Entrevista. Tim Bernardes: “Esse tipo de liberdade, de vontade musical sem rótulo, é parte da minha formação”
Em novembro do ano passado, a propósito do Super Bock em Stock, Tim Bernardes ocupava o palco do Teatro Tivoli, numa noite que prometia ser uma descoberta para um público ainda pouco familiarizado com as suas atuações ao vivo. Presenteou-nos, principalmente, com “Recomeçar”, o álbum que carateriza a sua carreira a solo, desde 2017. “Recomeçar” é, de facto, uma descoberta, uma maré de calma e inquietação em simultâneo, de conforto e desconforto, de passado e presente, é a fuga que procuramos. Com lançamentos mais antigos, toques mais leves e retratos menos pessoais, Terno contava já com três discos, que nos foram familiarizando com o nome de Tim que, entre amigos, se fazia acompanhar de Guilherme D’Almeida e Biel Basile. Em 2019, Terno lançou “Atrás/Além”, um disco de contrastes, que marca o retorno da banda e põe uma pausa à carreira do músico a solo.
De origem brasileira, Tim conta, cada vez mais, com Portugal nos seus planos. Foi, exatamente, numa dessas suas visitas à capital, numa tarde quente em vésperas de atuação no NOS Primavera Sound, que conversamos com o músico sobre os seus projetos, a sua carreira e estes dois países que vão cruzando canções e artistas.
Tens vindo várias vezes a Lisboa. De que forma é que podemos encontrar a cidade na tua música?
Com “Recomeçar”, eu vim no ano passado e, com Terno, a gente veio duas vezes, com “Melhor do Que Parece”. São vindas recentes mas que eu espero que cada vez sejam mais frequentes, sabe? Já é uma cidade e um país que eu incluo nos meus planos de tour, assim como muitos lugares do Brasil. Tenho de conviver um pouco mais aqui. Em relação à cidade na minha música, isso pode vir a partir desse momento em que eu estou começando aqui, mas sinto que ainda é recente.
Tens algum concerto que gostaste particularmente de dar ou que identificas como o favorito, aqui, em Portugal?
O clima me alegra muito, é um tipo de calor que tem um vento frio. A comida ou mesmo os amigos que a gente foi fazendo aqui, os passeios, a coisa de você poder andar de madrugada, que a gente não faz tanto em São Paulo. O clima da cidade como um todo, estar numa cidade europeia mas que fala a minha língua… É mais a atmosfera como um todo que mais gosto, que me atrai, é uma coisa mais abstrata de explicar do que é um ponto assim.
Qual é a principal diferença entre o Tim que toca “Recomeçar” e o Tim que toca nos Terno?
(risos) Eu acho que, hoje em dia, está mais misturado do que nunca porque, quando fiz o “Recomeçar”, eu estava fazendo um repertório que nunca tinha-se encaixado no estilo do Terno até então. Mas o repertório do Terno foi ficando cada vez mais intimista também e acho que, agora, este disco novo dos Terno, “Atrás/Além”, é um disco que poderia ser gravado tanto a solo, quanto em banda. É um tipo de disco muito íntimo mas que, pelo conteúdo das letras, pelos assuntos do disco, fazia sentido sair com Terno. Mas acho que a marca do Terno seria como a gente toca junto, como três amigos, sabe? A gente se divertindo, tocando junto, o filtro ser não só meu mas dos três, ser algo que agrade ao três… e o meu solo é uma coisa realmente mais íntima, mais artesanal, onde eu tenho, realmente, cem porcento do processo na minha mão.
Também sentes que tens mais liberdade…
De uma certa forma sim, embora, no Terno, eu tenha muita liberdade porque eu estou na posição de dirigir a coisa, de diretor, e os meninos sempre me deram muita liberdade nesse papel. Mas, a solo, claramente eu vou mais para onde eu quiser porque estou mais solto. Eu explorei menos porque tenho menos discos a solo do que tenho com Terno, mas é um território onde eu fico mais aberto.
Nestas quase trinta décadas de existência, como descreves o teu percurso musical? Há algum momento que te tenha marcado especialmente?
(risos) Eu acho que… esse momento, agora, de “Melhor Do Que Parece”, com Terno, “Recomeçar”, a solo, e “Atrás/Além”, é um momento todo muito denso e legal, para mim, que eu gosto. Acho que comecei bem cedo com Terno. O primeiro disco que eu comecei a gravar tinha 17 anos e a trajetória musical foi levando uma coisa à outra, sabe? Aí eu sinto que esse trio de discos já são discos onde, ainda que tenha sempre de amadurecer, crescer e transformar, já chegam num ponto um pouco mais maduro na trajetória e vêm-se desenvolvendo. Então, acho que o “Recomeçar” já é um desenvolvimento depois do “Melhor Do Que Parece”, e o “Atrás/Além” também já é um desenvolvimento. Já sinto que chegou num ponto onde não sei mais se um disco é mais evoluído do que o outro ou uma coisa assim. São só variações. Mas, talvez, a gente já esteja mais pronto como músicos e artistas.
Sentes que existem diferenças entre tocar para o público brasileiro e para o público português?
Eu, impressionantemente, achei semelhante de uma maneira muito positiva. Eu já estava acostumado, quando lancei o meu disco a solo, a fazer concertos com o Terno que estavam cheios, com pessoas cantando as músicas, por causa da trajetória nossa até então. Agora, chegar aqui, pela primeira vez, para fazer shows do “Recomeçar” e as pessoas estarem assim, como no Brasil, interagindo comigo no show e cantando as músicas, foi uma coisa que eu não imaginava… que a resposta seria tão direta como é no meu próprio país. É uma semelhança boa.
“Recomeçar”, ainda que lançado em 2017, conta com músicas mais antigas, particularmente “Não”, escrita em 2010. Isso transmite uma certa intemporalidade da tua música?
Acho que sim. São canções que falam de temas, ao mesmo tempo, muito pessoais e universais. São assuntos que não são datados, são canções de amor, sinceras. Até o facto de eu ter guardado elas por muito tempo, e, depois, em 2017, quando voltei para realmente concretizar, elas ainda conversarem comigo, mostrou que eram canções que faziam sentido em 2010, em 2017, em 2027… São canções que eu gosto e que eu me relaciono, sim, e que vêm menos como um novo lançamento, como a novidade do momento, mas mais como um disco para as pessoas poderem curtir mais profundamente, se relacionarem emocionalmente.
E sentes que as próprias pessoas acabam, até, por se identificar com essa intemporalidade e com as próprias canções…
Acho que sim. Vejo pessoas de idades diferentes se relacionarem com a matéria da canção, mesmo.
Quais são as tuas principais referências musicais ou artísticas e que consideras que as pessoas mais facilmente reconhecem na tua música?
Acho que uma série de coisas me formaram como músico e, cada vez mais, eu vejo essa mistura de formações de uma maneira mais homogénea. Então, hoje em dia, eu já sinto que começo a soar como eu mesmo. Mas nesses ingredientes, lá atrás, tinha muita coisa… de me formar ouvindo coisas desse tipo de música popular, música pop dos anos 60 – onde o pop e a coisa que fala com um público gigante também estava atrelada a muita criatividade. Beatles, ou o tropicalismo no Brasil, como Mutantes, Caetano e Gil, essa turma assim… o Clube da Esquina, uma coisa muito bonita para mim também. Uma coisa que tem muito a ver com a música no Brasil para a gente, misturar coisas, seja música erudita de uma orquestra, com um grupo de rock ou um músico de jazz. Esse tipo de coisas, esse tipo de liberdade, de vontade musical sem rótulo, acho que é parte da minha formação. Coisas como Jorge Ben também, os clássicos, entre aspas. Mas, hoje em dia, eu sinto que… na verdade, desde sempre, para a composição, não foi isso que me inspirava. Me inspirava mais alguma situação que eu estava vivendo ou pensando. A influência, quando eu estou compondo a melodia, vem mais em consentimento e, depois, eu posso reparar que esse tipo de melodia tem a ver com aquilo, com aquilo… mas acho que as influências se misturaram bastante.
Assistimos, no mês passado, tanto à notícia sobre os cortes decretados por Bolsonaro nas universidades, como à posterior reação à mesma, que contou com milhares de manifestantes em protesto nas ruas. Perante este cenário, o que é que antecipas para a produção e para o consumo de arte e cultura brasileira?
Num sentido prático, é um momento claramente de mais dificuldade porque é um governo que é visível como ele não valoriza a cultura e variedade, ou diversidade na cultura. O Brasil é um país que tem uma cultura muito diversa, muito forte. A música no Brasil é incrível. Todas as atividades culturais são muito fortes e esse governo, especificamente, não vê valor nisso. E não vê valor nisso não incentivando a isso crescer e coisas assim, que tinham valor antes, já não era tanto, mas que parece que agora diminuiu. Na prática, no meu dia-a-dia, o que eu reparo é, como eu e o Terno, por exemplo, a gente cresceu, começou, no início da década, onde ainda tinha alguma coisa, a gente conseguiu se ir estruturando e, hoje em dia, a gente tem um público e a gente conversa com esse público, então a gente consegue ir fazer os shows por aí. Mas o que eu sinto é que é um momento muito mais árido para alguém que tiver que formar o público agora, que tiver começando agora, sabe, e que vai ter um período onde você não tem muito contacto com as instituições para fazer a cultura acontecer. As instituições estão, inclusive, dificultando. Enfim, tem altos e baixos e eu acho que, agora, a gente está num período de dificuldade.
E qual te parece ser a justificação para os cortes terem sido feitos em maior escala (pelo menos, até agora) na educação e não na cultura, sendo que ambas são fortes mecanismos de incentivo ao pensamento crítico?
Eu acho completamente triste o jeito como este governo aborda a educação. No Brasil, seria a área que mais teria que ter incentivo porque é um país muito desigual. O nível de formação popular e de ensino público é muito baixo e isso só aumenta a desigualdade social. Se tivesse uma educação muito grande isso já seria uma formação de público e já daria um retorno para a cultura. Então, é muito preocupante ver um governo que não prioriza a educação porque, a meu ver, seria a prioridade para o Brasil hoje em dia.
Independentemente do que posso acontecer, qual o papel que atribuis à música numa democracia que parece estar a regredir?
Acho que pode ter muitos papéis, tanto artistas que, literalmente, querem falar explicitamente dessas questões que estão a acontecer, no momento, ou se manifestar. Eu sinto que o meu tipo de música, que lida muito com os afetos, com fazer uma coisa com carinho, com atenção, com amor, de alguma forma funciona mais nesse âmbito de micropolítica, de você dar atenção às coisas que você faz, de você dar valor às coisas que está fazendo, à coisa mais sentimental mesmo e que, hoje em dia, a gente vê o Brasil muito polarizado, muito raivoso, os extremos estão muito bélicos. E o que eu sinto, com sinceridade fazendo, é isso – que a gente está a fazer alguma coisa com afeto, com atenção, e ver as pessoas valorizando isso, valorizando o afeto e a atenção, esse tipo de coisas.
Até para se desviar ou amenizarem um pouco esse clima…
Não sei se para desviar ou amenizar. É mais como abordar as coisas, do que as coisas em si.
Como vês o facto de o Chico Buarque ter ganho o prémio Camões?
É muito legal, é muito interessante. É semelhante ao Bob Dylan ganhar um Nobel. Eu acho que faz muito sentido, ele é um cara que trabalha, um arquiteto da língua, sim. A onda dele é muito essa. Para mim, é super legal.
E sentes que possa ter algum impacto nas relações entre Portugal e o Brasil no que respeita à música, como trazer mais artistas, por exemplo?
Não sei se isso vai trazer mais artistas porque eu sinto que o canal é muito aberto, de Portugal para com o Brasil. Eu sinto que isso é mais uma prova de quão aberto está, de como Portugal se volta para o Brasil em relação à cultura, à música… do que um abridor de caminhos.
Já há planos para um novo álbum do Tim a solo?
Eu tenho vontade de, depois de eu trabalhar o “Atrás/Além” realmente com o Terno, quando eu me voltar para o estúdio, trabalhar em canções que eu tenho para mais coisas a solo. A intenção é essa.