser o quê? Mil pessoas, duas mil ou cinco mil?
RAS – Mas o Twitter é importante.
Claro, estou só a dizer que, muitas vezes, temos esta ideia de que agora, por exemplo, toda a gente está a falar da Cristina Rodrigues porque saiu do PAN para, depois, ir para o CHEGA. Não, não estão.
RAS – O problema é que os órgãos de comunicação social pegam nisso.
É verdade, é verdade.
RAS – E depois esses assuntos do dia tornam-se mainstream.
Do género, “a Fernanda Câncio diz tal, no Twitter”.
AIF – Como vocês olham para as rubricas do “Polígrafo” e do fact checking? Isso é suficiente para fazer face às fake news?
Acho que a ideia de se criarem órgãos de comunicação social, que têm o objectivo de fazerem fact checking a outros órgãos de comunicação social, ou de outras coisas que forma publicadas, parece-me uma ideia nobre, na verdade. Sim, há uma série de desinformação a ser criada, fake news, e nós vamos criar isto para vir resolver o problema. Mas, na verdade, tenho sentido que tem consequências ainda mais nefastas, em alguns casos. Em primeiro lugar, acho que contribui para agigantar e viralizar coisas que são mentira e que, até, muitas delas, são produzidas para serem mentira. Quando pegas num post que ninguém viu no Facebook — estou a exagerar —mas fazes daquilo uma cena qualquer e vais à SIC, no “Polígrafo”, dizer, “está a ver aqui esta montagem escrita em Comic Sans e feita no paint? É mentira.” Sim, claro que é mentira, Está feita em Comic Sans e e foi feita no paint. Portanto, estás a colocar isto aqui e muitas vezes agiganta, ainda mais, a coisa.
RAS – Mas nós sabemos o que é Comic Sans e brincamos com isso. Mas o público-alvo da SIC, ou do Jornal da Noite, não somos nós.
Não queria terminar aí, não são só problemas e não é o único problema. Em alguns dos casos, esse é um dos problemas e estou a dar uma imagem do que poderia ser um problema — acho que, em alguns dos casos, isso acontece. Noutras coisas que eu percebo — e aqui já estou a falar do “Polígrafo”, não conheço tanto se isso acontece em outros projectos —, mas uma das coisas que acontece no “Polígrafo” é que são escolhas editoriais estranhas. Não estou a dizer que é tudo, mas há uma parte que, para mim, é estranha, quando se começa a perceber que se está a fazer fact checking de coisas que não são factos. Há coisas que não são factos, há coisas que são percepções, opiniões, até.
Tudo bem, o jornalista está a dar opinião e não está claro que é opinião, tudo bem — mas não são factos. Se não são factos, não há fact checking. Acho que esse é um problema que, parece-me, no “Polígrafo”, acontece mais vezes do que deveria acontecer. Uma outra coisa é, às vezes, trazer para a discussão política, social, em relação ao jornalismo, uma ideia que acho que está um bocado impregnada — que é a ideia do fact checking ser uma coisa à parte do jornalismo. Algo do género, és jornalista, fazes jornalismo e, agora, há umas pessoas que vão fazer fact checking ao teu jornalismo. Isso contribui para uma ideia que está, completamente, errada.
O fact checking é um passo do jornalismo, o fact checking tem de estar incluído no jornalismo. O facto de alguém fazer fact checking a seguir, não invalida que eu não tenha de fazer fact checking porque, senão, isso não é método jornalístico — não é a metodologia e a prática deontológica que define aquilo que é o trabalho jornalístico. Acho que isso contribui para esta ideia — e não sei se é uma ideia que é partilhada por jornalistas, mas vejo isso mais partilhado por pessoas que não são jornalistas e, é claro, validamente não estudaram esse assunto, não sabem —mas acho que isso, depois, tem, como consequências, várias coisas. Uma delas é que, quando se diz que o jornalismo precisa de tempo, dinheiro e muitas pessoas, muitos recursos, as pessoas dizem: “há muita gente a fazer mais rápido do que tu, porque é que hás-de precisar mais do que os outros?” Pois, porque estou a fazer todos estes passos, que são importantes que os jornalistas façam — sem eles não estão a cumprir a sua função. Outro aspecto é este, uma vez, no Twitter, disse assim: “não se deviam, em campanhas gigantescas como as legislativas ou presidenciais, fazer debates em directo.” Não se deviam fazer debates em directo.
AIF – Nós íamos confrontar-te com isso, numa pergunta, podemos, já, aproveitar. Referiste que os debates políticos, por exemplo, deveriam ser previamente gravados e, depois, serem transmitidos já com o devido contexto das afirmações e fact checking. Queres explicar melhor?
Uma vez, fiz esse tweet, em que dizia que campanhas desse género — em campanhas legislativas, presidenciais e afins — onde estão milhões de pessoas a ver os debates ao mesmo tempo e em directo. Na verdade, devíamos mudar esse método, não devíamos publicar, transmitir em directo. Para o público, não há grande diferença — em vez de verem às oito da noite, em directo, gravava-se às onze da manhã e passava-se às oito da noite, à mesma — mas, para os jornalistas, dava-lhes uma oportunidade e algum tempo para poderem vir apresentar correcções, notas e fazerem fact checking . Assim, já não passava tanto sobre o que os jornalistas estão a dizer ou a escrever, mas mais pelo que as pessoas estão a dizer.
É impossível estares a moderar um debate, com cinco pessoas, e estares a fazer fact checking em directo ao que cinco pessoas estão a dizer, principalmente, quando algumas delas dizem as maiores barbaridades que tu possas imaginar e que tu pensaste que ninguém ia dizer. Vou dar-te um exemplo, “ah, metade dos ciganos têm Ferraris vermelhos e vivem do RSI [Rendimento Social de Inserção]”. É completamente estúpido. Não podes pensar que vais conseguir fazer fact checking em directo. Aquilo que sugeri, portanto, foi, gravas aquilo, publicas aquilo mais tarde. Isso, depois, a decisão é editorial, mas nem é preciso fazer nenhum corte, durou uma hora e meia, publica-se a hora e meia.
Mas, na televisão, enquanto estás a ouvir uma pessoa a dizer, “os ciganos, metade deles têm Ferraris”, podes dizer, “quanto a isto, não existem dados étnico-raciais para a população portuguesa, portanto, é impossível dizer, sequer, quantas pessoas ciganas existem em Portugal e, também, é impossível dizer quantas delas têm Ferraris, mas, tendo em conta a pobreza que está documentada em relação às comunidades ciganas, em Portugal, é muito improvável que isso aconteça.” Aí, era como se estivesses, apenas, a fazer o teu trabalho que é mediar — os jornalistas estão a mediar. Se tu, apenas, chamas pessoas para se sentarem numa sala e discutirem entre elas, não estás a mediar, não estás a fazer jornalismo, estás só a filmar um “Big Brother” com candidatos à presidência.
Aquilo que sugeri foi isso, e deixa-me só terminar uma coisa, a razão porque estava a ligar os tais projectos de fact checking a isto, é porque me parece que uma das coisas negativas que eles trazem, também, é esta ideia de que isso não é o teu papel enquanto jornalista. Aliás, houve pessoas que me acusaram de censura, de dizer que isto era uma ideia de que o Salazar ia gostar, coisas que nunca imaginei como reposta àquele tweet.
Mas o que estava a dizer era os jornalistas deviam, simplesmente, fazer o seu trabalho de mediação e fact checking. Não acho, por princípio, que projectos de fact checking, como o “Polígrafo”, sejam maus, não acho. Acho que podem ser interessantes, podem fazer-se trabalhos muito fixes. O que acho é que têm algumas consequências que tenho visto, negativas, nos últimos tempos. Nós, em Portugal, não temos muitos e gostava de ver porque, se calhar, há coisas diferentes que podem ser feitas. Há muitos projectos de jornalismo independente em Portugal, uns são maus, outros são bons, mas o jornalismo independente nem é bom, nem é mau. Se calhar, o jornalismo de fact checking nem é bom, nem é mau.
RAS – Indo ao encontro disso, também, um dos problemas é esse que focaste, que nos debates em directo não há fact checking, mas há outro problema ainda. Quem vai falar sobre os debates são os comentadores.
Que têm mais tempo do que o próprio debate.
“O problema é que nos órgãos de comunicação social, em Portugal, no jornalismo em Portugal — se calhar em outros sítios, não conheço, mas em Portugal sei que sim — e também nos cursos de jornalismo, foi-nos vendida esta ideia de que o jornalismo e os jornalistas têm de ser imparciais e isentos. Como têm de ser imparciais e isentos, é impossível darem a sua opinião ou relatarem experiências.”
Ricardo Esteves Ribeiro
RAS – Também, mas pegando nessa analogia, achas que está instalada uma falsa percepção sobre quem é jornalista e cronista? Que o público em geral confunde jornalismo com artigos de opinião e que isso fragiliza o papel dos jornalistas e até da profissão?
Sim, absolutamente. Mas acho que, mais uma vez, foi culpa de decisões estratégicas e editoriais de órgãos de comunicação social, e que se veem em diversas áreas como, por exemplo, na crença da ideia de que o que ia salvar o modelo de negócio do jornalismo eram os conteúdos patrocinados, que acho que não devem existir, de maneira nenhuma — acho que não deviam existir porque criam esta ilusão de que jornalismo, entretenimento e publicidade, tudo isto é a mesma coisa — se está publicado no jornal, é a mesma coisa. Se tudo aquilo é a mesma coisa, então, não será jornalismo, com certeza, e cria essa desconfiança também.
Acho, por outro lado, que, também, é uma falta de cuidado e de rigor, até deontológico, muitas vezes, na criação de barreiras entre o que é opinião e jornalismo. Não acho, não acho mesmo, que, quando fazes jornalismo, não podes dar opinião, acho é que tem de ser muito claro quando se dá opinião e muito claro quando é um facto e quando é informação. Isso, aí, muitas vezes, não está claro. Se olharmos para grandes inspirações de como se pode fazer isto bem, ou pelo menos de maneira diferente, é o jornalismo em áudio dos países anglo-saxónicos, principalmente dos Estados Unidos.
A malta que faz podcasts têm, muitas vezes, até porque é em áudio, uma ligação maior, criam mais empatia. A pessoa que está a ler-te uma história, muitas vezes, também inclui um maior número de coisas pessoais — estou a contar-te o que estava a sentir quando estava a fazer a entrevista. Isso, também, é uma opinião, é um sentimento, uma experiência que é tua, pessoal. Isso não pode estar numa peça? Claro que pode estar numa peça, tem é de ser óbvio que aquilo é uma experiência individual, tua, uma opinião, e que, naquele momento, é uma opinião tua. Acho que podemos aprender imenso sobre esse jornalismo, porque é possível fazer isso e fazer isso bem, sim.
O problema é que, nos órgãos de comunicação social, em Portugal, no jornalismo em Portugal — se calhar em outros sítios, não conheço, mas, em Portugal, sei que sim — e também nos cursos de jornalismo, foi-nos vendida esta ideia de que o jornalismo e os jornalistas têm de ser imparciais e isentos. Como têm de ser imparciais e isentos, é impossível darem a sua opinião ou relatarem experiências. Como é impossível fazerem isso, então nós nem sequer tentamos explicar que aqui é opinião, aqui experiência e aqui informação. É tudo uma bandalheira. Como nós nem tentamos, sequer, activamente, arranjar maneiras, mecanismos para podermos fazer estas separações, a decisão foi não fazer separação. Pode fazer-se tudo, posso dizer aquilo que quiser.
“Nós dizemos que somos progressistas, exactamente porque queremos dizer que não há isenção ou imparcialidade e, portanto, tem de haver transparência. Temos de dizer ao que vimos e o que somos.”
Ricardo Esteves Ribeiro
RAS – E qual é a vossa opinião acerca dos cursos de Ciências da Comunicação?
Não tirei o curso, então não te posso dizer. Acho que, para te responder a essa pergunta, tinha de ser outra pessoa do “Fumaça”. Não temos uma opinião.
AIF – Mas, por exemplo, não falam do “jornalismo gonzo”, do novo jornalismo…
Se calhar deviam. Na verdade, o nosso ensino superior está feito para produzir trabalhadores para o grande capital, não é? Esse é o objectivo do ensino superior. O objectivo não é fazer-te pensar, não é fazer-te encontrar o teu elemento, como dizia o Ken Robinson, encontrar um espaço onde tu juntas aquilo que tu gostas de fazer com o que fazes bem. Educação devia ser isso, aliás, a palavra educar quer dizer trazer para fora, esse é o início dessa palavra. Não é isso que o ensino superior, na sua generalidade, faz. Não conheço o curso de jornalismo, porque não tirei, não tirei o meu curso superior. Fiz um pouco do curso de gestão, mas é uma área que gosto de estudar, o ensino em si. Agora, está feito para tu criares trabalhadores. Se a maior parte dos órgãos de comunicação social pagam para fazeres peças o mais rápido possível, então é normal, digo eu, que se treinem as pessoas para poderem corresponder a esses trabalhos que, depois, vão ter de preencher. Mas não te consigo dar opinião sobre o curso. Acredito que tu tenhas mais do que eu.
RAS – Carla Baptista, professora e investigadora na área de história dos media e da relação entre jornalismo e política, disse, num artigo de opinião, que “as notícias mercantilizaram-se para agradar a públicos despolitizados”. Concordas com esta afirmação de 2018? Achas que se mantém actual?
Claro que sim, porque é muito mais fácil não teres de pensar e carregares num link do que seres confrontado com coisas que são desconfortáveis, obviamente. Se o objectivo, portanto, é carregares em cada vez mais links, então é normal que a decisão seja essa. Sim, claramente. Mas acho que não foi só mercantilizarem-se para públicos despolitizados, mercantilizaram-se para agradar aos publicitadores, a pessoas que querem comprar a publicidade. Acho que é uma consequência do que estivemos a falar antes.
RAS – Achas que a educação para os média deveria ser implementada nas escolas? Em que moldes?
Sim, acho que sim. Não te sei responder em que moldes, mas acho que sim, temos de começar a aprender como distinguir certas coisas, até como desafiar aquilo que estamos a ler, não é? Mas sinto que, cada vez que se fala, hoje em dia, da educação pós-média, está-se a falar de desinformação e fake news, mas não acho que seja só isso. Não temos só de dizer, “olhem, jovens, vejam aqui, isto aqui é fake news, isto aqui é jornalismo.” Acho que não é só isso. Temos de fazer com que as pessoas desafiem aquilo que estão a ler, mesmo que não seja desinformação. Mesmo que seja informação feita por jornalistas, com rigor, é preciso desafiar aquilo que está lá escrito e como está lá escrito.
Podes fazer uma notícia imaculada, sem qualquer erro factual e, depois, utilizar uma certa linguagem que pode ser desafiada, certo? Podes dizer isto, “imigrantes ilegais em Portugal cometeram x crimes este ano”. Até podes dizer que aqueles imigrantes estão em Portugal em situação irregular e cometeram aqueles crimes. Mas, ao utilizares a palavra “imigrantes ilegais”, pode-se perceber, por exemplo, se esse número de crimes é mais ou menos do que no ano passado, é mais ou menos do que em outros países. Qual é o contexto para que isso tenha acontecido, entre outras coisas — é muito mais do que ser factual. Acho que isso é que é necessário que seja aprendido. Como é que eu desafio aquilo. Nem é para ser jornalista, nem é para se perceber se aquilo foi mal feito ou bem feito. É para teres sentido crítico em relação ao que tu vês e lês. Não precisa de ser só o jornalismo.
Se calhar, o termo educação para os média é melhor do que educação para o jornalismo, educação para produção de conteúdo mediático — seja jornalismo, seja entretenimento ou seja série na Netflix. Como é que olho para uma coisa e a critico. Se calhar, é mais importante do que tu decorares a tabuada. É muito mais importante, hoje em dia, tu olhares para uma coisa e poderes criticá-la, perceber se concordo ou não concordo, isto é verdade ou não, onde é que eu vou ver mais, qual é o contexto para estas coisas, onde é que eu procuro, quais são as minhas fontes, como é que eu encontro fontes credíveis ou não credíveis. Acho que sim, é mais interessante. Agora, em que moldes, se calhar já estou a responder em que moldes, mas acho que devia ser muito mais por aqui, do que apenas, “isto aqui é jornalismo e isto aqui é desinformação.”
“O nosso ensino superior está feito para produzir trabalhadores para o grande capital, não é? Esse é o objectivo do ensino superior. O objectivo não é fazer-te pensar, não é fazer-te encontrar o teu elemento, como dizia o Ken Robinson, encontrar um espaço onde tu juntas aquilo que tu gostas de fazer com o que fazes bem. Educação devia ser isso, aliás, a palavra educar quer dizer trazer para fora, esse é o início dessa palavra.”
Ricardo Esteves Ribeiro
AIF – O Fumaça assume-se como progressista. E tendo em conta o que já falámos da comunicação social e a forma como é vista pelas pessoas, poderá, ou não, sem algumas situações, pôr-vos numa situação vulnerável no trato de certos temas? Por exemplo, vocês tratarem certo assunto mas, depois, nos comentários, virem dizer, “pois, vocês são isto e aquilo.”
RAS – Ou, então, nem vos darem entrevistas.
Não nos darem entrevistas é o menos. Toda a gente pode não dar e, muitas vezes, não dão porque, olha, não dão, não gostam do nosso trabalho, não têm tempo, não querem ou, então, não gostam da maneira como fazemos entrevistas ou o diabo a sete, o que quer que seja. Muitas pessoas, também, dizem que não dão entrevistas a órgãos de comunicação tradicionais porque são os órgãos de comunicação tradicionais — acho que, aí, podemos ganhar ou perder, tendo em conta o que quer que seja. Agora, sobre as pessoas comentarem, “pois, mas estes gajos aqui são de esquerda, são progressistas, ou que quer que seja, acho que aí seria, mesmo, muito importante. Acho que é das coisas mais importantes para combater a ideia da imparcialidade e isenção do jornalismo.
Nós dizemos que somos progressistas, exactamente porque queremos dizer que não há isenção ou imparcialidade e, portanto, tem de haver transparência. Temos de dizer ao que vimos e o que somos. Estou, por exemplo, neste momento, a fazer uma investigação sobre violência policial, sobre as polícias. É impensável, para mim, terminar a série que estamos a escrever sem dizer que sou abolicionista. Acredito num mundo sem polícias e sem prisões. Acredito num mundo abolicionista, penalmente. As pessoas, portanto, quando forem ouvir aquela série, têm de saber de onde é que eu venho. A maneira como vou fazer perguntas, os temas que escolho abordar, a maneira como os abordo, os livros que vou escolher ler, todos eles têm isso como background. Não estou a dizer que só vou ler livros de abolicionistas ou encaminhar toda uma série ou reportagem para isso. Não. Aliás, o método deontológico não me deixaria fazer isso. Mas nem o nosso método de edição deixaria fazer isso, porque é um método colaborativo, em que todas as pessoas da redacção fazem parte.
Essas são as maneiras com que nós tentamos desafiar as nossas tendências [bias]. Os bias existem, de certeza, não podem não existir, porque somos seres humanos. Não é como o José Rodrigues dos Santos que dizia “sou jornalista, nem sequer voto.” Uma estupidez, não faz sentido. Aquilo que me parece é que dizer que somos progressistas, na verdade, para nós, é importantíssimo, porque dizemos que nós acreditamos no progresso social, acreditamos que todas as pessoas devem ter necessidades básicas, direitos assegurados e que, portanto, deve existir igualdade.
Na verdade, o nosso trabalho, enquanto jornalistas, é escrutinar a democracia, discutir, desafiar as desigualdades que existem no mundo. Podes chamar-nos o que quiseres, utilizamos a palavra progressistas, até temos uma pessoa que diz que é de direita, na redacção, portanto, e há pessoas que dizem que somos de esquerda — bem, eu sou de esquerda. Ainda assim, é importante que as pessoas saibam isso e digam, “sim, está a fazer esta peça mas olha que eles são progressistas.” Sim, exacto! Muito melhor do que dizer que sou neutro, e que esta peça, aqui, é hiper-neutra! Não és. Provavelmente, seres neutro quer dizer que estás do lado de quem está a perpetuar a opressão, mais vale dizeres logo ao que vens.
RAS– O que acham da extinção da Secretaria de Estado do Cinema, Audiovisual e Media? Vocês pediram uma audiência ao Nuno Artur Silva, não foi? Na pandemia, por causa do 15 milhões como adiantamento da publicidade.
É um passo atrás, não é? Não existia uma Secretaria de Estado, passou a existir uma Secretaria de Estado e deu uma ligeira esperança de que se fizesse uma coisa, ligeiramente, diferente. Se bem que, talvez, no nosso pessimismo, não esperássemos que qualquer coisa fosse acontecer. Como não foi. Pelo menos tínhamos alguém que servia de interlocutor, tínhamos alguém com quem podíamos falar, a quem oferecer as nossas propostas e soluções, com quem discutir, a quem desafiar, para quem dizer mal, agora perdemos isso. Agora não existe. Se a Secretaria de Estado fez algo de últil, fez alguma mudança estrutural ou se melhorou, significativamente, a vida das pessoas que trabalham no jornalismo? Não. Não fez nada disto. A única coisa que fez, foi perpetuar os mesmos modelos mortos que já existiam. Esse é um dos exemplos. No meio da pandemia, utilizou-se esta ideia do fundo, uma ajuda, apoio aos órgãos de comunicação social que não o era, disseste-o bem, foi a antecipação, adiantamento de algo que já estava contratualizado e que ia acontecer, mas só daqui a uns anos. Não era um novo apoio, não era um novo fundo.
RAS – Mas passou-se uma ideia errada sobre isso.
E por culpa da Secretaria que quis, na verdade, utilizar isso para dizer que ia ajudar. Mas, na verdade, pronto, não era um novo fundo, não era uma nova bolsa, nem era um novo acordo. Mas esse é um dos exemplos da perpetuação de todos estes modelos, que são modelos errados. É esta ideia de que nós, para ajudar os órgãos de comunicação social durante a pandemia, vamos comprar-lhes publicidade. Isso é, exactamente, a perpetuação e a promoção de um modelo que está errado. É um modelo que não funciona, está morto, só não está enterrado porque há uma série de pessoas que mandam nos órgãos de comunicação social que não têm a coragem, a lata, o que queiras dizer, a visão, a criatividade, de tentarem ir por outra via e continuam a fazer os mesmos erros. Promove-se, portanto, um mecanismo público, promove-se um modelo que está errado.
Em segundo lugar, está a dar-se dinheiro a órgãos de comunicação social numa medida que se diz de apoio ao jornalismo, sem qualquer condição de que ele vá para o jornalismo. Está-se a dar, portanto, dinheiro à TVI e a TVI, pode utilizar o dinheiro para o que quiser. Se quiser utilizar no “Big Brother”, vai para o “Big Brother”, se quiser que vá para a “Casa dos Segredos”, vai para a “Casa dos Segredos”. Se quiser usar para o telejornal, vai para o telejornal. Não é um apoio ao jornalismo. É um apoio às empresas de média e, portanto, não é um apoio ao jornalismo. A terceira coisa é esta: se está a dar este dinheiro a empresas sem qualquer contrapartida que direitos laborais são assegurados, que não há despedimentos.
RAS – Não sei, mas teoricamente não podes ter dívidas, quase de certeza.
Não tenho a certeza, porque é, apenas, compra de publicidade. Isso aí acontece em bolsas estatais. Acho que, neste caso, não existia. Isso acontece, por exemplo, no “Portugal 2020”, “Horizonte 2020”. Não podes despedir para teres esses apoios.
RAS– Mas lá está, não é um apoio, lá está. É esse o ponto.
Não é um apoio e deixavam de fora outros órgãos de comunicação social que não tinham publicidade. Não tínhamos publicidade, era impossível candidatar-nos. Se o quiséssemos, era impossível. Propusemos outras maneiras de resolver. Fizemos várias propostas durante toda uma legislação. Algumas delas até simples, para se poderem resolver alguns dos problemas dos órgãos de comunicação social ou de projectos de jornalismo independentes. Uma delas era criar uma categoria específica no estatuto das entidades de utilidade pública, para jornalismo sem fins lucrativos, que permitisse que órgãos de comunicação social sem fins lucrativos, que fossem projectos de jornalismo, pudessem ser considerados entidades de utilidade pública e, portanto, pudessem estar ao abrigo da lei do mecenato. No fundo, que empresas, entidades pudessem dar dinheiro à Comunidade Cultura e Arte e pudessem ter benefícios fiscais por estarem na lei do mecenato. É como acontece com os teatros, as empresas e as entidades de cariz religioso e mais. Nós não temos isso.
Agora, por exemplo, vai ser a altura do IRS, aquela brincadeira toda que aparece em todo o lado, “dêem-nos 0,5 % da consignação do IRS.” Órgãos de comunicação social sem fins lucrativos, que não sejam entidades públicas, não podem receber. Não podem. Isso faria uma diferença brutal em imensos órgãos de comunicação social, brutal. Acho que nenhum de nós tem noção porque nunca recebeu aquilo, mas há uma razão para andares no metro e, em todo o lado, aparecem essas coisas. É porque aquilo faz, realmente, uma diferença. Nós fizemos esse reinforcing, pusemos isso em cima da mesa, foi uma das propostas que entregámos que até teve alguma aceitação, pelo menos teórica, da Secretaria de Estado, mas, durante o mandato, a lei que regula isso foi alterada, e isso não passou. Não foi proposto, sequer. O que nos propuseram a nós foi, “se vocês quiserem muito, fazem uma proposta e isto vai a Conselho de Ministros e, no Conselho de Ministros, vota-se e, aí, provavelmente, até passavam e tal. Nós dissemos, hã? Então, nós estamos a propor isto para mudar o panorama dos órgãos de comunicação social, e aquilo que vocês nos propõem é que nós, agora, resolvamos o nosso problema individual e todos os outros cagarem.
RAS – Essa contra-proposta soou a algo para vos calarem.
Calem-se lá com a vossa ideia e resolvam o vosso problema. Não vou falar de todas as propostas, mas só vou falar de mais uma, que é a reactivação do Instituto de Comunicação Social. Já existiu, antes, uma coisa que se chamava Instituto de Comunicação Social e nós propusemos a reactivação deste instituto e a criação de uma série de bolsas estruturais, tanto para órgãos de comunicação social, como, também, para jornalistas, individualmente. Por exemplo, uma das coisas que, também, essa tal antecipação da publicidade não faz, é garantir que este dinheiro vá para os jornalistas. Garante que esse dinheiro vá para as empresas de média, não garante que vá para os jornalistas. Não garante que o dinheiro que a TVI recebeu vá para pagar salários mais altos aos jornalistas.
A reactivação deste instituto serviria, para nós, dois propósitos — a criação de bolsas estruturais, tal como já faz o ICA. Bem ou mal, podemos ter muitas críticas, e tenho eu em relação ao ICA e à DGARTES, pela maneira como são dados os apoios, mas são institutos independentes do Estado, têm júris independentes em relação à escolha de quem é que recebe. São essenciais para pequenas estruturas e organismos de teatro poderem continuar a sobreviver e fazer o seu trabalho, que é um bem público. A criação cultural é um bem público, a criação artística é um bem público. Nós assumimos que é um bem público e pode haver uma DGARTES ou o ICA que dá dinheiro para eles continuarem, mas o jornalismo não. O jornalismo não porque, na altura, a resposta do Secretário de Estado foi, “ já viram o que é que era, agora, se propuséssemos um mecanismo estatal para dar dinheiro aos jornalistas e ao jornalismo? Já viram o que é que as pessoas iam dizer em relação à intromissão do poder político nas pessoas?” Mas, nas artes e na cultura, essa discussão não existe? Claro que existe, todos os anos se fala sobre isso. Mas temos de arranjar mecanismos para desafiá-la e contrabalançá-la.
A segunda coisa que deveria existir: apoios e bolsas para jornalistas, específica e individualmente, inspiradas nas bolsas da Gulbenkian. As bolsas da Gulbenkian não são entregues ao Fumaça, foi entregue ao Pedro Miguel Santos, que se candidatou, ganhou e, depois, ele decidiu doar esse dinheiro ao Fumaça e, por sua vez, o Fumaça trabalhou com esse dinheiro. Isso era fundamental para que projectos de jornalismo pudessem continuar. Para que projectos de jornalismo como o meu, como o vosso, como tantos outros que existem por aí, pudessem continuar, tivessem uma base melhor, e que trouxessem mais desafio às normas existentes. Mas serviria, também, para que jornalistas, individualmente, pudessem, se quisessem, sair do seu emprego e criar um novo projecto.
Hoje é super difícil e tu, Rui, sabes melhor do que ninguém, estiveste anos e anos a fazer uma coisa de borla, com um impacto grande, que cresceu e que tinha pessoas a ver. Onde está a está a estabilidade laboral dessas pessoas que querem fazer isso? Nós, no Fumaça , somos, provavelmente, o projecto de jornalismo independente em Portugal mais privilegiado do país.
RAS- Mas também é fruto do vosso trabalho.
Está bem, mas quantos outros fizeram um bom trabalho e não tiveram acesso a bolsas da Open Society Foudation, não começaram com pessoas que tinham vindo de trabalhar em start ups e sabiam como é se fazia fundraising, projectos financeiros a dois ou a três anos, tinham estudado gestão, tinham pais ricos e, portanto, podiam estar a trabalhar x tempo sem ganhar um salário. O privilégio vê-se de diversas formas — bem, não quero discuti-lo, tenho o meu e acho que é muito. Agora, acho que a fazer este tipo de coisas, era uma maneira do Estado poder promover uma revolução no jornalismo ou promover uma maneira diferente de fazer isto. Ia produzir mau jornalismo? Ia! Mas, também, ia produzir bom jornalismo e ia produzir coisas diferentes que, hoje, podem ser produzidas. Mas pronto, acho que isso não vai acontecer. Se, com uma Secretaria de Estado, não existiu, sem uma Secretaria de Estado, aí, temos a certeza que não vai existir.
AIF – Mas vendo a questão por outro lado, há um texto do Ricardo Esteves Ribeiro que afirma que há uma responsabilização dos média, (utilizando o exemplo dos debates portugueses), em colocar os assuntos quentes da extrema direita em cima da mesa, até quando não há justificação para tal. A minha pergunta é: até que ponto essas facções não se aproveitam dessa publicidade em excesso, mesmo sendo ela negativa ou positiva? Neste caso, quando é que mais vale falar ou ignorar?
Que essas facções se estão a aproveitar, isso eu tenho a certeza. O que eu escrevo nesse texto é, exactamente, que os órgãos de comunicação social estão a fazer aquilo que eles querem. Estão a fazer decisões editoriais que vão, exactamente, no caminho da extrema-direita e do populismo, no geral.
Não sei como se resolve porque era necessária uma revolução na maneira como pensamos o jornalismo. E, hoje em dia, visto que nós queremos ter o maior número de audiências, o maior número de cliques, queremos ter as coisas que dão mais discussão e, normalmente, são as parvoíces. Se tu dizes uma parvoíce tal, que é tão estúpida, e tens de falar com a pessoa do lado sobre o quão estúpida ela foi, é normal que ela gere discussão. É estúpida, do género, “olha-me esta pessoa, como é que foi capaz de dizer isto.” Tu contas à pessoa do lado, às vezes é para rir. Mas não posso fazer disso decisões editoriais de uma redacção. Não posso ir atrás das coisas estúpidas que o Ventura diz e publicar todas elas. Não faz sentido. Tenho de ir à procura das coisas que são importantes para as pessoas — esse texto foi publicado no contexto das presidenciais.
A decisão que era importante ser feita, nas redacções, era, quais são os temas que importam, neste momento, às pessoas e que tem que ver com as eleições presidenciais? Não são as coisas que importam às campanhas partidárias. São as coisas que importam às pessoas. Vamos decidir, portanto, como vai ser a nossa estratégia editorial para esta campanha, tendo em conta aquilo que interessa para as pessoas, tendo em conta o nosso público — seja o que quer queres dizer com pessoas, não vais perguntar aos 10 milhões de portugueses o que é acham — mas escolhes o que é que interessa para eles. Fazes as perguntas, escolhes os temas, tendo em conta isso, não é ir ao sabor das campanhas eleitorais e daquilo que os partidos dizem. Fazer isso é ir, exactamente, ao sabor da estratégia que os populistas têm, porque os populistas vão sempre dizer a coisa mais estúpida.
Portanto, se fizermos um ranking de quem soa mais estúpido e, em primeiro lugar, ficarem aqueles que têm mais publicidade ou que estão mais na agência mediática, estamos a ir no caminho da destruição total. Agora, como é que isso se faz? Não sei como é que se faz, mas sei como é que não se faz. Como não se faz? Não falar sobre a extrema-direita, quando a extrema-direita não está presente, essa é fácil. Tu tens um debate entre a Marisa Matias e a Ana Gomes, não dizes o nome do líder da extrema-direita, não dizes. Não falas dos temas que eles querem falar. Falas dele quando estiver sentado à mesa.
Segunda coisa que tu não fazes é trazer os temas que só importam à extrema-direita para a tua estratégia mediática. O tema do número de deputados que existe na Assembleia da República, se vamos ter ou não uma nova constituição — já não me lembro, na altura, quais eram os temas do Chega e da extrema-direita — mas esses temas não interessavam a ninguém. Não eram os temas que estavam na cabeça das pessoas. No país, isso não resolvia o problema das pessoas.
Ao enchermos, portanto, todo o espaço noticioso com esses temas, não falamos de temas que realmente importam, como as alterações climáticas. A crise brutal que se estava a sentir — e ainda se sente, mas, na altura, sentia-se ainda mais — pelos profissionais do sector cultural, também não foi abordada. Não se falou sobre as desigualdades estruturais e qual era o papel do presidente para resolvê-las. Ficas com pouco espaço para isso. As decisões editoriais não são feitas pelos jornalistas, pelos editores e pelos directores de redacção, são feitas pelo líder da extrema-direita. Isso, aí, é muito triste, é a destruição total do nosso papel enquanto jornalistas e mediadores.
Esta entrevista foi realizada em Abril de 2022 por Ana Isabel Fernandes e Rui André Soares.