Estaremos perante uma pandemia electrónica?
Em meados de 1971, o escritor norte-americano William S. Burroughs publicou um pequeno ensaio intitulado A Revolução Eletrónica, um conjunto de pequenos textos que abordam a conjuntura dos métodos utilizados na informação, capazes de, por conseguinte, interferir directamente na mesma.
De um modo sucinto, William Burroughs evidencia a contaminação da condição humana pelo vírus da palavra, uma contaminação que, segundo o próprio, não é maligna à partida. Há, isso sim, uma espécie de simbiose: o vírus e o hospedeiro (neste caso o ser humano) sobrevivem e nenhum dos dois sai prejudicado, saindo ambos a ganhar com esta ligação biológica. No fundo, o homem contemporâneo é assim, tal como o conhecemos, por estar infectado pela palavra. Contudo, este vírus sofre mutações constantes, e, sendo nós os criadores da linguagem e da escrita, e, por conseguinte, das palavras e dos métodos de comunicação, somos nós quem cria (consciente ou inconscientemente) essas mesmas mutações. De um modo geral, através da elocução e de várias técnicas do domínio ou manipulação do discurso, as palavras podem controlar multidões, criar um sistema imutável e sustentá-lo, mantendo no poder os verdadeiros donos da palavra.
William Burroughs escolheu a altura certa para escrever o ensaio: sendo ele um dos fundadores do movimento beat nos Estados Unidos e também um símbolo da contracultura americana, a publicação de A Revolução Electrónica acabaria por ter um impacto bastante relevante na literatura e na sociedade da época. Publicada numa altura em que a Guerra Fria continuava a ganhar força, onde imperavam não só a questão da manipulação de informação e espionagem – logo após o estouro do escândalo Watergate acerca das gravações do Presidente Richard Nixon, que mais tarde acabou por renunciar ao cargo dada a gravidade da situação -, bem como a ascenção impetuosa de determinados líderes espirituais numa sociedade americana cada vez mais desnivelada, tinha tudo para ter o seu sucesso.
Para Burroughs, a união entre a electrónica e a palavra poderia funcionar como arma de destruição do sistema por elas próprias sustentado, subvertendo as suas funções. Nesse sentido, a principal receita sugerida por Burroughs consistia na utilização da técnica do corte e montagem, o cut-up, que implica a utilização de meios de gravação e difusão áudio e vídeo, ou seja, os mesmos que são utilizados para o controlo dos mass media, algo que era uma tendência usada na manipulação da informação.
É claro que a tecnologia nos anos 70 nada tem a ver com a tecnologia dos dias de hoje nem com a velocidade de propagação de informação que os media exercem. A tecnologia analógica imperava naquela época, as gravações tinham como base o videotape, a cassete era o objecto icónico da gravação, e eram necessários gravadores que pudessem gravar ou reproduzir a gravação obtida. Hoje não. Temos acesso fácil não só a gravações, dada a tecnologia de bolso que nos acompanha no dia-a-dia, como também à manipulação de informação, dada a quantidade de programas que existem de fácil utilização e acesso. Hoje a informação propaga-se de um modo viral e, mais ainda, com os avanços tecnológicos que temos vindo a assistir, a uma escala viral: internet, redes sociais, mensagens que passam de mão em mão à velocidade da luz, contribuem para tudo isso. Se há era onde podemos considerar que a palavra se comporta como um vírus e que se alastra à velocidade estonteante de uma epidemia, sofrendo, além do mais, mutações consoante a sua ordem de propagação, provavelmente será a nossa era actual. As palavras que hoje nos chegam através do meio de propagação da nova era, e que se hospedam nos nossos pequenos dispositivos electrónicos, podem ser análogas aos vírus que William Burroughs evoca nesta obra, sendo também de notar que estamos cada vez mais dependentes destes dispositivos, que sem eles perdemos o contacto com o mundo e, por conseguinte, com esta virose. De um modo geral, e por mais confuso que seja, estamos infectados com o vírus, mas o vírus está também infectado por nós mesmos, pois as suas mutações estão dependentes do modo como interagimos com a tal virose.
Os posts nas redes sociais podem ser vistos como espectro viral desta informação que imperava nos anos 70. As palavras e as não muito longas frases alastram-se sem tomarmos conta da veracidade do seu contexto. Esta tem sido uma técnica utilizada por determinados líderes políticos de certos países, e que tem vindo a dar cada vez mais resultados a nível de propagação viral. Novos caracteres já são reconhecidos como elementos similares às palavras, como os emojis (recorde-se que o Dicionário Oxford elegeu em 2015 um emoji como palavra do ano), que muitas vezes são mais utilizados nas nossas mensagens do que as próprias palavras.
A manipulação da informação é uma tendência cada vez mais recorrente e de fácil execução para determinados elementos dos media, algo que pode ser semelhante ao cut-up que Burroughs refere na sua obra. Todos estes factores deixam-nos perante uma gripe infernal altamente contagiante. É verdade que o ser humano já conseguiu sobreviver a diversas epidemias, e podemos falar de pestes negras, de febres amarelas, de varíolas, de gripes espanholas, de gripes asiáticas, de gripes A, de gripes B, de gripes Z, e ainda muitas outras epidemias que por aí aparecerão. Apesar destas gripes terem consequências mortais no ser humano, a sua cura e o modo de retomar o controlo foram sempre algo atingido. Esta gripe tende a dominar-nos, modificando-nos e incorporando novas formas, mas conseguiremos sobreviver a esta pandemia, ou haverá pelo menos alguma maneira de a travar? Conseguiremos obter a cura para esta virose de informação cheia de palavras e de outros elementos manipulativos mutantes como os emojis que possuem uma maior ênfase e que atingem cada vez maiores proporções gigantescas quase sem darmos conta? A maneira como escrevemos as nossas mensagens são tipicamente influenciadas por estes símbolos, transmitindo um significado diferente consoante o seu tipo e até mesmo o número de vezes que os usamos, influenciando directamente o seu conteúdo. Conseguímos, deste modo, criar mutações neste mesmo vírus bem como também criar diferentes meios de propagação cada vez mais propícios ao vírus em causa. Estamos, muito provavelmente, perante uma revolução electrónica permanente feita por inúmeros vírus que se conseguem infiltrar na nossa condição humana.
A revolução electrónica permanece e ganha maiores proporções numa altura em que deveríamos estar perante uma revolução humana. Parece que será cada vez mais difícil dominar esta revolução, cujo seu significado deveria remeter para algo de benéfico, mas que tem vindo a tender para um lado mais malicioso no ser humano. Um lado que tende a criar uma dependência pela electrónica e pelas notícias manipuladas que esta nos transmite, e pelos seus conteúdos contagiantes. A tecnologia evoluiu tão rapidamente que, em vez de estarmos a evoluir à mesma velocidade, estamos a ser dominados logo pelo seu pior lado, lado esse que que nos coloca perante uma doença infecciosa que continua a incorporar novas formas e a atingir limites nunca antes vistos. A pandemia electrónica já nos contaminou a todos. Resta-nos apenas tentar encontrar uma cura possível, que pode muito bem ser formulada se ainda tivermos em conta o pouco que resta do nosso lado humano.