Esta capacidade de saber ver Arte
Apreciar obras de arte, saber admirá-las como testemunhos e como presença na senda dos seus saberes estéticos e afectivos, é não só um privilégio do nosso mundo de viventes, como um imperativo de todas as pessoas, sejam governantes, tutelas, comunidades ou públicos em geral. E quando falamos em arte falamos em arquitectura e urbanismo, escultura e pintura, ourivesaria e têxteis, fotografia e gravura, mobiliário e artes de decoração, em poesia e demais literatura, em música e teatro e outras artes do espectáculo, em graffiti e na BD, em muitos outros géneros e subgéneros em que se manifesta essa sua capacidade de gerar fascínios, seja por via erudita ou ingénua, rica ou pobre, de vanguarda ou de conformismo.
Foi sempre assim, pelo menos desde o século XV, o tempo do Renascimento, quando as qualidades auráticas das artes, além de libertarem os seus autores das velhas teias gremiais e do anonimato servil, criaram uma verdadeira consciência de defesa de um Património comum que urgia (e urge) ser preservado e valorizado. Todavia, se foi e é sempre imenso esse poder de fascínio das obras de arte (todas elas, melhores ou piores que sejam), também o seu grau de fragilidade não é menor, dada a frequência com que tantos monumentos e obras foram alvo de atentados iconoclásticos, de maus restauros, de processos de destruição pura e simples, ou de um silencioso abandono que os condena à desmemória.
É por isso que a História da Arte é cada vez mais uma disciplina importante, com forte impressão digital na vida das sociedades e com empregabilidade crescente nos nossos dias. O facto de saber estudar e valorizar as obras vivas, prevenindo ao mesmo tempo os péssimos efeitos da negligência e abandono, da especulação e esquecimento, torna-a cada vez mais necessária. Apesar das inerentes dificuldades, os historiadores de arte de hoje tentam cumprir esse objectivo através do estudo integrado e comparativo, do inventário de espécimes, dos processos de conservação, musealização e salvaguarda e da maior consciencialização junto das comunidades para com o seu património.
É possível e necessário repensar a prática actual dos nossos estudos de História-Crítica das Artes sob novas luzes.
Em primeiro lugar, defender uma prática micro-artística consequente, porque o conjunto de artistas e obras que esta disciplina visa estudar não se resume mais a certos nomes e peças previamente determinados por um olhar de preconceito (tal como o que durante tantas décadas dominou em Portugal sobre o nosso património). Recordo como o património artístico do Distrito de Santarém durante muitos anos se resumia ao Gótico escalabitano ou ao foco de Tomar, esquecendo-se as especificidades de tantas obras de arte renascentistas, maneiristas ou barrocas que, depois de estudadas e valorizadas, brilham hoje nas salas do belíssimo Museu Diocesano de Santarém (e em outros espaços visitáveis do Ribatejo).
Depois, há que destacar sempre a condição trans-contemporânea de todas as obras de arte (tenham elas sido criadas em tempos pré-históricos, medievais, modernos, ou dos nossos dias) já que, na sua dinâmica inesgotável, única e irrepetível, a arte é sempre um exercício de engenho que se situa algures entre o desafio, o testemunho e a inquietação, e é por isso que, de per si, se assume terreno de contemporaneidade, na medida em que (disse-o Arthur C. Danto), seja no ontem ou no amanhã, põe sempre à prova a nossa sensibilidade de interlocutores.
Em terceiro lugar, e porque muitas das obras de arte que a humanidade conserva são actos sublimes pois atingem o estádio aurático da invocação permanente e o renovado convite ao deleite, impõem na sua abordagem crítica uma dimensão antropológica. Tenho aprofundado esta vertente com Aurélio Lopes, certo de que a arte tem sempre uma dimensão espiritual: «toda a arte é sacra ou não é arte», disse Ernesto de Sousa (tal como eu um incréu…) no contexto da famosa exposição Alternativa Zero (1974).
Em quarto lugar, as obras de arte têm a imensa capacidade de se abrir às novas circunstâncias que se sucedem no seu tempo de vida, acumulando contextos e memórias, mesmo que os tempos e gostos sucedâneos se mostrem esquecidos, senão hostis, face à sua presença, como tantas vezes sucede. Descobrir os escuros e luzes destes percursos faz parte da chamada Fortuna Crítica, etapa madura da nossa investigação. Ai daquela História da Arte que se conforme com o estudo do contexto histórico em que a obra em apreço foi realizada, julgando que basta essa circunstância, por mais fértil de resultados que seja, para perceber as qualidades da peça que estuda!
Enfim, temos de ter em conta o poder de encantação permanente das obras de arte, que por isso mesmo têm uma imensa dimensão social, capaz de (à revelia das crenças ideológicas, credos religiosos, ou condição étnica e civilizacional) definir um terreno comum de afectividade. Sim, as obras de arte têm mais poder do que a violência dos homens: mostram o poder do pensamento, imaginação e engenho humanos através do acto de criar, esbatem as diferenças, e podem tornar-nos pessoas melhores e mais solidárias. Este poder interage no tempo, quando existe sensibilidade capaz de dialogar com a sua transcendência: a scintilla divina de que falava León Battista Alberti no século XV, a ideia suprema capaz de enfrentar os males do mundo exposta por Benito Arias Montano no século XVI, a prisca pictura de sentido neoplatónico de Francisco de Holanda no Portugal do tempo de D. João III, ou essa indefinida mas contagiante aura descrita por Walter Benjamin no século passado… Para um homem de fé como Frei Bento Domingues, «o poder da arte resulta da capacidade enigmática de certas obras provocarem a ruptura com as evidências convencionais da realidade e de criarem um novo e inconfundível mundo de experiências de fruição estética pela densidade das emoções que desperta». Segundo diz em entrevista recente, não existe outra produção humana tão elevada de espiritualidade e força anímica como a arte, tão frágil na (i)materialidade quanto poderosa na essência e na capacidade permanentemente renovada de gerar afectos…
A nós, eternos mortais sem remédio visível, apenas cabem as tentações interpretativas e o prazer de fruir os discursos da arte. E, já agora, as possibilidades de lhe conferir ‘mais vida’, aduzida tanto pelos meios da Conservação e Restauro, como os da Museologia, e os da História da Arte, com a sua investigação integrada. Destaco, por isso, as palavras do grande historiador de arte José-Augusto França que, em síntese, nos diz tudo: «A minha ligação à arte é quase respiratória», confessa numa entrevista; isto porque: «tenho de olhar para as obras e saber o que estão a dizer-me». Sim, a arte convoca-nos sempre para a nossa capacidade de escutar.
(artigo saído no CORREIO DO RIBATEJO de 3 de Janeiro de 2020)