Entrevista. Sara Correia: “O Fado cabe em vários géneros musicais”
“Não sou de mais lado nenhum, sou de Chelas“. As palavras do primeiro single de Liberdade, o mais recente disco de Sara Correia, ressoam na minha cabeça enquanto me desloco até ao Café Com Calma, o espaço que graciosamente acolheu a nossa entrevista com a fadista em permanente ascensão. Curiosamente, enquanto conversamos, estamos a pouco mais de um quilómetro do icónico e muitas vezes incompreendido bairro que a viu crescer, mas a distância encurta-se ainda mais ao longo da nossa conversa. As suas origens são um dos motes de Liberdade e algo que Sara carrega em tudo o que faz.
Falar com Sara Correia é fácil; a nossa conversa flui com leveza. Ocasionalmente, apresenta uma resistência pragmática, particularmente quando falamos de Chelas. Com a confiança de quem defende o seu bairro com unhas e dentes e a atitude desafiante que lhe reconhecemos no videoclipe da música que enverga o seu nome, descarta rapidamente ideias que não lhe interessam e não se desfaz em meias medidas. No entanto, na maioria das vezes é de trato doce e sorriso aberto, particularmente quando conversamos sobre a sua relação com o público ou sobre a sua grande paixão: o Fado.
“O Fado é a minha matriz. Não sou a Sara sem o Fado, nem o Fado o é sem a Sara“, conta-nos, sem uma ponta de soberba. Mesmo tendo apenas três discos editados até hoje, a sua marca no Fado é já indelével. Desde os 9 anos que o canta, apesar de sempre ter feito parte da sua vida, tanto que o trata como se fosse família. Conviveu com ele em casas de Fado, onde cantava “7 dias por semana, durante 15 anos“. “Tinha que me virar“, diz-nos com a resignação e experiência de quem, apesar do trabalho árduo, corre por gosto.
Ao discutirmos a forma como a música, em particular o Fado, a tem moldado, Sara refere que fez com que crescesse demasiado rapidamente. “Hoje em dia nota-se muito mais variedade de idades, mas antigamente eram pessoas já com mais idade. Isso trouxe-me essa carga do Fado, de ouvir certas conversas que não eram para a minha idade. Aprendes mais rápido“, conta-nos entre risos. “Passei por etapas da minha vida que devia ter vivido e não vivi“. Apesar disso, não se sente triste nem arrependida. “Cantar é o meu sítio”, afirma orgulhosamente, e tudo o que aprendeu com os fadistas de diferentes gerações fortaleceu a sua pessoa.
Quando lhe pergunto se acha que o Fado ainda representa verdadeiramente Portugal, a resposta é um categórico e contundente “sempre”. Como uma verdadeira embaixatriz, afirma que é o “cartão de visita” do nosso país: “só existe aqui“. O conselho que dá a qualquer pessoa, mesmo que à partida pense que não se identifica com o Fado, é o de ir a uma casa de fados pelo menos uma vez. “Ninguém sai de lá indiferente. A não ser que não tenha coração.”
Quando lhe perguntamos o que significa para ela ser uma auto-proclamada “fadista do povo“, a sua postura enrijece-se. “As pessoas têm muita tendência de achar que, por sermos do bairro, somos menos do que os outros, temos menos oportunidades ou não sabemos comunicar“, algo que Sara desmente completamente. Por isso mesmo, exacerba a sua ligação ao bairro, pois ser fadista do povo é nada mais nada menos que não ter medo de se associar à sua realidade. “Gosto muito de ver os miúdos [do bairro] a cantar a “Chelas”, isso dá uma esperança de que tudo é possível e que não temos de ter vergonha de onde vimos.“
A homenagem que faz a Chelas na homónima canção pretende, mais do que mostrar o bairro a quem é de fora, dizer a quem a conhece desde sempre: “estou sempre aqui. Sou vossa“. Foi por isso que Liberdade foi apresentado numa emotiva festa em frente à sua casa de infância, em Outubro do ano passado. Esta iniciativa leva-nos a falar sobre a descentralização e democratização do acesso à cultura, principalmente no que toca a bairros historicamente afastados dos centros culturais. De forma muito assertiva, Sara lista métodos para contrariar essa tendência: “fazer este tipo de música, passar esta mensagem, ter esta entrevista. As pessoas devem falar sempre e não se esconder atrás das pedrinhas“.
A pop de “Chelas” pode parecer um elemento ‘estranho’ no meio de Liberdade, um álbum assumidamente fadista, mas a dramática voz de Sara, esculpida pelo Fado, encaixa que nem uma luva na canção. “Acho que o Fado cabe em vários géneros musicais, e só agora é que as pessoas estão a perceber que não há mal nenhum nisso“. Nos seus trabalhos, a artista vai namoricando aqui e ali com outros géneros musicais, mas ainda não se vê a fazer um trabalho inteiro de mistura de estilos. “Primeiro quero montar os meus alicerces e mostrar do que é que sou feita“. Apesar de toda a confiança que vai transmitindo no seu discurso, tem a modéstia de reconhecer quando não se sente preparada para algo. “Ainda tenho de caminhar para isso“, ri-se.
É também por isso que não escreve música para si mesma. “Tenho um respeito enorme à língua portuguesa. Considero tanto os poetas e quem escreve bem, que não se pode escrever só porque sim. Vejo a escrita e a composição de uma maneira muito mais séria.” No entanto, isso não significa que não controle o processo criativo por detrás dos seus discos. Aliás, Liberdade foi o disco que lhe trouxe a maior liberdade criativa que alguma vez teve. Mas esse é apenas um dos significados por detrás do nome do disco.
As muitas viagens que fez nos últimos anos deram-lhe a conhecer outras culturas e pessoas. “No meio disso tudo, fui-me encontrando“. Agora que chegou aos 30 anos, afirma: “sinto-me livre de ser quem sou, sem qualquer preconceito, sem ter medo de mostrar às pessoas quem sou“. A belíssima capa do disco, em que Sara segura o pescoço com as duas mãos, representa justamente aquilo que fez durante muito tempo: prender-se por coisas sem importância.
A ideia musical de Liberdade partiu de si, tendo-a desenvolvido posteriormente com a ajuda de Diogo Clemente, o músico e colaborador que está consigo desde o início da sua carreira, e dos diversos colaboradores que escreveram e compuseram cantigas para o álbum. Entre o rol de músicos, encontramos Carminho, Carolina Deslandes, Joana Espadinha, Pedro Abrunhosa e Tiago Bettencourt, pessoas escolhidas por Sara pela admiração e carinho que nutre por elas. “Tudo aquilo que cantei neste álbum são coisas feitas para mim, as pessoas conhecem-me e sabem o que podem escrever“.
Para um futuro ainda hipotético, desvenda algumas das colaborações mais inusitadas que gostaria de forjar, com artistas como Sam the Kid, Slow J ou Dino d’Santiago. Mas as suas referências musicais vão ainda mais longe. Para além dos estandartes do Fado — como Amália, Fernanda Maria, Fernando Maurício, Camané e Carlos do Carmo —, Sara vai além-fronteiras, até ao Brasil de onde havia regressado de umas merecidas férias há poucas semanas, mencionando Cartola, Tom Jobim, Elis Regina e Maria Bethânia. Pelo meio, ainda nos fala de Billie Eilish e Buika, antes de concluir: “Ouço tanta coisa… É muito importante para a criatividade enquanto artista; beber de outros sítios.“
Um dos factores que deu a conhecer a música de Sara Correia a um público mais amplo foi certamente a sua participação como mentora no programa de talentos “The Voice”, da RTP1. “Tinha muitas preocupações em mostrar o meu lado pessoal. Achava que tinham de gostar de mim pela minha arte e não da pessoa que sou, mas descobri que isso não é verdade.” No final, dar-se a conhecer às pessoas fê-la soltar muitas das amarras que tinha e sentir-se não só mais livre e tranquila, como também mais próxima do público.
Para alguém tão habituada a cantar em casas de Fado, onde a proximidade do público é mais do que meramente metafórica, levar essa intimidade para grandes concertos pode ser um desafio. “Na casa de fados, cantamos ao ouvido das pessoas. No concerto é como se estivesses a cantar para o céu.” No entanto, uma longa jornada de concertos no estrangeiro redobraram a sua certeza na sua arte, mesmo com a barreira linguística. “Algumas pessoas disseram-me que nunca tinham sentido aquelas emoções. É por isso que o Fado é tão mágico e místico. Adoro cantar para pessoas que nunca ouviram Fado.“
Dificilmente encontraremos alguém que nunca tenha ouvido Fado nos próximos concertos que a fadista dará nos Coliseus — dias 9, 10 e 11 de Março em Lisboa, e dia 22 do mesmo mês no Porto. Foram esses espectáculos um dos motes desta entrevista com Sara Correia e, por um feliz acaso, foi precisamente no dia em que a gravámos que se anunciou o esgotar de todas as datas. Sobre esses concertos, Sara mantém a surpresa e a expectativa. “Para ser especial, tenho de ter as pessoas comigo“. Da nossa parte, mal podemos esperar para assistir a mais uma aclamação de Sara Correia, de Chelas para o resto do mundo.