Entrevista. Tiago Pereira: “Quanto mais vais conhecendo o país, mais tens a noção de que não o conheces”
“Ninguém tem tantas dúvidas sobre o que é a “Música Portuguesa a Gostar dela Própria” (MPAGDP), com todos estes projetos, do que eu”, revela Tiago Pereira à Comunidade Cultura e Arte (CCA).
A verdade é que já há muito que não podemos olhar para a MPAGDP apenas como algo que se destina a reunir canções de cariz etnográfico, é muito mais do que isso. Passando por camadas como “A Música Ibérica A Gostar Dela Própria” ou “A Música Cigana A Gostar Dela Própria”, falamos sobre humanidade, sociedade, reunião de pessoas, gerações e culturas e, sobretudo, aquilo a que Tiago Pereira chama de escuta ativa. Não parte para uma gravação com uma ideia formatada do que vai querer ouvir, é preciso esperar, é preciso deixar a pessoa desabafar primeiro, e depois aguardar por aquilo que tem para dar. Quer seja uma música ou poema popular, Tiago acha que toda a gente tem algo para dar e quer que estas pessoas, muitas vezes de lugares mais isolados, se sintam estrelas, promovendo a espontaneidade, uma vez que “todos nós, independentemente das nossas origens — com todo o nosso credo, etnia, nacionalidade, linguagem, o que for — cantamos e nascemos logo a cantar quando choramos.”
A MPAGDP conta com uma aplicação gratuita (aqui) para dispositivos móveis, que assinala o que gravou na Península Ibérica, cuja pesquisa funciona por categorias: “música, gastronomia, artesanato, poesia popular, paisagens sonoras, dança e também por instrumentos musicais, nomes de artistas”, avisa Tiago Pereira. Estreou também este ano o filme “Onde está o Zeca”, a convite do Festival Política, essencialmente sobre as posições políticas na música ou na indústria da música. A Comunidade Cultura e Arte falou com Tiago Pereira sobre tudo isto e relembra-nos que, quanto ao interior, este não é uma geografia, é um estado: “temos, por isso mesmo, de pensar que o interior é um estado de abandono”.
Dedicas-te, em primeiro lugar, à recolha de expressões musicais de raiz popular, mas apanhas, também, as suas histórias, ou seja, as histórias das pessoas que cantam estas canções. Consequentemente, vais afirmando que o teu projeto, A Música Portuguesa a Gostar dela Própria (MPAGDP) é, também, sociológico. A pergunta é a seguinte: a captação deste enquadramento sociológico, as histórias que envolvem estas canções, também são importantes para entendê-las melhor?
É uma pergunta complexa porque acho que, em primeiro lugar, não faço recolhas, há muito que deixei de usar essa expressão. Gravo pessoas e as coisas vêm depois, ou seja, tenho o objetivo de gravar o que considero uma memória coletiva de um tempo e a tradição oral daí resultante, mas sempre a partir do ponto de vista das pessoas. Gravo momentos com seres humanos que me podem dar, por vezes, canções, falar sobre o seu trabalho no artesanato, sobre as suas histórias de vida ou, então, não me dizem nada, mas como gravo pessoas, não consigo não as gravar. Nunca tenho algo combinado, nunca deixo de gravar a pessoa se noto que não me vai dar aquilo que quero ou porque não tem nada para me dar. As pessoas têm sempre qualquer coisa para dar, quanto mais não seja ficarem a olhar para uma câmara e gravarmos a paisagem sonora que a rodeia. Isso é para demarcar a MPAGDP de tudo o resto, até porque já tem tantos anos, que acabou por se transformar em várias coisas. No princípio tinha um objetivo e esse objetivo, rapidamente, começou a ganhar corpo e estrutura. Hoje em dia, será muito complexo, com todas as camadas que a MPAGDP tem, dizer que faz recolhas.
Falas muito da escuta ativa, que no momento da gravação é muito importante escutares, ouvires as pessoas e as suas histórias. O que mais te preocupa na gravação dos vídeos? Quando agarras na câmara para filmar qual é a primeira preocupação?
Gravar pessoas consiste em fazer com que fiquem bem, que a imagem e o som tenham qualidade porque queres enaltecê-las. Estás sempre a gravar pessoas que dizem que não estão bem, que têm claramente problemas de autoestima porque ninguém lhes dá atenção. São, na maior parte das vezes, velhos, vivem em lugares isolados ou, então, fora dos meios, como a comunidade cigana que, como sabemos, infelizmente, ainda sofre de preconceito. Queres, por isso mesmo, que a imagem dê destaque à pessoa e a faça sentir-se como uma estrela. Toda a gente tem uma história para contar e queres que todos sejam vistos no seu melhor mas, ao mesmo tempo, tens de criar uma empatia, tens de conseguir que estejam dispostos a darem-te algo. Isso é complicado, por essa razão usas, sempre, o mecanismo de montares a câmara e criar um espaço — pode ser um teatro, uma pintura — e dizes à pessoa que pode ser o que quiser.
Daí dizermos que gravamos pessoas reais porque criamos dispositivos para gravá-las na sua realidade. A escuta tem de ser ativa porque, com a experiência, vais entendendo que se apareces no meio do nada, numa aldeia, num sítio em que a pessoa vive isolada, está viúva ou sozinha, a primeira coisa que vai acontecer, na maior parte das vezes, é a pessoa precisar de desabafar porque não fala com ninguém. A primeira coisa que vai fazer é contar-te as suas desgraças, as suas doenças, os medicamentos que toma e por aí fora. Vai contar-te os problemas, a saudade que tem da mulher ou do marido e todas essas coisas. Essa pessoa vai desabafar até ao ponto de chorar e, de repente, liberta-se de toda essa mágoa. Só a seguir é que vai dizer o poema, a canção e ficar liberta e solta.
Não podes gravar alguém com uma ideia formatada do que queres ouvir. Tens de estar disposto a ouvir por ouvir. Isso é dificílimo porque, em primeiro lugar, tens de te abandonar a ti próprio, tens de estar disposto a esqueceres-te de ti para apenas ouvir o outro. Não podes interferir e, quando as pessoas ficam em silêncio, tens de aceitar o silêncio delas até porque, naquele momento, podem esquecer-se das coisas mas, depois, é mágico quando observas a memória a operar e a regressar do nada. Tudo isto é muito complicado porque exige a tal experiência, o tal lado empírico que só funciona se gravares muitas vezes. Tens de criar um equilíbrio entre o lado empático, o lado da escuta ativa e, ao mesmo tempo, o lado da tecnologia, da gravação para que as pessoas fiquem mesmo bem. Por essa razão é que, por vezes, demoras horas à procura de um sítio para gravar e depois, quando o encontras, acabas por ficar muito tempo com a pessoa até conseguires que esse dispositivo funcione.
Consideras, de alguma forma, que estas pessoas e as suas histórias estavam relegadas ao esquecimento? Que já não havia tanto interesse em captar o que teriam para ensinar e, de alguma forma, construir uma espécie de arquivo com o que teriam para dizer? Correríamos o risco de perder toda essa tradição e cultura?
Gravo pessoas que, na sua maioria, são mais velhas e têm práticas que, muitas vezes, estão para acabar, outras não. Mas, por vezes, estão no limite das suas capacidades e representam, obviamente, um tempo. Além de representarem um tempo, representam uma forma de estar na sociedade que, muitas vezes, não é vista. Têm, por isso mesmo, uma posição, perante elas, sempre negativa. Estas pessoas acham que aquilo que sabem, mesmo que seja cantar, ou o que for, não serve para nada e não tem interesse porque, obviamente, sofrem de todos os preconceitos possíveis.
Em primeiro lugar, existe o idadismo: são pessoas mais velhas a quem não se liga, por inerência. Vivem, na maior parte das vezes, em lugares perdidos onde quase ninguém passa ou onde têm contacto, apenas, com os seus vizinhos. O que a MPAGDP faz quando vai gravar essas pessoas é tentar dar-lhes, sempre, um reforço positivo para que passem a sentir que o que sabem é de grande valor. Tentamos, sempre, transmitir isso através dos vídeos e do áudio. Temos sempre cuidado ao gravar as pessoas e, por essa razão, queremos devolver-lhes a dignidade que sentem que já não têm porque quase ninguém lhes liga nenhuma. Outras vezes, porém, estas pessoas já descobriram a sua importância porque alguém fez esse papel antes de nós.
Ontem fomos gravar, por exemplo, uma senhora de 80 anos na aldeia de Benfeita, no concelho de Arganil, onde metade da população é estrangeira. Uma estrangeira mais velha foi ter com uma pessoa que sabia muitas cantigas e que, há 30 anos, tinha criado um grupo no centro de dia, e pediu-lhe para ensinar as canções às estrangeiras: ela ensinou as canções. Essa mesma pessoa acabou a conversa, quando explicava a história, a dizer que pouco sabia, mas a verdade é que o que sabia e sabe, soube-o transmitir às estrangeiras que, agora, têm um grupo onde cantam estas mesmas cantigas. Alguém, no entanto, teve de lhe dar o reforço positivo para ela perceber que o seu trabalho tinha mérito. Tem de ser sempre assim porque vivemos numa sociedade em que, cada vez mais, o cantar não é valorizado, é sempre visto de uma forma profissional. Tens concursos para cantar, tens sempre esta questão da competição.
Quando não tens a competição, há a questão do todo que está por trás, além da prestação final em si mesma: há o facto das pessoas terem de estar maquilhadas, afinadas, além da definição do que é cantar bem ou não. O ato de cantar, das pessoas poderem cantar só porque sim, para si próprias, é cada vez mais estigmatizado: aponta-se o dedo e é porque a pessoa está bêbada ou é maluca. Estas pessoas não são valorizadas apenas porque sim, por si próprias. A imprensa publica sempre pelo lado exótico, nunca é pela raiz. Nunca é, exatamente, porque aquela pessoa canta só por si, é sempre porque veste uma camisola amarela ou porque tem mais de cem anos. Tem de se encontrar, sempre, qualquer coisa que torne isso exótico para que as pessoas possam ver e, por isso, deixamos de olhar as coisas pelo seu lado espontâneo.
Essa é a guerra da MPAGDP, perceber que todas estas pessoas têm uma história para contar, que todas elas são uma estrela, e que é preciso valorizar essas pessoas pelo simples facto de existirem. Isso é o que a MPAGDP quer fazer, olhar para toda a gente como seres reais que têm coisas boas e más, mas que são iguais a todos os outros. São pessoas que andam nesta vida que é finita e que, às vezes, também se sentem perdidas, tal como qualquer pessoa. Fazemos a sinalização, descobrimos esta gente e dizemos: “Esta pessoa tem isto para contar”. Proporcionamos um espaço que pode ser um quadro, uma pintura ou um enquadramento, e esta pessoa vem a este sítio e conta, narra e diz, “quero dizer isto ao mundo, é isto que tenho para dizer”, e gravamos. Às vezes parece que isto é simples, mas de simples não tem nada.
Uma coisa interessante que focaste nas tuas respostas: o facto de estarmos habituados, nos programas, a ver aquelas pessoas com uma produção toda atrás, bem vestidas, as vozes muito bem afinadas, tudo muito bem organizado. Mas este tipo de trabalho, de ir ao encontro de expressões artísticas no seu estado mais espontâneo, faz-nos lembrar que, acima de tudo, cantar é humano, ou seja, inerente ao ser humano.
É isso que nos torna transversais, de certa forma. Todos nós, independentemente das nossas origens — com todo o nosso credo, etnia, nacionalidade, linguagem, o que for — cantamos e nascemos logo a cantar quando choramos. A MPAGDP quer gravar coisas que não sejam um produto. Quer mostrar que a música e a cultura popular não têm de ser um produto e que nem tudo tem de ser embalado e vendido para ser valorizado. Há coisas que podem ser valorizadas exatamente porque, apenas, são o que são. Ter este ponto de vista é uma forma de poder criar paradigmas sociais diferentes e que se baseiam na partilha e na escuta: no facto de que podemos estar uns com os outros, aprender, sempre, uns com os outros. Perceber que escutar não é apenas uma questão física, mas antes um processo de empatia para com o outro. A escuta acontece quando nos apagamos e diminuímos na nossa existência, apenas para ouvir o que o outro tem para dizer.
Isso é muito raro acontecer porque, normalmente, ouvimos as pessoas com as coisas já preparadas. Temos esta tendência de querer ouvir o outro, para o outro nos dar as respostas às nossas dúvidas, mas nunca estamos preparados para somente ouvir. Por isso é que é tão complicado quando se tenta interromper a pessoa mais velha, porque não está a dizer aquilo que se quer que se diga. Ficam depois perdidos porque, normalmente, as pessoas mais velhas têm uma narrativa própria. Elas vão dizer as coisas, mas é preciso ter tempo para perceber quando é que as vão dizer. No nosso trabalho, quando vamos gravar, encontramos muitas vezes pessoas que têm demência, que estão num limiar. Por esse motivo é preciso ter a noção de que ouvir é uma coisa que tem de ser ensinada. A escuta devia ser ensinada nas escolas, mas falo em aprender a escutar, mesmo, tudo o que nos contam. Não fazemos julgamentos, não interrompemos, por isso criámos as nossas regras.
Depois de tanto tempo a ouvir dizer que o nosso projeto nunca poderia ser validado pelas academias, que não podia entrar nas ciências sociais porque não tinha método, criámos os nossos próprios métodos, com imensos itens. Ouvimos sempre a pessoa e nunca interrompemos. Se a pessoa se esquece de qualquer coisa, esperamos, não vamos interrompê-la. Publicamos sempre as gravações no dia em que as gravamos e perguntamos, sempre, se a pessoa andou na escola. Temos um leque de itens que vamos respeitando e aplicando, porque percebemos que é essencial para o nosso trabalho. Fomos criando, assim, esta forma de estar com as pessoas. É muito difícil, parece muito simples, mas não é. O processo de gravar pessoas, além de ser empírico, obriga a que se tenha de estar, sempre, a pensar sobre ele, a fazer perguntas, a interrogá-lo sobre o que é, porque não se trata de chegar lá e carregar numa câmara. Há toda uma lógica em perceber como gravar tecnicamente as coisas bem, como criar empatia com as pessoas e em perceber o que é que elas vão dizer ou não.
Ao mesmo tempo que se está ali, em tempo real, para a pessoa, há que perceber como é que se vai dirigir a gravação sem nunca se interferir e continuar, sempre, com uma escuta ativa. Isso é muito difícil, perceber que as pessoas precisam e, por vezes, têm muita mágoa dentro delas. Se quiseres ouvi-las, primeiro têm de mandar tudo para fora, de chorar e, só depois de chorarem, é que, efetivamente, vão contar as coisas que vais gravar. Essa primeira parte não se grava porque é demasiado íntima e não é isso que interessa. A pessoa, no entanto, precisou dessa catarse para chegar ao momento em que vais ter a escuta. Isto tudo são coisas complexas.
Vi o vídeo gravado com a Meta, em que surge a interpretar o Acordai. A tradição guarda sempre, em si, algo de contemporâneo?
A tradição é sempre contemporânea, acompanha sempre os tempos. Esse é o tal mito do qual, muitas vezes, os antropólogos falam, o mito do genuíno. Isso não existe até porque, hoje em dia, somos bombardeados com informação por todo o lado. Ter a ideia de que o velhinho que canta, desde pequeno, a música que aprendeu com a mãe, não vai mudar o tom ou não vai ser influenciado por todas as coisas que ouve — seja a rádio, a televisão, a novela, o que for — isso é completamente impossível. A partir do momento em que essa pessoa sabe essa música, hoje em dia, com tudo o que está à sua volta, essa mesma música já passa a ser contemporânea. Os artistas, depois, fazem o que quiserem. Isso também faz parte das tais regras da MPGDP, porque andamos constantemente à procura de gravar o maior número de versões possíveis da mesma canção, até porque duas pessoas nunca a cantam da mesma maneira.
Tentamos sempre ir atrás das pessoas que nos perguntam: “Posso usar este som? Posso usar esta gravação?”. Gravamos essa música transformada por essas pessoas e, por isso mesmo, as pessoas vêm ter connosco como, por exemplo, a Meta, exatamente para gravarmos essas coisas. Não gravamos só velhos, só o que está para desaparecer, podemos aprender muito sobre o que está a acontecer no momento. O que gravei há dias acerca da tal senhora que ensinou cinco estrangeiras a cantar música tradicional, faz-te perceber que a tradição está a ser mantida numa aldeia, não pelos netos, não pelos filhos, mas sim por estrangeiras que vieram aqui parar, que aprenderam a falar português e que agora cantam aquelas músicas. Essas músicas são as que eram cantadas na aldeia há 60 e 70 anos, mas agora são estrangeiras que estão a cantar e que, provavelmente, vão ensinar aos seus filhos que também já vivem em Portugal e já falam português. Isso vai ser perpetuado de uma maneira da qual nem suspeitávamos.
É sempre possível promover um encontro entre gerações.
Claro, é sempre o que se procura, que haja um encontro intergeracional. Lembro-me de uma vez em que fiz uma entrevista a um homem que sabia muito sobre a tradição oral do Algarve e falava muito sobre isso mesmo: criamos caixas para pôr os mais velhos. Pomos os mais velhos numa caixa, pomos os mais novos noutra e esses mundos não se encontram. Como se pode pensar que é importante respeitar o passado e entendê-lo para se construir um futuro, se esses dois mundos não se encontram no presente? É muito importante pensarmos nisso, porque se não promovermos este encontro entre gerações, se não estimularmos o neto, o avô, ou algo que o neto possa aprender com o avô, então tudo se perde, além de se perder o seu sentido.
Tens trabalhado também com a música cigana, a “Música Cigana a Gostar Dela Própria”. O que mais te impressionou e agradou nesse projeto? O que é que aprendeste com o contacto com a música cigana?
Aprendi muito. A produção foi das coisas mais importantes que aprendi, a forma como a comunidade cigana interpreta os vídeos. Isso é muito interessante, porque quando começámos a fazer a “Música Cigana A Gostar Dela Própria” usávamos o mesmo método utilizado para a MPAGDP: gravávamos as pessoas em vários lugares, de forma acústica. Percebemos que, muitas vezes, eles não queriam ser gravados em qualquer lugar. Havia pessoas dentro da comunidade cigana, nomeadamente ligadas mais à imagem como fotógrafos, que eram muito críticos do nosso trabalho. Gostávamos de entender o porquê e um dia percebi.
Quando em 2022, a convite do Festival Política, fiz “A Música Invisível”, o documentário que juntava todos os grupos da “Música Cigana A Gostar Dela Própria”, o filme teve de ser produzido. Peguei em todos os grupos que tinha filmado — fiz correção de cor, mistura, alguma produção — então, os mesmos que criticavam o lado amador dos vídeos começaram a dizer o contrário, que o filme era espetacular. Percebi a razão. A comunidade cigana tem a ideia de que a música tem de ser produzida. Talvez tenha a ver com a própria lógica da música deles porque, em Portugal, não se trata exatamente de flamenco, tem mais a ver com rumbas e tangos, muitas vezes com ligações à música eletrónica. Por aí se vê que tem de ter produção, uma outra dinâmica. Um vídeo de alguém a cantar e a tocar viola na rua não é bem um bom vídeo para eles, têm de sentir a produção.
A MPGDP estendeu-se também à música Ibérica. Podes falar um pouco deste projeto? Já tem uma aplicação.
A aplicação foi lançada no dia 8 de junho, mas sim, a “Música Ibérica A Gostar Dela Própria” surgiu em 2012, 2013 quando fui para a Galiza gravar pela primeira vez, a convite de um coletivo, e gravei lá 40 a 50 vídeos de pessoas mais velhas — entretanto, já morreram quase todas. Tanto em Portugal como em Espanha esta tradição etnográfica estava muito ligada à academia mas, por vezes, era preciso teres essas mesmas gravações. A MPAGDP, quando começou, teve sempre a ideia de democratizar o acesso a todas estas gravações. Quando sou, então, convidado para ir gravar para a Galiza era neste sentido, de poder disponibilizar todas as gravações no mesmo sítio, de forma gratuita, porque as outras que existiam estavam espalhadas por várias coleções, não havia nada reunido e era complexo. Quando vou fazer isto na Galiza, volto a fazê-lo em Castela e Leão, Sanábria e em Salamanca, mais tarde, em 2016. Volto a fazê-lo em 2018, em 2020 e em 2022.
Há muitas coisas que são comuns em Portugal e em Espanha na música, quer em termos melódicos, quer nas próprias letras, no entanto, nunca houve nenhum etnomusicólogo a gravar e a compilar nos dois sítios. Não temos uma grande coleção que possa servir para fazermos as comparações. Temos de ouvir de um lado e do outro e, no fundo, tudo isto foi feito no sentido de reunir as coisas. Este aparte é muito importante: ninguém tem tantas dúvidas sobre o que é a MPAGDP, com todos estes projetos, do que eu. É um projeto muito complexo e, de certa forma, existem muitos equívocos acerca do que se trata: tem a ver com o facto de existirem muitas camadas e, por vezes, serem elas próprias complicadas para mim. Contradigo-me em muitas alturas, fico preso nos meus próprios pensamentos e, durante o tempo de duração do projeto, passei por várias etapas, por vezes percebendo que estava a ir pelo caminho errado, mas agora tenho as ideias mais claras na minha cabeça.
Não quer dizer que estejam completamente definidas, mas a verdade é que tentamos gravar a pessoa real tal como ela é, o mais natural possível, extraindo todos os dispositivos que têm a ver com a produção e a industrialização. Tentamos, sempre, encontrar a música na sua forma mais natural possível, seja porque se vai gravar uma pessoa que está a passar a ferro e está a cantar naturalmente, seja porque se vai gravar um grupo conhecido, mas que está a gravar para ti de uma forma completamente nova, surpreendente, tal como aquela gravação incrível dos Ornatos Violeta, no Coliseu, em que estão a ser gravados na plateia de forma acústica. É nosso objetivo tornar esse processo mais natural, dando sempre sentido às pessoas.
Não esquecemos o nosso papel para a humanização, vendo o outro como uma pessoa real, tal como é, com as suas coisas boas e más. Por isso interessava-nos expandir não só a nível nacional, mas também para Espanha, e ter uma aplicação móvel que qualquer pessoa que chegue à Península Ibérica possa ter no seu telemóvel. Que essa pessoa possa ter um mapa em que diz: “gravaram, naquela rua, uma senhora que sabe de gastronomia ou que sabe músicas religiosas”, por exemplo. Pode-se procurar na aplicação por “histórias de vida”, ou “poetas”. Ter esse motor de busca é, de facto, muito importante porque completa a ideia de que a MPAGDP é e será sempre um processo num contínuo, ou seja, em desenvolvimento.
Grande parte deste espólio cultural — lendas, contos, canções – provém de uma linha de transmissão oral e, também, porque estas pessoas souberam decorar estas lendas, contos e canções. Sabemos que, antes do 25 de Abril, a taxa de alfabetização em Portugal era extremamente baixa. Achas que este processo de decoração era, também, uma forma destas pessoas se sentirem mentalmente ativas?
Essa é uma das razões pelas quais perguntamos, sempre, às pessoas qual é o seu grau de escolaridade, para tentarmos perceber se há uma relação direta entre as pessoas que sabem mais coisas porque as guardaram, porque não andaram na escola e não tinham outras formas de registar as coisas, ou se não. Mas, basicamente, o que acontece é que, hoje em dia, a memória é um músculo. A memória funciona como algo que se tem de praticar. Se não praticares a memória, não vais conseguir memorizar muitas coisas e, atualmente, temos o Google e outras ferramentas que fazem com que a maior parte das pessoas não precise de memorizar como antes.
Creio que estas pessoas memorizavam porque não tinham outra coisa. Não havia, na maior parte dos casos, rádio — mesmo que já existisse, muita gente não tinha — por vezes não tinham televisão e, isto, era uma forma das pessoas praticarem a sua memória. É preciso não esquecer, no entanto, que guardavam aquilo tudo na cabeça porque praticavam todos os dias. Muitas vezes ouço dizer-se: “Um músico, para ser bom, tem de tocar todos os dias.” Logo a seguir, oiço: “Mas os músicos nas aldeias, lá no interior, tocam mal”. Então pergunto: “Se estes músicos que vocês dizem que tocam mal, tocam todos os dias, ou são mesmo maus músicos ou, então, não sei o que se passa.” A verdade é que estas pessoas praticavam.
O trabalho delas, tal como as danças e os cantares funcionavam, sempre, como uma cola social na comunidade. Iam para o trabalho e cantavam, tal como o faziam no regresso a casa e aos serões. Não existiam outras formas de entretenimento como hoje. Atualmente há toda uma panóplia de formas para passarmos o tempo mas, nessa altura, isso não existia, portanto, elas praticavam. A memória funcionava devido a essa prática constante. Quando vamos falar com alguém e essa pessoa sabe tudo de cor, talvez seja porque, durante 30 anos, estiveram sempre a praticar aquilo e a cantar as mesmas canções. Foi muito tempo de prática e isso permitiu-lhes manterem as coisas na cabeça.
Há algum tempo falei com um senhor de um rancho folclórico, estávamos a falar de marchas de carnaval, mas a dada altura disse-me que os ranchos nasceram porque era uma forma dos mais jovens escaparem ao controlo dos pais. A arte tem, sempre, esse cunho de nos rebelarmos contra algo?
Também era, acima de tudo, uma forma das pessoas que não tinham posses ou que viviam longe dos grandes centros urbanos poderem aprender música como, também, poderem sair da sua própria aldeia: iam com o rancho, com a filarmónica e, assim, podiam sair da sua terra. O processo de criação funciona para estares a descobrir coisas em ti e para, de certa forma, te manteres atento e te sentires estimulado. A partir do momento em que começas a criar algo, ou queres mesmo muito continuar, explorar, ou, então, vais criar outra coisa qualquer. Mas é algo que te está sempre a estimular, está sempre a enriquecer-te: estás, sempre, a receber com essa criação, mesmo quando crias para ti próprio. Acho que isso é muito interessante.
No filme Onde está o Zeca, o Nastio Mosquito refere que um dos nossos erros é achar que Portugal e os Portugueses são a mesma coisa. Concordas?
Concordo tanto, que foi o que vi com as estrangeiras que mencionei há pouco. Portugal e os portugueses não são a mesma coisa: aquelas estrangeiras vão manter vivas as tradições dos portugueses, quando elas nem são portuguesas. Logo aí se percebe o que é que o Nastio quer dizer. Em relação à Língua Portuguesa, obviamente que há uma questão autoritária, de certa forma, de posse, quando a Língua Portuguesa está presente em tantos outros sítios, em tantos outros lugares. A Língua Portuguesa está viva, é isso que interessa.
No início do filme, o Gil Dionísio diz uma coisa interessante, que a liberdade é estar no sítio certo e poder, de alguma forma, fazer a mudança. Quando chegamos lá, no entanto, há este sentimento amargo. Destaca-se esta palavra amargo, como interpretas isso?
Isso vai sempre bater à questão de que há todo um trabalho político que tem de ser feito. O próprio Gil Dionísio tem um grande discurso sobre isso, de que ainda não sabemos, propriamente, lidar com as nossas emoções. Temos de trabalhar tanto em nós mesmos, que se torna difícil esta ideia da noção da liberdade, até porque a liberdade tem significados diferentes para cada pessoa. Há pessoas que nunca se sentem em liberdade, mesmo depois do 25 de Abril. Há muitas liberdades que ainda não são livres. É neste sentido que ele utiliza a palavra amargo, porque o privilégio é, exatamente, ter muitas ideias para mudar, mas não ter o corpo em causa. É, de facto, algo em que devemos pensar. Temos de ter uma grande consciência individual, antes de podermos pensar em liberdade.
O projeto tratou-se de uma coprodução com o “Festival Política”. Como surgiu a oportunidade de fazer este filme?
Deram-me carta branca. Já tinha feito com eles a “Música Invisível”, da música cigana, e convidaram-me para fazer um filme que fizesse sentido nas comemorações dos 50 anos do 25 de Abril e que, de certa forma, pudesse falar sobre a posição política na criação musical. A partir daí, já tinha tido muitas ideias diferentes e antagónicas mas, a partir de uma entrevista com o Gil Dionísio, a primeira entrevista feita para o filme, surgiu esta questão que ele colocou: o facto de estarmos, sempre, à procura de um Dom Sebastião e de alguém que nos salve, “Onde está o Zeca”.
Segui esse ramo e fui tentando discutir e perceber esta questão da pessoa que faz totalmente diferente, que se destaca, e o coletivo. Hoje, com uma certa distância, porque o filme já estreou há algum tempo, já me consigo abstrair mais da obra. Percebo que o filme é exatamente sobre isso, sobre todos os temas que agora nos assolam na sociedade: a imigração, a história da língua, o papel da mulher na música, todas estas questões. Temos sempre, no entanto, como assunto central, a questão do transporte da música, o facto de percebermos quando a música tem este poder de juntar várias pessoas em volta e essas pessoas terem o poder todo — isto quando a música não se intelectualiza. Por vezes, isso pode vir da tal pessoa que marca a diferença ou do coletivo. Qual é o papel dessa pessoa e qual é o papel do coletivo? Essa dicotomia está sempre presente no filme. Creio que, na verdade, o filme é sobre esta dicotomia.
Foi fácil reunir as pessoas para as entrevistas? Ainda foram bastantes.
Foram mais ou menos 33 pessoas, mas foi fácil. A MPAGDP conseguiu, com o tempo, solidificar o seu nome, o seu trabalho e o seu processo. Facilmente faziam a identificação com uma das várias camadas do projeto. Quando perguntava a alguém, as pessoas prontificavam-se para fazer parte.
Há uma parte do filme em que também falas do interior. Consideras que o interior ainda é esquecido? Que ainda existem assimetrias?
Creio que um dos grandes problemas tem a ver com a perceção do que é o interior. Essa parte do filme tem a ver com as minhas reflexões quer como artista, quer a nível pessoal. Esta preocupação com o interior e com as periferias constitui uma grande fase da minha vida agora e considero que o interior não pode ser visto como uma geografia. O interior não é uma geografia. Se formos falar em interior, este seria, então, Madrid que já está fora de Portugal. Temos, por isso mesmo, de pensar que o interior é um estado de abandono. Tem a ver com os lugares que estão fora dos grandes poderes de decisão e, assim, pode ser um bairro periférico de Lisboa, como uma aldeia perdida no centro, ou uma vila em Trás-os-Montes. O interior é, acima de tudo, um estado que revela muito sobre as atitudes, tudo o que tens à tua volta, sobre todas as questões políticas que também têm a ver com esta subida da extrema-direita, ligada ao facto das pessoas não se sentirem valorizadas, sem um papel relevante. Estão lá, mas as decisões são todas tomadas fora, por pessoas que não têm a mínima ideia dos contextos.
Tudo isto tem a ver com a forma como se vê o país. As pessoas podem perguntar: “Mas achas que conheces Portugal?”. Não, Portugal tem muitas camadas e, obviamente, será sempre difícil dizer ao lisboeta que não conhece Portugal, porque ele sabe que conhece o país numa camada ou duas, mas conhecer e percebê-lo nas suas várias camadas demora tempo. Quanto mais vais conhecendo o país, mais tens a noção de que não o conheces. Percebes que há muitas outras camadas que te estão a escapar, que tens de ir muitas vezes aos mesmos sítios, que tens de falar com muitas pessoas e de entender como é que as coisas funcionam por dentro, quer a nível estrutural, quer a nível cultural. Não é propriamente fácil.
Para se falar do interior nunca se pode falar em geografia, tem de se falar como as pessoas se sentem a viver nesses sítios longe dos poderes de decisão, a forma como se relacionam com aquilo que fazem, com a sua produção. Por isso é que as pessoas dizem: “Mas querem vir para aqui dizer como é que cultivo a minha terra, quando não fazem a mínima ideia do que é que isto é?” Torna-se complexo. O interior tem muito mais a ver com o amor eterno que as pessoas têm por aquilo que fazem nas suas vidas. Essa relação é verdadeiramente importante. O interior não é um lugar, é um estado.
O filme centra-se maioritariamente na indústria musical, vai buscar jovens emergentes, assim como artistas como o B Fachada, por exemplo. Acabou por estar exposta ali uma certa crítica à indústria musical?
Não é uma crítica, é mais uma análise. Fui buscar, de certa forma, pessoas que achava fundamentais para falarem sobre as posições políticas na música, porque são apontadas pela sociedade ou pela indústria como cantores de intervenção, tal como a Capicua, a Garota Não ou o B Fachada. Mas uma posição política, porém, é qualquer posição que intervenha no espaço público. Uma cena do filme que, para mim, é muito importante, é a cena do bom dia, a que afirma que dizer bom dia é fundamental. Como podes ter um bom dia se não o desejares? Teres essa noção é política.
É importante perceber, também, que todas estas pessoas que podem não ter uma ação direta na política, são também agentes de política. O B Fachada para mim é crucial. Conheço-o há muitos anos, fiz um filme sobre ele em 2008, e já colocava estas perguntas todas. O B Fachada tem uma noção muito forte do que faz. Tem um discurso muito coeso, bem preparado e muito bem entendido pelo próprio. Anda a pensar sobre todas estas questões da música há muito tempo e, por isso, tem a plena noção. É alguém que tem cuidado com a língua e, obviamente, dentro da indústria da música é dono dos seus próprios discos. Isso é uma grande posição política.
Quando és dono dos teus discos, não foi uma editora que pagou, ninguém pagou por fora, pagaste os teus discos. Trata-se de uma forte posição política que interessa analisar e perceber. Creio que é só uma análise do que é esta questão da música. Há muitos amadores, há muita música amadora e coletiva que importa e que, muitas vezes, não aparece em lado nenhum e que é relevante. Isso é o que a MPAGDP também faz, por isso, o filme tinha de ser plural para poder mostrar, exatamente, o trabalho desenvolvido pela MPAGDP.
Nas tuas redes sociais escreveste o seguinte: “Em 2004 era muito fácil e acessível ter uma câmara, um bom microfone e começar a gravar e a produzir. Que para ter todo este destaque há um enorme trabalho a ter-se. Por outro lado, as imagens que produzo hoje estão bem longe de qualquer uma que já produzi no passado.” O que querias dizer com isto?
Por muitas razões. Essa publicação tem a ver com o nosso processo que está sempre em contínuo, ou seja, quando a MPAGDP começa com uma câmara Mini DV e depois vai atravessando a evolução da tecnologia. Antes a tecnologia era mais cara, não era acessível a toda a gente e não havia a indústria videográfica que existe hoje, uma vez que existem câmaras para todos os gostos, para todos os preços e que filmam muito bem. A questão é que há uns anos, até a um determinado momento, ia passando por várias câmaras, experimentando-as, e gravava sem estar tão preocupado com a imagem em si, porque as câmaras eram o que eram e tentava, sempre, aproveitá-las da melhor forma. Hoje em dia já é diferente, há muitas mais pessoas a filmar e a atenção espartilha-se para todos os lados. O vídeo está em toda a parte e, por isso, a atenção é muito menor. As pessoas já não perdem tempo a ver os vídeos. Hoje, dás por ti a preocupares-te muito mais com a imagem, é um trabalho muito grande que está por trás, tens de perceber a tecnologia, de entendê-la, de estudá-la mas, ao mesmo tempo, consegues fazer imagens incríveis e o que fazes agora seria muito difícil há dez ou 12 anos.
Mas notas que a capacidade de atenção para um vídeo mais longo já não é a mesma?
Nota-se isso e que, hoje em dia, tudo é muito rápido e toda a gente procura uma estimulação constante. Antes, gravavas vídeos sempre à procura de algo único. Gravavas os vídeos dos músicos em cima dos menires, em cima das árvores e, atualmente, já está tudo quase feito e todos filmam com os telemóveis, com o Instagram e com todas essas tecnologias. No início, a MPAGDP tinha uma imagem bastante cuidada e era referenciada, toda a gente que via um vídeo dizia que era da MPAGDP. No princípio tinha sempre um microfone à frente, era sempre em plano fixo, mas as pessoas querem movimento e quando não têm logo tudo isso, têm onde e como ver. Tal fez com que, atualmente, as coisas estejam muito mais normalizadas e uniformizadas, por isso mesmo, a atenção e o tema do vídeo já não interessam tanto. Interessa o estímulo.
Vejo muito isso nos vídeos de viagens, por exemplo, em que os vídeos parecem todos uniformes. Tanto faz ser no Cairo ou México, parece tudo feito, mais ao menos, da mesma maneira. A pergunta que queremos fazer é esta: quanta desta música que gravamos chega até nós diariamente? Há tantas histórias que se podem contar sobre os últimos 30, 40 anos através de toda a música invisível. Talvez a partir de agora, a caminhar para a terceira década do século XXI, o papel definitivo do projeto da MPAGDP seja contar as histórias dos lugares através da música, gravando tudo o que encontramos, fazendo entrevistas e ouvindo as pessoas. Criando, dessa forma, carrosséis musicais para o futuro.