Entrevista. Sofia Saldanha: “Miguel Torga era um homem com um grande sentido de justiça social”
A seguinte entrevista foi originalmente publicada na página do “Jornal, Os Mirandelenses”, jornal regional do concelho de Mirandela.
“Vou e Venho, memória de Miguel Torga”, da documentarista Sofia Saldanha e comissariado por Ilídio Marques para o projeto de programação em rede “Palavras Cruzadas”, trata-se de um documentário sonoro com um desenho de som simples, mas que não engana e vem, precisamente, ao que promete. Nas palavras da própria documentarista, “mostrar Torga pelos olhos de quem o conheceu.” Não há narrador, não há entrevistas a especialistas da sua obra nem análises formais sobre quem foi Miguel Torga. É, antes, “um documentário sobre a relação que as pessoas de São Martinho de Anta têm com ele” resgatando, dessa forma, memórias populares que recordam o poeta enquanto homem, médico, ser social e, até, como agente de descentralização de uma pequena terra transmontana que o poeta colocou no mapa.
Saltamos, logo, de forma directa para os relatos dos populares e estes não poderiam ser mais genuínos e sinceros, oscilando entre o lado bastante humano, simples e sensível de Miguel Torga — que faz o que pode pelas pessoas no sentido de ajudar — e o seu lado mais tímido, distante, de personalidade vincada e não muito simpática, que não aprecia “rebanhos sociais”. Tal como a documentarista salienta, “Miguel Torga não é consensual”. Também relembra, “era um homem com um grande sentido de justiça social e com orientações políticas muito definidas. Ora isso não agrada a toda a gente, nomeadamente a quem está em lados políticos opostos.” Leia a entrevista do “Jornal, Os Mirandelenses” à documentarista Sofia Saldanha.
Como correu a sua residência artística?
Correu bastante bem, mas fiquei com pena de não ter sido uma residência de vários meses, com mais tempo passado em São Martinho de Anta. Isso permitiria ter gravado uma maior diversidade de histórias e vozes. Não é que eu quisesse fazer um documentário mais longo, mas acho que estes registos são muito importantes.
Como foi o processo de recolha e selecção dos depoimentos populares acerca de Miguel Torga?
Houve uma chamada pública feita através de cartazes e nas redes sociais. Mas não foi muito eficaz, o que é compreensível. A partir do momento em que comecei a fazer entrevistas, foram-me sugerindo mais nomes e os próprios entrevistados fizeram alguns desses contactos. O Padre Óscar, o pároco de São Martinho de Anta, também foi uma ajuda preciosa.
Foi mais fácil ou mais difícil do que o expectável? As pessoas mostraram-se bem receptivas?
Não achei, sinceramente, que iria ser fácil. Mas correu melhor do que esperava. Algumas pessoas foram receptivas. Outras não. O que acho é que ficou muita coisa por contar. E por isso é que digo que teria sido benéfico ter passado mais tempo em São Martinho.
Curioso que todos os depoimentos apresentados oferecem uma visão mais pessoal e bem crua, lapidada, do homem que foi Miguel Torga. O documentário não enveredou por uma análise formal, institucional do poeta e da sua poesia. Era esse o lado que faltava figurar num possível documentário? Ouvir o lado popular de São Martinho de Anta que o conheceu?
Sim, essa era a ideia. Era mostrar Torga pelos olhos de quem o conheceu. Por exemplo, não estava sequer a pensar incluir poesia de Miguel Torga no documentário, mas inclui, porque alguns dos entrevistados fazem citações espontaneamente. É lindo.
É audível a integração de elementos sonoros ligados à natureza. Foi consciente essa integração? Queria também deixar esse lado no documentário?
Sim. É muito simples o desenho de som desta peça, tinha que ser simples, o importante são as vozes. Mas é bom conduzir o ouvinte e levá-lo a determinados ambientes, ajuda a imaginar. Nunca me passou pela cabeça usar música, nem pensar. Só se fosse música original que estivesse em concordância com os sons dali daquele lugar.
Porquê a opção de um documentário sonoro?
Foi o desafio que me foi lançado. Eu trabalho nessa área, não faço vídeo ou cinema.
No fundo, trata-se de um documentário bem incisivo, bastante cru e sem grandes floreados à volta. Vai directamente ao que promete e ao que importa, o relato da população de São Martinho de Anta. Era esse o objectivo?
Sim, este documentário não é só sobre Torga, é um documentário sobre a relação que as pessoas de São Martinho de Anta têm com ele. Para mim, ficou tudo definido na primeira entrevista. Saí de lá e pensei: isto vai ser um documentário clássico, no sentido em que não há narrador, não há explicações, o que as pessoas contam já tem tudo o que é preciso para que a narrativa flua naturalmente. Claro que eu sabia que havia coisas que eram importantes e que não podiam ficar de fora, portanto fui adaptando as perguntas para ter respostas a isso: o percurso de vida, papel que teve em São Martinho e a relação com a família, entre outros aspectos.
O depoimento mais curioso é o da criança que, embora não o tivesse conhecido, vai ouvindo falar do poeta e simboliza uma ponte com as gerações futuras. Por outra via, transmite como as novas gerações o percepcionam e se ainda o sentem vivo. Era esse o objectivo com a integração desse depoimento?
Era sim. O Salvador aparece por acaso. Eu estava a entrevistar o avô, o Sr. Mário, e ele estava no fundo da sala, ao pé da porta, muito atento, e eu chamei-o para a nossa beira. Ele disse-me logo que o Miguel Torga não se chamava Miguel. Percebi que ele sabia algo sobre Torga, e perguntei-lhe se o podia entrevistar. Foi uma conversa muito informal, aliás, como todas. Quando parto para um trabalho, não sou nada rígida na minha abordagem, deixo que as coisas aconteçam. A rigidez é inimiga da criatividade.
Há uma preocupação, por parte dos locais que o conheceram em passar o legado de Miguel Torga para as gerações futuras?
Há sim, sem dúvida. Mas o Miguel Torga não é consensual. Há algumas pessoas que têm um certo receio de que essa memória se perca, mas também há outras que não pensam nisso. O Miguel Torga, para alguns, é um herói, para outros, era só um homem dali, que até nem era assim muito simpático.
Consegue dizer qual foi a sua primeira porta de entrada para conhecer melhor a poesia de Miguel Torga? Descobriu-o mais afincadamente agora ou já nutria alguma admiração pelo poeta?
Desde que me lembro de começar a ler poesia, li o Torga. Li partes dos diários, li os “Contos da Montanha”, li muitas coisas, mas não tudo. Nunca me tinha debruçado sobre ele desta maneira mais pessoal. Quando faço um trabalho deste género, entro com o coração antes de entrar com a razão. Vou procurar as coisas que estão para além das palavras. Passei muito tempo na Senhora da Azinheira e por ali por aqueles montes, pelos lugares do Torga. Tenho que sentir a energia das coisas e deixar-me ir. É um trabalho emocional, e, por isso também, sinto que agora aquela energia, aquelas pessoas fazem, também, parte da minha história como ser humano, e o Torga também, evidentemente.
Na recolha das memórias colectivas dos populares, houve algo que tivesse acrescentado à ideia que tinha do poeta? Ou até modificado essa ideia em alguns aspectos? A esse nível, é interessante como o documentário oscila muito entre o lado bastante humano, simples e sensível de Miguel Torga — que faz o que pode pelas pessoas no sentido de ajudar — e o seu lado mais tímido, distante, de personalidade vincada que não aprecia muito “rebanhos sociais”. Já estava à espera dessa imagem?
Aprendi muito sobre Torga, sobre a obra e sobre a sua vida na intimidade. Até aqui, a minha relação com Miguel Torga era distante, era a relação com os livros, agora já é outra mais familiar.
Há uma outra parte bastante importante que ficou, igualmente, ressalvada — a consciência social de Miguel Torga. Fala-se do que conseguiu para São Martinho de Anta. Notou que os populares pensam isso? Que São Martinho de Anta ficou no mapa devido a Miguel Torga? Por exemplo, há um depoimento que diz, por exemplo, que antes havia médico e enfermeiro todos os dias e, agora, há só a farmácia. Os locais sentem-no, também, como uma peça chave para uma descentralização de recursos e serviços?
Sem dúvida. Mas falar de Torga é também falar de política. Era um homem com um grande sentido de justiça social e com orientações políticas muito definidas. Ora isso não agrada a toda a gente, nomeadamente a quem está em lados políticos opostos.
Há mais datas de apresentação para o documentário sonoro?
Espero que sim, vamos trabalhar nesse sentido.
Qual foi o feedback que teve nas duas primeiras apresentações?
Foi bom. Apresentar um trabalho assim em sala é sempre muito compensador. E também permite alguma discussão e troca de ideia e aprender com esse retorno.