Entrevista. Rita Vian: “Tenho a ambição de me integrar na confusão e de ser capaz de ver a partir de mim e do outro”
Rita Vian é um dos talentos emergentes da música portuguesa, com uma fusão de géneros — entre o R&B, o fado, a música eletrónica e até a música popular portuguesa — que tem tanto de saudável como de refrescante. Em conjunto com outros nomes, como Conan Osiris, Pedro Mafama ou Ana Moura, a cantora lisboeta tem formado um repertório com sonoridades muito diversas, mas, de igual modo, com uma lírica bastante profunda e pessoal.
Por agora, a cantora irá ao Museu do Oriente, ao abrigo do Misty Fest, em Lisboa, no próximo dia 6 de novembro. Um dia antes, sobe ao Porto para atuar a solo na Casa da Música. A Comunidade Cultura e Arte foi conversar com a autora do EP “CAOS’A”, procurando conhecer melhor os bastidores da sua carreira e as suas bases e inspirações artísticas.
Foi um Verão bem movimentado o teu, passaste por um sem número de festivais musicais, entre eles o NOS Primavera Sound, o Bons Sons e o Vodafone Paredes de Coura, para além de concertos em nome próprio. Qual é o teu feedback de ter esta agenda tão ocupada e de receber o carinho de vários públicos?
Acho que o melhor que tirei deste lançamento do EP foi a surpresa — que eu retiro como surpreendente — que foi o bem com que as pessoas me receberam e como se relacionam com as letras e com o que eu digo. Acho que isso é o balanço que eu faço neste ponto do campeonato, que é o quanto é que isso me surpreendeu a mim. Tem sido o melhor de tudo, que é sentires que chegas às pessoas e é sentires que és ouvido. A sensação que fica é a das pessoas te ouvirem e estares a dizer tudo o que pensas e tudo o que querias dizer e que isso tem um impacto que é absorvido pelo outro lado.
Ainda sobre o Bons Sons, tens raízes na aldeia de Cem Soldos, perto da cidade de Tomar. Como foi regressar a um lugar que te diz tanto?
Olha, foi muito especial. Nasci em Lisboa e vivi sempre em Lisboa, mas os meus pais e toda a minha família é de Tomar e de Cem Soldos. Então, todos os meus verões e as minhas férias foram sempre em Cem Soldos. Hoje em dia, as minhas férias continuam a ser lá. Eu fui ao festival desde que ele começou, desde o primeiro ano e, antes de ele ser o Bons Sons, era um de verão e íamos lá comer algodão doce e ouvir, assim, as bandas da aldeia e regionais. Era uma tradição de irmãos muito fixe que nós tínhamos e íamos lá com os nossos pais. Por isso, de repente, tocar lá é uma sensação estranha, porque, a seguir, dei três ou quatro passos e deitei-me na cama em casa. É uma sensação diferente, acho que fechas um ciclo, sentas que estás a fazer a coisa certa e estás no caminho certo, porque estás em casa.
Sabemos que o teu fascínio pela música nasce muito por virtude dos teus familiares, com quem cresceste entre Lisboa e Tomar. Com isto em mente, como é que entraste no mundo da música propriamente dito?
Olha, sempre cantei e toquei, porque, na minha família, sempre se cantou e sempre se tocou. Como foi uma coisa sempre natural, nunca foi um processo consciente de que isso falava mais alto do que qualquer outra coisa. Para mim, era normal cantar e tocar e, para além disso, sempre escrevi, por isso, unir todas estas coisas foi um processo gradual e muito natural. Acho que, de certa maneira, fui agregando todas as coisas que me influenciam para tentar ter a voz mais pura e realista em relação àquilo que eu penso e o que eu sou para que essa mensagem e a minha linguagem fossem o mais perto de mim possível e o mais únicas possível no sentido de ser eu, não no sentido de ser qualquer outra coisa.
Estudaste no Conservatório da Metropolitana e passaste pelo Hot Jazz Clube de Portugal. De que forma essa diversidade de correntes, desde a música clássica até ao jazz, contribuiu para produzires música tão abrangente e, na sua composição, tão diversa?
Toquei mais piano de ouvido do que propriamente do que aprendi lá, porque sempre me falou mais a questão criativa do que a de aprender. Mas eu saltitei em várias escolas, estive um ano na Metropolitana, tive seis meses no Hot Clube, tive um ou outro professor de piano para tentar estruturar o lado teórico, mas foram várias experiências soltas. Tudo o que eu faço acaba por ser da vertente criativa e não da teórica. [A diversidade] tem mais a ver com o que eu ouço, não foi o ensino que tomou muito o lugar. Acho que tem a ver com aquilo que eu gosto, tanto o hip-hop, como o jazz, como o fado. São tudo coisas que me interessam do lado teórico, porque há muitos pequenos segredos e truques que são muito bonitos se os souberes, mas que nunca cheguei lá pela parte teórica. Gosto deles por ouvir e vou à procura deles a cantar e a compor, embora nunca os tenha estudado.
Como é que fermentaste o teu gosto, durante o tempo, pela diversidade e pela riqueza da música portuguesa?
Por um lado, porque todas as mulheres da minha família cantavam de uma maneira muito própria e meia “afadistada” todas as canções — as portuguesas tínhamos, lá em casa, em partituras da minha avó, que a minha avó tocava piano —, mas, sendo elas nacionais ou estrangeiras, mantinham essa forma de cantar. Por outro lado, a minha mãe sempre teve uma veia, também, mais da canção portuguesa de intervenção e eu acho que esse lado e esse gosto, apesar de o ter cultivado na adolescência, quando ia à procura de coisas, se foi reforçando por a ouvir cantar em casa cantores como o Sérgio Godinho. Nasce um pouco por todos estes fatores e depois, em adolescente, por ter ido à procura, já que o que acontece à tua volta te condiciona e que se cruza com esse lado teu que se interessa e que acaba por trabalhar mais, de forma não consciente. É assim que percebes o que gostas e o que não gostas tanto.
A tua passagem nos Beautify Junkyards reflete a tua música atual, recheada de pormenores de linguagens distintas, desde a Tropicália até ao folk acid e até à kosmische alemã e o krautrock. O que é que trazes dessa discografia para o teu eu artístico de hoje?
Acho que, na altura dos Beautify, o que me seduzia mais era o lado da experimentação e até o lado do sampling. Eles tinham um lado muito ligado ao folk, mas também muito ligado a isso, e, depois, a Tropicália também tinha um encanto para mim. Todo esse universo da música brasileira dessa altura sempre encantou-me muito e fui buscar muitas referências que ouço muito. Por isso, acho que não eram coisas que soubesse identificar e só hoje em dia, com alguma distância, consigo ver esses elementos. Na altura, foram esses três elementos [experimentação, sampling e o gosto pela Tropicália] que me levaram até à banda e, depois, acabou por eu ir criando o meu próprio caminho e que eu tinha muita coisa para dizer. Juntar essas peças e lançar-me sozinha.
Trazes uma música muito urbana e contemporânea, com a qual muitos públicos (mais jovens, mas também outros) se identificam. Sentes essa empatia entre estes públicos e os temas que compões e apresentas?
Sim, sinto muito essa empatia e era disso que eu falava, dessa ligação, que acho que é o mais importante. Quando sentes que parece que o mundo, de repente, se torna mais acolhedor, no sentido em que te vês ao espelho com muita gente e isso é muito positivo, sentires que estás a dizer coisas que há outras pessoas que se identificam contigo, algo que é muito bonito de se sentir.
Qual é a parte que mais te move na produção da tua música?
A produção do disco. Cada vez mais, o que gosto mais de fazer é produzir e escrever. A criação, acima de tudo. O que mais gosto é de criar e tudo o que envolve o processo de criação de algo, é o que me entusiasma, no fundo. É aí que reside o lado artístico, em que todas as possibilidades estão em aberto e tu tens que desenhar uma coisa que tem a ver contigo e que, de certa maneira, é um processo de autodescoberta, uma coisa muito bonita, que é transpores tudo para fora para algo que te vai entregar às pessoas diretamente. Ou seja, a escolha de como as pessoas te ouçam e te vejam. É uma descoberta muito bonita, que é uma ajuda a ti, que te vais descobrindo e trabalhas tudo o que pensas e o que vives. É um processo que me seduz muito e que me deixa muito feliz de construir, de ver crescer e materializar-se.
Os videoclips dos teus singles também trazem essa ambiência urbana, com um misto de profundidade, serenidade e introspeção. Sabendo que são o reflexo das letras, sempre muito pessoais e íntimas, serão eles um convite a que quem te acompanha também partilhe desse estado de espírito numa sociedade tão veloz e, de certa maneira, alienada?
Sim, de certa maneira. Fico contente que isso passe, porque acho que nós estarmos no meio de tudo isto — no meu caso, estar em Lisboa, uma cidade grande — e parar para pensar e parar para escrever é algo que, a mim, me interessa muito. Organizar pensamentos, organizar tudo aquilo que eu sinto e que coexiste com tanta outra coisa e que têm a atenção que tu lhe deres, mas, também, tens de ter atenção em tudo o resto e tudo o que se passa à tua volta. No fundo, eu tenho essa ambição de ter uma escrita que não seja muito centrada em mim apenas, mas que seja capaz de transcender para o outro, que seja capaz de se encaixar numa pessoa que esteja ao meu lado e que, certamente, vê as coisas de uma maneira diferente por todas as condicionantes que teve na vida.
Tenho um pouco essa ambição de me integrar na confusão e de ser capaz de ver, com clareza, não só a partir de mim, mas também a partir do outro. Claro que não vou conseguir fazer isso a certo ponto, mas tenho essa vontade, às vezes, de estar a escrever e ver se o texto vai ter essa compaixão e essa empatia pelo pensamento de quem pode estar, também, em Lisboa ou noutra grande cidade, no meio da confusão. Esse pensamento, acho que vai no sentido de nos unirmos na serenidade, na calma, na organização do nosso pensamento e no valor que damos ao parar para pensar, para criar algo.
Quais são as tuas grandes inspirações na música que fazes, tanto na produção do som propriamente dito, como no processo da escrita das tuas letras?
Usando nomes portugueses, diria sempre a Amália Rodrigues. Acho sempre que uma voz é sempre mais que uma voz, que transmite muita realidade. Há vozes que, através deles, te fazem perceber muita coisa. Diria, também, o José Mário Branco, o Sam The Kid, os Madredeus e a Teresa Salgueiro, que têm uma linguagem muito própria. Digo o Sérgio Godinho, o Manel Cruz… Gosto muito de vozes e de pessoas. Por trás das vozes, está sempre uma mensagem e acho que são vozes muito importantes.
No teu processo de autodescoberta, quais foram as fases mais relevantes para a tua criação musical?
Sempre fui uma pessoa muito atenta a mim e às pessoas à minha volta e, então, sempre tive muito essa atenção e observação muito aprimoradas. Acho que, com o tempo e pelo bicho da escrito, isso, naturalmente, acontece. Eu, por querer escrever, acabo por escrever o que vejo, o que sinto e o que sei o que penso que as minhas pessoas pensam também. O meu processo teve muitas fases, obviamente, pessoais e muitas delas foram absorvidas por mim, sempre com essa noção de que não era só eu a passar por alguma coisa. Essa conversa com o outro, que não precisa de ter uma cara ou um corpo, foi sempre algo que quis muito trabalhar, de ter essa capacidade de te pores no lugar do lado. Acho que foi um bocado isso que me foi definindo enquanto autora. Foi essa vontade de espelhar, não só a minha experiência, mas também o que vi acontecer a quem estava comigo.
Quais achas que são as melhores formas dos mais jovens redescobrirem a música popular feita em Portugal, entre elas, claro está, o fado?
Na minha adolescência, por iniciativa própria, ouvia muito fado, ao contrário de amigos com quem falei sobre a questão do fado ser ou não para a nossa geração. Acho é que houve um acordar aqui dos nossos vizinhos de Espanha para o flamenco e a existência da Rosalía, do C. Tangana, e acho que o facto de eles terem levado esta sonoridade e reavivado essa cultura de uma forma que parece tão simples, mas que, ao mesmo tempo, vai tão direto ao público mais jovem. Isso acordou muitos ouvintes para essa vontade e isso é muito bom, porque esse efeito cultural é fortíssimo e faz com que qualquer pessoa sinta essa vontade. Pelo menos, no meu caso, a pandemia teve um forte impacto em nós nos virarmos para dentro como pessoas, como país, como tudo. Acho que ficamos muito isolados e fez-nos pensar um pouco a todos. Existe muito essa vontade de nos levarmos com muita identidade para fora de casa e isso, pelo menos a mim, acontece, leva-nos a imprimir naquilo que fazemos. Acho que isso é o mais importante, sabermos qual é a nossa identidade, ter essa consciência e levá-la da forma mais pura possível para os outros.
Acreditas que este é parte do caminho do futuro da música portuguesa, o da convergência de diversos registos e géneros, num diálogo entre passado e presente para o futuro?
Não acho que seja ir buscar o passado. Acho que passa pela mensagem, sempre, que tu queres passar, passa por uma experiência que queres passar. Independentemente do sítio onde vives, se quiseres passá-la de uma forma verdadeira, ela chega à próxima pessoa. Depois, acho que vivemos automaticamente influenciados por tudo. Se soubermos trazer à realidade uma experiência fidedigna da nossa experiência, acho que chegaste ao sítio certo e, se fores honesto com essa tua experiência, essa verdade passa para os outros. É isso que, no fundo, se deve ambicionar e isso, naturalmente, traz tudo o que te influencia, seja o fado, o hip-hop, etc. Não nasces sem estímulos, sem estar rodeado dessas coisas, que vêm naturalmente ao de cima com a tua voz e com essa história que queres contar.
Existe algum músico (nacional ou internacional) com quem gostarias de colaborar?
Já disse alguns nomes, mas, dentro de tanta gente, diria Kendrick Lamar, James Blake, Rosalía. Todos os nomes que estejam cá ou não. A Maria Reis, que tem uma escrita que, a mim, me seduz muito no sentido da honestidade, da sinceridade, no desbloqueio de palavras, que existe muito hoje em dia e me interessa. Não usares palavras que são muito usadas e procurares novas palavras, dizendo exatamente as coisas como dirias, com naturalidade. Existe muito também disso no Brasil, com a Doralyce, a Bia Ferreira; o hip-hop também tem essa força de contar histórias, de viver da experiência própria e de ser muito honesto. Nisso, sempre me moldou bastante, porque acho muito libertadora essa forma de escrever, de contar essa história.
O que tens em vista para os teus futuros concertos? A mesma conexão com o público ou, talvez, ir, ainda, mais além.
Acho que me sinto cada vez melhor em palco e digo cada palavra com mais consciência. Isso é o reflexo de que também vais sentido essa conexão com o que escreveste, quer dizer que as coisas sobrevivem ao tempo e sentes a resposta das pessoas ao longo do tempo, que te deu bastante força. Estes concertos, para mim, são o juntar de todos esses elementos e de me sentir cada vez mais eu própria no palco.
Tens algo pronto ou em mente para levares para o estúdio num futuro próximo?
Sim, já tenho trabalhado em coisas há muito tempo. Não tenho datas previstas, mas vai sair trabalho, novas histórias, novas canções sobre o resumo do último ano, de tudo que me aconteceu e das histórias que tenho guardadas para contar.
O que é que pretendes fazer com a tua música daqui em diante?
É uma resposta que fui dando nas entrelinhas. Planeio ser eu o mais realista possível, ir contando a minha história a pouco e pouco. Planeio espelhar essa minha vontade do quanto eu gosto da realidade como ela é e, acima de tudo, como gosto de observar e de escrever sobre a realidade, porque ela é tão rica e tem tantos olhares sobre ela, que é bonito e é importante tentar captar todos esses olhares e não nos cingirmos ao nosso. Captar o meu olhar, os olhares daqueles que estão comigo e à minha volta, para contar uma história e tentar uma fotografia da vida como ela é hoje.