Entrevista. Rodrigo de Matos: “Não sei se será ‘casual’ o que resulta de um processo mental criativo”
Dream High. Mesmo em inglês, é fácil perceber o significado da expressão, certo? Até porque encontramos, em português, uma equivalência, sonhar alto. Mas como é que se pode fazer um trocadilho visual e, mesmo assim, fazer-se uso de referências perceptíveis a várias pessoas de diferentes nacionalidades e culturas? Para este caso em específico, o cartoonista do semanário Expresso, Rodrigo de Matos, recorreu ao conto João e o Pé de Feijão (Jack and the Beanstalk) e criou, consequentemente, a imagem literal de um feijoeiro que sai da cabeça do sonhador e sobe bem alto no céu, como se fosse o próprio sonho. Tal como a expressão diz, Dream High. Essa é uma das pinturas que pode ser encontrada na Rua dos Ervanários, em Macau. A convite da galeria de arte Iao Hin, o artista ficou encarregue de colorir as paredes da típica e histórica rua macaense, sob o olhar dos transeuntes, numa iniciativa de três meses, Finding Dreams in the Fall of Rua dos Ervanários, mesmo sem ter experiência a grafitar. Para esta imagem, fez-se uso do imaginário universal do conto, mas há outros exemplos em que a literalidade e os trocadilhos entre o lado pictórico e a linguística estão, igualmente, expressos. A primeira pintura, por exemplo, denominada Follow your dreams , mostra um detective a seguir, exactamente como a expressão avisa, os passos de um sonho. Há, também, a brincadeira com o duplo sentido, em inglês, da palavra Bug, que significa insecto mas, se mudarmos o contexto, “Something is bugging me”, significa incómodo. Esta não é, no entanto, a primeira vez que Rodrigo de Matos faz uso do duplo sentido das palavras, a sua literalidade e abrangência. Ainda este ano, explorou isso mesmo na sua exposição Pinacotroca, também patente em Macau. A questão e o interesse é que, além do cómico e absurdo, o que confere ao seu trabalho um lado onírico, há também o interesse em se explorar as referências linguísticas e culturais mais comuns, que fazem parte de um imaginário mais universal que extrapolam as idiossincrasias de uma determinada língua. Daí ter-me dito na entrevista que se segue, concedida por e-mail, “não sei até que ponto se pode considerar “casual” o que quer que resulte de um processo mental criativo. Há toda uma coleção de símbolos conectados a conceitos que fazem parte da rede do nosso intelecto — o trabalho criativo passa por saber movimentar-nos o melhor possível nessa rede. O “universo de referências” de que fala abrange tudo o que ali encontramos e, uma grande parte, é comum a todos nós.”
É a primeira vez que faz trabalhos em paredes de rua? Se sim, quais foram os desafios no que diz respeito à técnica de pintura?
Sim, é a primeira vez. O meu percurso pela arte urbana é escasso. Conto, apenas, com a participação regular num evento aqui de Macau que, todos os anos, por ocasião do Ano Novo Chinês, convida os artistas locais a pintarem um grande boneco em fibra de vidro com a forma do animal correspondente ao novo ano lunar. Este ano, por exemplo, foi o Ano do Cão. É uma iniciativa que faz lembrar, à sua maneira, a famosa Cow Parade, mas, em vez de vacas, os artistas pintam, a cada ano, um bicho diferente. Mas paredes, mesmo, é a primeira vez que aparecem como suporte para mim.
Em termos de desafios, são sobretudo a nível técnico. Estou, ainda, a adaptar-me à pintura com tintas acrílicas de parede, que se comportam de forma ligeiramente diferente dos acrílicos que se usam para pintar telas,com os quais estou mais habituado. Mas, até ver, não tenho tido grandes problemas e já lhe estou a pegar o jeito.
Já tinha tido interesse por essa forma de arte ou não?
Sim, sempre admirei alguns grafitos — escuso-me a utilizar o original graffiti, do plural italiano de graffito, uma vez que a palavra grafito já existe, dessa forma, nos dicionários de português — quando bem conseguidos. Embora haja uma estética, de certa forma, difundida e massificada — um certo estilo de grafito (alegadamente textual) com letras super distorcidas até se tornarem ilegíveis — que é dominante e, a meu ver, pouco interessante, há, mesmo assim, muitos artistas urbanos que se conseguem colocar à margem e criar coisas verdadeiramente originais e relevantes. Como é o caso de Banksy’ ou do “nosso” Alexandre Farto (Vhils), só para citar alguns dos mais famosos.
Desta vez não há uma crítica social directa nem política. Ou se a há, é de uma outra forma. Para quem é cartoonista e está acostumado a olhar para a actualidade, essencialmente, faz bem olhar para as coisas sob outras perspectivas? É também um desafio?
É difícil olhar para algo pintado num muro e não achar que há ali algo de político, quanto mais não seja no próprio acto criativo que não deixa, nunca, de ser uma intervenção atrevida em si mesma. A temática aqui, nesta série que estou a fazer, no entanto, não é crítica social ou política, nem está presa à atualidade. Claro que é sempre bom abordar as coisas de diferentes maneiras, consoante os objectivos. Explorar novas formas de expressão é enriquecedor e é um desafio, sim, sem dúvida. Além disso, tem-me servido para “desenjoar” um pouco, se assim se pode dizer.
A temática do sonho liga-se ao surrealismo, que já tinha confessado que era uma vertente que deixou uma marca em si. Mas o seu trabalho parte, também, dos trocadilhos e interpretação literal de certas expressões, como também se viu na exposição “Pinacotroca” que, embora não sejam surrealistas na sua génese, podem ter um pendor absurdo muito grande. Uma vertente pode servir de base para a outra? São características fáceis de entrosar uma na outra?
Os sonhos descrevem, normalmente, cenários e eventos absurdos por definição, uma vez que neles não vigoram as leis do mundo físico. Essa é uma característica, também, dos mundos imaginários que tentei retratar com a série de quadros incluída nessa exposição que referiu mas, essa analogia, é meramente casual, no sentido em que não foi um objectivo deste trabalho. Por outras palavras, mesmo sem procurar um retrato dos sonhos, abandonei-me a um tipo de liberdade semelhante, desfazendo-me das amarras do possível, abraçando o absurdo, como referiu. O resultado acaba, acidentalmente, por dar um certo carácter onírico a estas obras. Algo que não rejeito, pelo contrário. Adoro imaginários surreais. Sempre adorei.
Mas essas experiências em torno dos trocadilhos, que se julgam depender das idiossincrasias de uma determinada linguagem ou cultura, ou a literalidade de determinadas expressões, não acarretam desafios para se tornarem perceptíveis para todos?
Sim, e é interessante explorar isso também. Na exposição que fiz este ano, aqui em Macau, criei um jogo interessante na relação dos trabalhos com os seus títulos. Ora, a grande maioria resultava tanto em português como em inglês, mas alguns só resultavam em inglês. Algumas ideias que só faziam sentido em português, acabei por deixar de parte. O que procurei foi o seguinte — os trocadilhos que só resultassem em inglês teriam de ser expressões amplamente utilizadas noutros idiomas como “babysitter”, “brainstorm” ou “think tank”, por exemplo, que nós usamos mesmo ao falar português.
Qual o pintor e o trabalho surrealista que mais admira?
São tantos. Gosto de referir o Salvador Dalí, que pode ter sido o pintor mais profícuo nessa fase. É, certamente, o rosto do movimento surrealista na sua vertente mais comercial, o que não é, em princípio, algo que jogue, necessariamente, a favor do seu legado. Mas a verdade é que tinha uma técnica fabulosa, um domínio fantástico da luz, da cor, do espaço, da anatomia. Um génio incontornável. Outro é Giorgio de Chirico, na verdade um precursor do surrealismo, com a sua pintura metafísica. Gosto muito das cenas enigmáticas que criava.
Porquê, em específico, a escolha do tema do sonho para a iniciativa?
Boa pergunta. Gostava de a poder responder, mas a verdade é que não foi minha a ideia, nem participei nessa escolha, a não ser com o meu “sim”. Havia outras ideias no ar, mas quando me propuseram a temática dos sonhos fiquei tão contente que aceitei logo, sem fazer muitas perguntas. Fiquei mesmo entusiasmado!
Numa das pinturas faz uma analogia ao conto do “João e o Pé de Feijão”. Foi casual ou os contos também fazem parte do seu universo de referências?
Não sei até que ponto se pode considerar “casual” o que quer que resulte de um processo mental criativo. Há toda uma coleção de símbolos conectados a conceitos que fazem parte da rede do nosso intelecto — o trabalho criativo passa por saber movimentar-nos o melhor possível nessa rede. O “universo de referências” de que fala abrange tudo o que ali encontramos e, uma grande parte, é comum a todos nós. Ali estão o João e o Pé de Feijão, o Gato das Botas e o Lobo Mau, etc. E mesmo que nunca tenhamos lido as obras originais onde apareceram essas personagens – confesso que se alguma vez li o João e o Pé de Feijão era tão pequeno que já não tenho qualquer recordação disso – a verdade é que estamos, perfeitamente, familiarizados com elas e as suas aventuras, por força da sua presença frequente no cinema, nos desenhos animados e na banda desenhada. Fazem parte do imaginário universal da humanidade e é nesse sentido que podem aparecer, também, no meu, sempre que achar que resumem, metaforicamente, uma ideia que quero transmitir.
Como tem sido a experiência de pintar em público? Como tem sido a interacção com as pessoas que passam?
Tem sido muito gratificante. Receber os parabéns de pessoas desconhecidas que vão passando pela rua e se detêm a apreciar estes trabalhos. Eu fico muito imerso e compenetrado na pintura e, por vezes, quando me dou conta, tenho à minha volta várias pessoas a seguir atentas as minhas pinceladas, em silêncio, para não me perturbar. O que me provoca sempre risadas, uma vez que não me distraio com barulho. (Na verdade, quando trabalho em casa, costumo ter sempre música ou ouço alguns podcasts que me interessam, e consigo dar atenção a uma conversa sem perder minimamente o foco no que estou a fazer). Mas outras são mais atrevidas e interrompem-me para tirar uma fotografia, uma selfie… Não me importo minimamente de fazer uma pausa a qualquer momento, até acho graça, e considero que não é mais do que a minha obrigação ser simpático para quem se interessou pelo meu trabalho, a ponto de querer tirar uma foto para recordar mais tarde. Acho revigorante o carinho das pessoas.
Qual é o seu maior desafio enquanto cartoonista, actualmente?
O desafio é sempre o mesmo: manter um olhar relevante sobre os assuntos da actualidade e abordá-los de forma criativa e original, quase sempre (embora nem sempre), com o objectivo de provocar o riso no leitor. Penso que a minha técnica e o meu humor têm evoluído de forma satisfatória ao longo do tempo e é, também, um desafio continuar a evoluir sem estagnar, sem me tornar repetitivo.
Mas à medida que o tempo vai passando e olhando para todo o trabalho que já foi feito, essa tentativa de não repetir não se torna mais difícil? Ou essa procura de algo novo é algo que, por sua vez, também se pode treinar?
Sabe que, ao início, era um grande receio que eu tinha. Chegar, um dia, a um ponto em que não conseguiria ter uma ideia que não repetisse algo que já tivesse feito no passado. Mas a verdade é que, quantos mais anos disto eu acumulo, mais sinto que isso não tem de ser necessariamente assim. Mais me apercebo quão vasto é o universo de possibilidades, o que me leva a crer que tem razão: isto é mesmo uma questão de treino e prática. Claro que, com uma dúzia de anos a trabalhar regularmente em cartoon editorial e tendo acumulado ao longo desse tempo à volta de dois mil cartoons publicados, é impossível lembrar-me de todos, e pode acontecer pegar, inadvertidamente, numa ideia que já tinha utilizado no passado. Na verdade, isso é raro e, para ser sincero, o que me admira é não acontecer com mais frequência. Mas penso que assim é porque, com a prática, como dizia, sempre que tentamos abordar um tema ou exprimir um conceito, os caminhos que se nos apresentam são muito mais numerosos do que no início da carreira. Isto mesmo já descontando as ideias que já usámos no passado. Por isso, o desafio da não-repetição é real e está bem vivo, mas é possível encará-lo com outra confiança.
Sente que, de alguma forma, numa altura em que a informação se banaliza, por já não termos capacidade de a processar convenientemente, de já haver uma dificuldade em perceber o que é verdadeiro e o que é mentira, os profissionais da informação ainda podem marcar a diferença e serem influentes? Qual é a sua opinião?
Penso que a informação produzida de forma isenta, séria, independente e honesta é cada vez mais importante e necessária, justamente devido a essa tendência para o congestionamento informativo, por um lado, e para o massacre da verdade, por outro. Certamente, os jornalistas podem ser influentes, como hoje em dia qualquer pessoa pode. Se podem “marcar a diferença”, o futuro o dirá. Tal como dirá se o bom jornalismo tem mercado e é sustentável. A tendência que observamos não é animadora, mas isso não diminui a importância da existência de uma imprensa de referência, pelo contrário.
Quando faz um cartoon, costuma já ter uma ideia mental do que vai fazer, ou o clic dá-se na hora em que se debruça sobre isso?
É preciso ler as notícias na imprensa, primeiro, ver os noticiários na TV e ler artigos nos jornais, etc. Esse é o primeiro passo que origina a escolha do tema – geralmente, prefiro o que tenha uma melhor relação “importância/potencial humorístico”. Quando começo a rabiscar papel, já tenho um esqueleto do que será o cartoon e uma versão rudimentar da piada. À medida que os vários passos se sucedem, do esboço à arte final, isso vai-se apurando, vão-se acrescentando ingredientes, cortando superficialidades e redundâncias. O tal “clic” de que fala acaba por ser um percurso menos instantâneo e mais contínuo e gradual do que se possa pensar. Isto, de forma geral. Às vezes, é como uma roleta russa. Há vários cliques sucessivos. Quando se houve um “bum!”… temos cartoon!
Entrevista de Ana Isabel Fernandes