Entrevista. Sara Barros Leitão: “Quando uma mulher escreve, normalmente, é muito mais escrutinada que os homens”
“O mundo pode acabar e o teatro vai continuar”. É uma frase dita por Sara Barros Leitão, convidada do episódio 40 do podcast Ponto Final, Parágrafo, e que ganha a vida a ser atriz, dramaturga, encenadora. É também uma das diretoras da Plateia (a associação de profissionais das artes cénicas), professora de dramaturgia e, desde o ano passado, dirige a estrutura de criação artística Cassandra, que lançou um clube do livro feminista e inclusivo.
A Cassandra é a estrutura que Sara ergueu com o valor do prémio Revelação Ageas – Teatro Nacional D. Maria II, um galardão que venceu e que promove os talentos emergentes no panorama teatral. Teve tempo para pensar no que investir e nasceu, dentro da estrutura, o Heróides – clube do livro feminista, que vai “discutir” no mês de março o livro “Mulheres Invisíveis”, de Caroline Criado Perez.
Sara vive no Porto, tem 30 anos e começou por fazer parte dos grupos de teatro amadores da sua zona. A primeira peça em que participou bem pode ter sido na garagem dos avós ou num salão dos bombeiros. Não sabe dizer qual foi a primeira peça que fez porque a passagem para o universo do teatro profissional foi um passo muito natural.
Num episódio em que falamos da ponte entre literatura e teatro, que é tão velha quanto o tempo, começamos por falar da relação de Sara com os livros. “Acho que os livros significam várias coisas diferentes na minha vida. Por um lado representam uma obsessão. Talvez pudesse ser considerado uma doença”, ri-se, revelando que compra mais livros do que os que lê – e tem noção disso. “Estou neste momento num dilema grave porque talvez tenha de mudar de casa porque não tenho espaço para colocar todos os livros que vou adquirindo. E esta pandemia tem sido terrível porque tenho adquirido ainda mais livros do que o normal, mas isto não é uma coisa capitalista como parece”, assegura, dizendo que não acumula só porque sim.
“Os livros para mim representam liberdade e emancipação, de alguma maneira. Lembro-me muito bem do dia em que aprendi a ler e de como isso foi transformador para mim.” Lembra-se de aprender a palavra “pato”, que tinha um significado enquanto que outras declinações na escola ainda não o tinham. Mesmo as placas que indicavam que se vendiam móveis, no caminho para casa da avó” foi uma experiência sem igual.
Ainda sobre os livros, esses objetos libertadores e poderosos, Sara destaca que se quer munir de “conhecimento – sobre outras pessoas e outras formas de pensar”, mesmo que sejam à partida diferentes da opinião que Sara tem. “Gosto de ficar com esses registos porque acho que me dá acesso ao mundo. É como se pudesse ter o mundo inteiro ao mesmo tempo. Os livros trazem essa possibilidade. É muito fascinante conseguires ter o passado, o presente, tudo ao mesmo tempo: coisas que foram escritas no século V a.C.; coisas que estão a ser escritas agora, edições com tiragens muito pequenas, ou coisas que vão na vigésima edição. Conseguir ter tudo isso e os livros puderem ser esta ferramenta de se pegar, consultar…a minha secretária é muito caótica”, ri a explicar.
O clube do livro feminista – Heróides está a braços com um livro a cada mês de 2021 e já discutiram títulos como “As Ondas”, de Virginia Wolf. O modelo dos encontros no Zoom passa por ter uma pessoa convidada, que escolheu o livro, e por uma conversa em que cada um pode interromper a qualquer momento – para mimicar uma conversa real. O clube nasce de uma vontade antiga de Sara de fazer parte de um clube de leitura: “Fui participando nalgumas sessões públicas, mas nem sempre encontrava o espaço confortável. Neste tipo de sessões, conversas com o público, feiras do livro, conversas com os autores e autoras, acho que se institui um formato que está cada vez mais distante daquilo que de facto é o que as pessoas querem e como se sentem confortáveis”, diz Sara, continuando, “Talvez as pessoas não andem a pensar muito sobre isto, mas isto mexia comigo. Acho que o conhecimento também é uma forma de poder e todas as formas de poder são formas também de oprimir e, por isso, acontece-me assistir a conversas e sentir-me oprimida [para partilhar, para intervir]”. Por isso a lógica que implementou no clube é o de total liberdade para interromper para acrescentar uma ideia – uma fórmula que funciona muito bem, como pude comprovar num dos encontros.
Com o valor pecuniário do prémio Revelação Ageas – Teatro Nacional D. Maria II, Sara está a preparar também um monólogo. Chama-se “Monólogo de uma mulher chamada Maria com a sua patroa?”, um título “roubado” ao livro “Novas Cartas Portuguesas, das Três Marias.
Mas para já, estará de novo, a partir de abril, no Teatro Nacional D. Maria II, em cena a peça “Catarina e a beleza de matar fascistas”, de Tiago Rodrigues, em que Sara é uma das Catarinas. Os atores têm ainda uma viagem marcada a Liège, na Bélgica, e vão ver se poderão ir. Sara revela ainda que vão ser abertas datas pontuais durante este ano em vários locais de Portugal e que não são Lisboa. A peça vai prolongar-se até 2023 e já há muitas datas marcadas. “O espetáculo vai continuar”, diz Sara.
O público pode também vir, em breve, a adquirir o livro, o texto dramático, da peça na loja do D. Maria II. O texto já está editado em francês, sublinha Sara, e vai ser publicado em português através do Teatro D. Maria II.
O primeiro livro sobre o qual falamos, e que marcou a vida de Sara, é “Os Maias”, esse clássico da língua portuguesa, da autoria de Eça de Queirós (ou Queiroz, se quisermos ser mais corretos). Sara conta a história de como requisitou o livro na biblioteca a pensar que ia ler um livro sobre a sua terra, a Maia. Com isto, “apaixonou-se” Carlos da Maia, protagonista do livro que marcou Sara “porque marca o momento em que passo dos livros para crianças para os de adultos”.
Quando foi tempo de devolver o livro à biblioteca, Sara tinha ideia de trazer o livro imediatamente ao lado de onde “Os Maias” tinha sido tirado. Nesse lugar estava “O Primo Basílio”, um livro que marcou Sara através de uma história com a avó, que pode ser ouvida no episódio.
A partir de uma pergunta sobre se Eça constrói bem personagens femininas, como Maria Eduarda e Maria Monforte, em “Os Maias”, Sara explica como é importante a representatividade e o lugar de fala das mulheres. “Eu acho que é muito importante que o exercício da escrita seja de plena liberdade, ou seja, que qualquer pessoa se possa projetar no corpo de outro, na cabeça de outro, independentemente da condição da pessoa que escreve. Isso é um exercício de liberdade que deve ser preservado. Nunca estou contra essa questão. Mas também acho que a questão do lugar de fala é uma questão que deve ser falada e batalhada. Ou seja, não é pelo facto de termos personagens femininas extremamente bem escritas por homens, ao longo da história da literatura, que impede que a luta deste século seja para que as mulheres escrevam também as suas personagens femininas, não negando nenhuma das que estão para trás, claro. Mas na verdade, um homem a escrever uma personagem que é mulher, por mais magnífico que seja o exercício, por mais virtuoso que seja, e mesmo que o escreva melhor que a própria mulher, não deixa de ser um homem a escrever sobre uma mulher. E então, a minha luta neste momento é: como é que conseguimos que as mulheres tenham também esse lugar de escrita, de publicação, de reconhecimento na imprensa, de crítica, que parte do mesmo sítio do que os homens. Aliás, também é muito interessante que normalmente colocas mais peso, quando uma mulher escreve, naquilo que ela escreve, se é sobre mulheres ou não. É muito mais escrutinada do que os homens”, explica Sara relembrando o programa Botequim, da TSF, que traz à superfície estas situações em muitas áreas.
O terceiro livro recomendado por Sara é “Ilíada”, de Homero. E chegamos a esta frase magnífica de Sara, que recentemente releu o livro: “A Ilíada baseia-se na disputa por uma mulher. Portanto, todas estas 500 páginas seriam resolvidas se a mulher pudesse falar e dizer aquilo que ela queria. (…) Se alguém tivesse perguntado a Helena se ela queria ir ou não com Páris, e se tivessem respeitado a sua vontade, não tinhas praticamente literatura. Isso é a prova de que tudo aquilo que nos chega, e que é maravilhoso, está assente no retirar da fala das mulheres.”
Sara compreende que se tivessem perguntado a Helena o que queria fazer, “não teríamos estas obras, o que seria uma pena, por um lado, porque as obras são belíssimas, mas por outro lado, mostra como o mundo acabou por produzir literatura, sociedade, política, a partir de um sítio em que as mulheres não tinham lugares de fala”.
É nesta onda feminista que chegamos ao livro mais aguardado do episódio (talvez só por mim): “Novas Cartas Portuguesas”, de Maria Isabel Barreno, Maria Velho da Costa e Maria Teresa Horta.
Para Sara, o livro podia ser muito mais falado do que é. “As «Novas cartas portuguesas» foi um livro que me politizou e que faz parte da minha vida. (…) Acho que ainda hoje é muito pouco conhecido, falado, discutido, em relação àquilo que deveria ser. A grande parte das pessoas desconhece até este livro, que para mim é um mistério. E ninguém me pediu, mas eu ando com esta missão de o desmistificar a quem não o conhece”. Sara lembra que há agora uma nova edição, da Dom Quixote, que tem prefácios de Ana Luísa Amaral e Maria de Lourdes Pintassilgo.
São mais de 120 textos, poemas, citações, escritas há 50 anos. Essa diversidade é também o que encanta Sara Barros Leitão e que levou mais de uma dezena de ouvintes a adquirir o livro.
O podcast Ponto Final, Parágrafo é produzido por Magda Cruz, na ESCS FM, em parceria com a CCA. Já vai na 3ª temporada e podes ouvir todos os episódios, ler e subscrever a newsletter do podcast e contribuir para o podcast no Patreon.