Estreia de Sampha, com álbum “Process”, tem cor, espaço e dor
Um homem e um piano é uma premissa comum. Mas Sampha, o cantor, pianista, compositor e produtor britânico de 27 anos, vem cumpri-la de forma especial. Process, lançado na passada sexta-feira, é o primeiro álbum de estúdio de um artista que já se vinha dando a conhecer desde o início da década. Quer com os seus dois EP’s em nome próprio, quer por meio de colaborações importantes com uma série de artistas que marcam o panorama musical da actualidade. Esta incursão começa em 2011 com Jessie Ware; segue-se o trabalho influente com os SBTRKT, no território do Future Garage e do UK Bass; participa como convidado em Nothing Was The Same de Drake, em 2013; aventura-se no primeiro álbum revolucionário de FKA Twigs, como produtor numa das faixas. Por fim, marca presença em três dos álbuns mais importantes do ano passado: Kanye West (Saint Pablo), Solange (Don’t Touch My Hair) e Frank Ocean (Alabama). É um currículo dourado que vai elevando as elevadas expectativas de quem o segue.
Process. O título é reminiscente da forma como se faz anunciar, após alguns anos meio desaparecido: «I’ve had a lot to process these past couple of years, as we all do (…); I’m looking forward to sharing my music with you again». Um ano depois lança o álbum e temos a oportunidade de finalmente podermos provar um projecto a solo de um artista já longe de nos ser desconhecido. As temáticas abordadas ao longo das dez faixas parecem apontar Process como um álbum conceptual: no coração das histórias, está a mãe de Sampha e o cancro que a dilacera; em torno deste acontecimento dramático e das emoções que o acompanham, encontramos as inseguranças e dificuldades do filho, a distância de casa e a desconexão, a memória, o arrependimento, a paixão, a procura de si mesmo. É um álbum sobre sofrimento psicológico, que termina numa nota ambígua, com a última faixa “What Souldn’t I Be?”, na tensão não resolvida entre optimismo e desespero.
A voz quente de Sampha é a sua identidade primeira; a interpretação, ao estilo R&B, tem tanto de exagerado como de necessário; e o timbre que já lhe conhecíamos demonstra controlo vocal exemplar: ao mesmo tempo que é forte e intenso, expressa-se suave, como um emocionado embalo.
Mas não é só da voz que vive este projecto: para lá das letras e das palavras, a música é muito sugestiva e imagética. Há cor. Há espacialidade. A malha de géneros musicais é envolvente, e o álbum faz questão de os demonstrar e interligar: R&B alternativo, neo-soul, a electrónica do UK Garage. Há unidade na diversidade. O álbum faz questão de se referenciar a si próprio em termos sonoros: “Reverse Faults” e “Kora Sings” apontam uma para a outra, com elementos aparentemente comuns e remisturados. Em termos de produção, Process tem momentos reminiscentes de Arca, mas talvez a referência mais óbvia seja mesmo o trabalho de James Blake, ao nível da ambição e da sonoridade, e mesmo da preponderância vocal, com um pouco mais de batida assumida.
Os momentos fortes do álbum encontram-se bem distribuídos: “Plastic 100 Cº” inicia de maneira atípica e com estrutura pouco convencional; “(No One Knows Me) Like The Piano” captura a emoção e o tratamento do piano de uma forma particular, que a mim me recorda a interpretação de “True Love”, de Tobias Jesso Jr. Mas terei de destacar como os dois momentos mais especiais a potência e envolvência de “Under” e a magia encriptada de “Kora Sings”. Esta última surge como um exercício de ritmos sobrepostos, recorrendo ainda à kora (instrumento musical africano), reminiscente de um lugar perdido e uma produção que convoca o ouvinte à dança – mesmo que não se trate de uma dança óbvia.
Nem tudo é perfeito, contudo. Embora provenha de um lugar autobiográfico, magoado e muito pessoal, não consegui ainda sentir o impacto emocional pleno de Process. Talvez Sampha recorra demasiado a referências de artistas que já experimentam coisas próximas; e a sensação de déjà vu em determinados momentos não me ajuda a percepcionar o álbum como qualquer coisa de novo, pese embora certos trechos, pontualmente, sugiram o contrário. A sensação com que fico é que parte das músicas se assemelham a beijos incompletos (como a penúltima faixa, “Incomplete Kisses”, agoira). Quem sabe se não era precisamente esta a sensação com que Sampha nos queria presentear: um álbum que não se resolve por completo, mas que ainda assim é concluído de modo sereno, encontrando uma paz tremida na pergunta e na dúvida.