Entrevista. Rui Soares: “Pensamos que os jovens só vão para os festivais de rock, mas procuram igualmente a música clássica”

por Ana Monteiro Fernandes,    7 Novembro, 2024
Entrevista. Rui Soares: “Pensamos que os jovens só vão para os festivais de rock, mas procuram igualmente a música clássica”
Rui Soares / Fotografia de Rui André Soares – CCA

A sexta edição do ciclo de órgãos de tubos de Santa Maria da Feira arrancou dia 3 de Novembro, na Igreja da Misericórdia, com o concerto do organista João Vaz, diretor artístico do Festival de Órgão da Madeira e dos concertos na Basílica do Palácio Nacional de Mafra, com o foco na interpretação de obras do período barroco indo, assim, ao encontro da especificidade arquitetónica da igreja e do seu órgão. O ciclo, que continuará sempre aos domingos às 16 horas, pelas restantes igrejas paroquiais das freguesias de Santa Maria da Feira, tem também como objetivo a descentralização cultural, o que leva Rui Soares, o director artístico do evento, a referir que “não quero saber se a freguesia tem mil habitantes ou se tem um milhão de habitantes, o concerto realiza-se na mesma. Isso é importante para que as comunidades sintam que têm um instrumento que devem preservar“.

Na sua perspectiva, não só os mais jovens estão mais próximos da música clássica, como também contribuem para que as gerações mais velhas, a dos pais, se sintam também mais próximos deste mundo, e remata: “isso não invalida que o mesmo jovem que está a tocar na orquestra, no concerto das sete, às onze da noite não esteja a “curtir” um concerto de metal, são coisas diferentes.” A preocupação artística principal repercutiu-se na escolha do organista indicado tendo em conta a especificidade da igreja e do seu órgão. Rui Soares explicou que cada órgão de tubos tem a sua especificidade e que, por isso mesmo, um repertório do período romântico não poderia ser interpretado num órgão concebido para música barroca e vice-versa. Não se trata de música sacra nem de uma aproximação à igreja, mas há uma complementaridade entre a palavra cultura e culto que se unem, ajudando, assim, a descentralizar também a ideia do que deve ser um equipamento cultural. Foi o que Rui Soares contou à Comunidade Cultura e Arte, numa entrevista que teve lugar na Igreja da Misericórdia, em Santa Maria da Feira, dia 3 de Novembro, no arranque deste “Ciclo de Órgãos de Tubos”.

Fotografia de Rui André Soares – CCA

De que forma o ciclo de órgãos de tubos de Santa Maria da Feira pode contribuir para a descentralização cultural? 

Contribui para a descentralização, desde já, pelo facto de os instrumentos não estarem todos no mesmo sítio, ou seja, estão espalhados pelo conselho de forma aleatória. Fomos ao encontro dos instrumentos e, segundo a vontade do vereador, na realidade, se houver mais instrumentos noutros pontos de conselho, a ideia é irmos ao encontro desses mesmos instrumentos. Temos dois órgãos no coração de Santa Maria da Feira, mais propriamente dito este da Igreja Misericórdia, onde arranca o ciclo, e o da Igreja Matriz. A ideia consiste em abrirmos o ciclo de órgãos aqui, em Santa Maria da Feira, e fazer o percurso pelo concelho todo e finalizarmos, novamente, em Santa Maria da Feira. 

Estamos a falar de um estilo de música que combina com a acústica de uma igreja. O conceito de música numa igreja também não é novo, mas coloco esta questão de forma mais ampla. O quão importante é pensarmos em espaços e equipamentos como estes para uma descentralização e valorização cultural? Ou seja, para se fomentar uma descentralização dos espaços culturais mais óbvios para concertos?

Na realidade, estes instrumentos foram construídos e são todos diferentes uns dos outros para serem adaptados à acústica e ao espaço em que estão inseridos. Este instrumento, por exemplo, acaba por ter características mais barrocas porque está inserido num espaço todo ele oitocentista. Então, o estilo musical que se enquadra tendo em conta o instrumento, o órgão, e a caixa acústica, neste caso a igreja, combinam perfeitamente. Temos aquela velha frase, que não é a minha, mas que uso sempre para justificar estas coisas todas: a palavra “culto” acaba por vir de “cultura” e vice-versa. Estes dois mundos estão aliados: o culto por parte da igreja como o local de culto dos cristãos, em termos mais institucionais, que em simultâneo se transforma num local de cultura. 

Esta igreja acaba por ser um bom exemplo disto. Hoje de manhã tivemos missa, culto, e agora à tarde temos a cultura. A igreja transforma-se e, evidentemente, estamos a utilizar este espaço magnífico, recuperado há relativamente pouco tempo, e a aproveitar a recuperação e a aquisição do instrumento: aliámos uma coisa à outra. Naturalmente, a música que é feita acaba por estar interligada com estes dois mundos, o mundo da arquitetura, o mundo da arte e, neste caso, a arte da música. Este tipo de música acaba, de certo modo, por cativar também alguns jovens. Pensamos que os jovens só vão para os festivais de rock, mas procuram igualmente a música clássica. Não estamos propriamente a falar de música sacra — por acaso até teremos um concerto, o último, que terá um quê de música sacra — mas se formos a ver, 90% do programa que será apresentado neste ciclo é música centralizada no instrumento órgão que, de sacro, pouco ou nada tem, embora tenhamos aquela ideia de que o órgão é aquele instrumento que está mais conectado com a Igreja. Não deixa de o ser, na realidade, é precisamente aqui que os instrumentos se encontram. 

Mas acha que a música clássica está mais próxima dos jovens? 

Está, sempre esteve e sempre estará. Basta ver que, por exemplo, o concelho de Santa Maria da Feira tem uma orquestra de jovens, não é uma orquestra de velhos. A orquestra existe porque há alunos nas escolas do concelho, ou seja, significa que há miúdos que se interessam por isto. Alguns não, são empurrados pelos pais, mas aqueles que chegam à orquestra, chegam porque gostam, porque se esforçam e, de outro modo, não teriam lugar na orquestra. Aqui temos a prova viva de que, efetivamente, os jovens não procuram um único estilo de música e acabam por ter esta diversidade, que acho que é fundamental, e pluralidade em termos estilísticos. 

Além dos sete organistas portugueses, vão participar um organista polaco e um organista italiano. O quão importante é esta abertura? 

É muito importante porque queremos que o nosso ciclo não seja fechado. É muito importante termos uma catapulta em termos internacionais. Essa catapulta é feita através destes convites que são endereçados a organistas já com uma certa craveira e um certo respeito no mundo internacional, no campo da música para órgão, e deste tipo de festivais. É muito importante mantermos a nossa cultura portuguesa com organistas nascidos e criados em Portugal, mas também é importante, em simultâneo, trazermos organistas de fora. Não é uma questão de seriedade, não tem nada a ver com isso, porque poderíamos manter um ciclo só com organistas portugueses talvez mais sério do que um ciclo de órgãos da Catedral de Notre Dame, em Paris.

Mas, na realidade, é muito importante que haja o além-fronteiras, que consigamos transportar este ciclo para que em alguns sítios importantes na Alemanha e Itália, por exemplo, se fale que em Santa Maria da Feira há uns órgãos engraçados que são dinamizados. A ideia da própria Câmara Municipal estar envolvida na organização deste ciclo não tem nada a ver com uma proximidade da Câmara com a Igreja, não é isso. Sente-se que estes instrumentos são e serão parte da cultura feirense.

Há pouco, numa das suas respostas, falou da aproximação dos jovens à música clássica. Mas o que acha que poderia ser feito, de alguma forma, para aproximar mais a música clássica da população em geral, de forma a contornar a ideia feita de que a música clássica é de elite? 

Tem a ver com aquilo que é a nossa cultura portuguesa. Porque é que o cozido à portuguesa continua a ser um prato de eleição e que acaba por acontecer em quase todas as casas? Será que os jovens gostam de cozido à portuguesa? Não sei, mas o certo é que o cozido à portuguesa tem sobrevivido até aos nossos dias. Porquê? Porque há alguém que gosta. Talvez, quando temos os nossos dez anos, 12 anos, não apreciamos muito o cozido à portuguesa, mas quando chegamos aos 30, 40 anos, começamos a achar piada ao prato. Acho que a música acaba por ser isto, há um processo de amadurecimento e, esse processo de amadurecimento começa no seio da cultura musical. Na realidade, o que acontece é que, felizmente, ao abrigo de alguns programas de estudo, a música clássica está a entrar na casa das pessoas mais precocemente.

Como costumo dizer, foram os miúdos que levaram os pais a fazerem a reciclagem. Acaba por ser um bocadinho isto, os miúdos vão estudar música nas academias, nos conservatórias e escolas de música, e vão obrigar os pais a irem às audições, quanto mais não seja porque o pai quer aplaudir o menino a tocar o piano no final da sua apresentação. Estamos já a fazer essa aproximação, não só através das escolas, mas através, por exemplo, da Orquestra de Jovens da Feira e deste ciclo que já contou e conta com muitos jovens organistas.

Quando digo jovens organistas, não estou a falar de organistas com 80 anos, organistas com os seus 20 anos. Tivemos o caso de António Pedrosa, um organista feirense que está a dar cartas lá fora. Se o órgão não chamasse os jovens, o que é que o António Pedrosa andava a fazer no meio disto tudo? É claro que, na realidade, estamos a falar de um músico no mundo do órgão, mas se nos transportarmos para os outros instrumentos, temos as bandas filarmónicas. Metade das bandas filarmónicas são jovens, já repararam? É verdade que as bandas filarmónicas têm um programa, um leque um pouco mais abrangente mas, na realidade, essa tentativa de aproximação da população em geral e dos jovens à música clássica já está a ser feita no terreno. Falo desta forma de tentar cativar os jovens para a música e, neste caso, a música séria, a música mais clássica. Isso não invalida que o mesmo jovem que está a tocar na orquestra, no concerto das sete, às onze da noite não esteja a curtir um concerto de metal, são coisas diferentes. 

Rui Soares / Fotografia de Rui André Soares – CCA

Este ciclo já vai na sua sexta edição. Quais são os principais desafios na dinamização e evolução deste ciclo? 

O primeiro de todos é mantê-lo. Temos sido bastante acarinhados. Basta ver que temos, nos concertos — posso dizer que em quase todos — a casa cheia e há pessoas que fazem, por exemplo, este percurso pelo concelho todo. Vou estando mais ou menos nos concertos todos e consigo reconhecer as caras das pessoas à medida que os domingos vão passando. Se é um festival, como acontece no Porto — um festival internacional de órgão — que é sexta, sábado, domingo, segunda, terça, quarta, com os dias seguidos, acaba por haver uma maior dispersão em termos de público, embora haja uma maior agregação em termos de programa. Aqui é o contrário. Temos uma maior dispersão de programa, porque os programas funcionam só os domingos, mas as pessoas acabam por fazer uma espécie de rota, fazem esta volta connosco e vão apoiando porque o ciclo de órgão e a cultura são feitos porque há público.

Se não houver público, é caso para dizer que é a nossa maior desgraça. A desgraça é se temos um concerto e não aparece ninguém. Mas no que toca à parte artística há que procurar, em todos os ciclos, inovar com alguma coisa. Não ser, portanto, a questão do órgão como instrumento solista, sempre, mas procurar encontrar um concerto em que o órgão passe a ser um instrumento acompanhador ou que, por exemplo, como neste ano, juntarmos quatro órgãos ou, como no último concerto, em que o organista não faz a mínima ideia do que vai tocar: vai ter umas partituras à frente na hora e vai ter de fazer improvisações. Ou seja, a ideia é criarmos aqui alguma inovação em termos de programa, porque também é importante para nós.

Qual foi a principal preocupação com a escolha do repertório para este ciclo? 

Normalmente, os organistas fazem o seu próprio programa. Os programas são adaptados a um instrumento em causa. Por exemplo, neste caso, estamos a falar de um instrumento com dois manuais e um pedal. O programa que é feito neste órgão não pode ser feito num órgão da Igreja Matriz, aqui em frente. Porquê? É um instrumento mais pequeno, um instrumento que só tem um teclado e já não tem dois, ou seja, se convidasse este organista para tocar lá, o programa de hoje não poderia ser feito lá e vice-versa. Ou seja, cada instrumento tem uma característica. Automaticamente os instrumentos vão estar de acordo com o programa que é feito. O mesmo não acontece, por exemplo, com o piano. O piano é aquele instrumento standard. Pode ter um quarto de cauda, meia cauda ou cauda inteira, mas é sempre um piano, ponto final. Em todos os pianos podemos tocar os noturnos de Chopin, por exemplo, nos órgãos, não. Pelo facto de cada instrumento estar inserido num espaço com uma determinada acústica, com um determinado tamanho em termos da complexidade tímbrica dos tubos, entre outros aspetos, obrigatoriamente já temos programas diferentes.

É claro que eu, enquanto diretor artístico, tento empurrar um bocadinho para cada órgão, e aí sim, posso-lhe responder. Tento procurar o organista que melhor se adapta àquele tipo de música que sei que vai ser interpretado naquele instrumento. Nunca traria para aqui, para um órgão barroco, um organista que toque Messiaen, porque não faria sentido. O organista ia chegar aqui e não é um instrumento que ele está habituado a tocar. Tentamos procurar, sempre, equilibrar isto. Não podemos alterar os órgãos em questão, podemos sempre alterar os organistas. Não há nenhuma imposição por parte do ciclo de órgão, do género: “ok, vais ter de tocar Bach”. Não. O organista sente-se na liberdade de fazer o programa. Na realidade, acaba por ser um bocadinho livre a escolha de programa.

Fotografia de Rui André Soares – CCA

Também falou na questão da rota pelas freguesias. O quão importante é este ciclo, também, para a dinamização das freguesias de Santa Maria da Feira?

É extremamente importante para que o público sinta que, como se disse há pouco, o ciclo de órgãos não é elitista. Não queremos que isso aconteça. Vamos aos instrumentos, vamos ao encontro dos órgãos, onde estão, independentemente do órgão ser de maior ou de menor qualidade. Isso é muito importante para quê? Dois aspectos: a descentralização, ou seja, a cultura não acontece só na cidade, acontece fora da cidade, independentemente da freguesia onde está. Não quero saber se a freguesia tem mil habitantes ou se tem um milhão de habitantes, o concerto realiza-se na mesma. Isso é importante para que as comunidades sintam que têm um instrumento que devem preservar. Acabamos por dar um rebuçado ao público, dizendo que estamos aqui, organizamos estes concertos aqui, mas vocês têm uma tarefa muito importante, que é a de preservar o património.

Na realidade, os instrumentos são património e, ao estarmos junto das comunidades, alertamos para estes dois mundos: o mundo da valorização do património, das freguesias mas, em simultâneo, para o alerta de que, atenção, é preciso manter os instrumentos. Não basta ter a igreja aberta, é preciso ver se o teto cai, perceber se há um banco podre. São pequenos aspetos que a nós, ao público geral, nos passam ao lado, mas que são de extrema importância, sob o ponto de vista da preservação do património. É, ao mesmo tempo, uma chamada de atenção ao público, de que a responsabilidade do património não é do padre, não é da Câmara Municipal em particular, é de todos. Todos temos, então, essa obrigação de os manter vivos.

VER GALERIA

Gostas do trabalho da Comunidade Cultura e Arte?

Podes apoiar a partir de 1€ por mês.