Entrevista. Tim Bernardes: “Este novo disco foi um pretexto para fazer um retrato da minha musicalidade”
Há já alguns anos que ouvimos falar de Tim Bernardes. Tudo terá começado na sua carreira com O Terno, projecto a três que editou o primeiro disco em 2012 (e com o qual já visitou Portugal), e mais tarde sob nome próprio, em 2017, quando lançou Recomeçar; cinco anos depois — agora! — chega-nos Mil Coisas Invisíveis, editado na recente chancela da Psychic Hotline, e que tem granjeado uma atenção muito positiva por parte da crítica. Bernardes volta a Portugal em breve, e tivemos a oportunidade de conversar um pouco, suprimindo a distância que separa Portugal do Brasil, sobre este novo trabalho.
Quisemos, primeiro, entender a janela temporal a que refere o disco; Tim conta-nos que o processo se iniciou há dois anos. “Em 2020 resolvi entender o meu repertório — o que tinha de músicas, o que tinha composto até então, e compor músicas novas; nesse ano tentei perceber o conteúdo do disco, lapidar a parte mais de composição, e em 2021 tratei dos arranjos e sonoridades”. Desse processo resultaram quinze faixas, perfazendo pouco menos de uma hora, que se inicia com Nascer, Viver, Morrer: encapsula-se um ciclo de vida, do início ao fim, prenunciando as palavras que no resto do disco revolvem sobre a infância, as paixões, ou as metamorfoses atravessadas ao longo do tempo.
Será disso exemplo A Balada de Tim Bernardes, um dos francos momentos de maior inspiração: as palavras cantadas centram-se na sua própria vida, e em seu redor há um fluxo torrencial de estados de espírito: memórias da avó, noções para um hipotético futuro, um permanente presente que parece admirar o fenómeno que é estar vivo — “Eu vou mudar, eu já mudei, estou mudando / A vida é feita para aproveitar / E de algum jeito acho que estou aproveitando” — é aqui que este turbilhão provoca a transformação da estrutura da canção, que se projecta lançada pela secção de cordas — compostas por Bernardes, também — e se nota, formalmente, a submissão ao que noutra língua chamaríamos stream of consciousness.
O vídeo que acompanha a balada é, também ele, uma homenagem a esses tempos. Em colaboração com o videógrafo Andrei Moyssiadis, juntaram algumas imagens de arquivo da família com gravações contemporâneas (em fita analógica); em várias das cenas, surgem discos — o Clube da Esquina, os Beatles, Tim Maia, entre outros — e ocorre-nos que tanto esta canção, como o próprio processo de revisitar repertório para a feitura do disco, são um processo necessariamente reflexivo. “Acho que de tempos em tempos tenho talvez uma tendência de olhar em torno, entender o que aconteceu até agora e que me trouxe até aqui; o que é que eu posso talvez querer para a frente. Actualizo-me comigo próprio para entender o momento que estou vivendo”. E se tudo isso parece estar sintetizado nesta canção em particular, as pistas melómanas oferecem um retrato mais amplo da sua definição como artista: “acho que foi um pretexto para fazer um retrato da minha musicalidade — essa coisa de ter os discos, e mostrar de onde vem essa coisa que é meio analógica, mas digital; sessentista, mas indie”; não nos ocorreria melhor definição que esta, vinda do próprio.
Já sabíamos que a sua música se insere, de forma natural, na linhagem da música popular brasileira — apesar de se cruzar com novas variantes da folk, e de tecer arranjos que remetem para o âmbito da chamber pop. Conhecíamos-lhe as canções românticas e intimistas, inconfundivelmente suas. Seria difícil argumentar uma enorme transformação na estética das suas composições, mas há, em Mil Coisas Invisíveis, momentos de escrita que apontam a algo diferente: versos como “Brasil internet mundo / Mundo internet Brasil”, em Meus 26, que trazem, em termos mais concretos, impressões do seu país natal. A singularidade dessas três palavras — que não chegam a ser, digamos, uma frase — é inusitada. A explicação, por parte de Tim, também não é imediata; surge apenas após alguma reflexão: “Essa música tem coisas que eu quase não procuro entender racionalmente. É quase uma coisa sensorial, a soma dessas palavras para mim. A internet brasileira é uma coisa muito louca, e o momento também…as paixões brasileiras, esse jeito exclusivo do brasileiro, e como é o humor brasileiro… a problemática política da internet brasileira, e tudo… o termo internet não parece uma coisa muito poética, mas para mim é uma das frases mais poéticas do disco. É uma coisa sensorial, mesmo. E a gente entende sem racionalizar: ela explica e multiplica a complexidade que é o Brasil, de alguma forma”.
As palavras do disco suscitaram mais palavras na nossa conversa, porventura revelador da sua importância nesta fase, ou neste projecto. “Acho que esse disco tem bastante texto: mais do que outros que eu já fiz. O Recomeçar tem uma sensação mais cinematográfica, que se pode romantizar numa narrativa — acho que era um disco mais romântico em todos os sentidos da palavra, não só de forma amorosa. Mas este parece-me mais um livro do que um filme: um livro ensaístico. Tem muitas canções que são de facto ensaios longos, quase um fluxo de consciência, como a Meus 26, Beleza Eterna, A Balada de Tim Bernardes…são músicas nas quais quis ter uma base para colocar texto, e poder reflectir mais livremente. E acho que até como resposta a essas músicas mais longas, há outras mais curtas, mais sintéticas — como Nascer, Viver, Morrer, ou Mesmo Se Você Não Vê, que tentei condensar em versos muito simples”. Esta necessidade de ancorar o texto em canções, servindo-se da música para um propósito quase literário, poderá assinalar-se como uma transformação; um sinal de crescimento, ou de maturidade artística. Esta mudança foi, afinal, consciente: “É um disco mais eclético e abrangente que os meus últimos discos, que eram discos de uma unidade e coesão mais uniforme. Este disco tem vários lados, e acho que era minha intenção que o meu segundo disco a solo tivesse uma vertente um pouco diferente do anterior: queria que fosse mais eclético, mais solto; existe um assunto por baixo, mas o disco é também um conjunto de canções que podem, ou não, relacionar-se entre elas”.
Este foi o primeiro disco que editou, em simultâneo, no Brasil e além-mar. O músico nota que “de alguma forma, a cada disco, as pessoas que já estavam a prestar atenção, continuam juntas e vai-se multiplicando um pouco”; mas desta vez, aconteceu algo diferente. Em 2020, o fruto da amizade com Robin Pecknold, dos Fleet Foxes, resultou na participação numa faixa do novo disco dos americanos; e neste passado Verão, além da gravação de uma sessão na mítica KEXP, participou na tour estadunidense da banda, como opening act. De facto, as portas internacionais estão a abrir-se, e o Tim não é mais um segredo reservado à lusofonia. Que isto tenha acontecido com Mil Coisas Invisíveis, o disco da sua plena afirmação, deixa-nos entusiasmados pelos capítulos seguintes da sua história.