Eugénio dos Santos reergueu Lisboa quando a Natureza a traiu
Eugénio dos Santos foi um dos principais responsáveis no período pós-terramoto de 1755, que abalou e destroçou a capital portuguesa. Arquiteto de formação e de profissão, deu azo para que os planos do Marquês de Pombal conhecessem forma e matéria, assistindo-se a uma forçada modernização da disposição da cidade. Para além dos méritos que granjeou em Lisboa, contemplou todo o país com uma vasta gama de obras públicas e militares, tornando-se um dos primeiros e mais importantes arquitetos do século XVIII.
Eugénio dos Santos e Carvalho nasceu em Aljubarrota, freguesia no concelho de Alcobaça, no mês de março de 1711. Crescendo no seio de uma família de pedreiros, foi com natural interesse que acompanhou o trabalho dos seus parentes, e se foi interessando pelas dinâmicas e utilidades de todos os instrumentos envolvidos. A sua formação decorreu na Aula de Fortificação e de Arquitetura Militar, na agora Academia Militar, em Lisboa e, com 25 anos, estava já a exercer funções importantes na construção das fortificações de Estremoz, onde foi o principal responsável pelo desenvolvimento do Paiol de Santa Bárbara. Aqui, nomeado ajudante do Exército no Alentejo, trabalhou com o engenheiro António Carlos Andreas.
Ao ser-lhe reconhecido um bom trabalho ao nível das obras militares, foi convidado para trabalhar sob a supervisão de Manuel da Maia, também arquiteto e engenheiro, na construção do Hospital das Caldas da Rainha. Em paralelo, tratou de esquematizar e de elaborar as fortificações da própria Marinha Régia, tendo também intervindo no Real Celeiro Comum. Na base, e considerando a elevada formalidade necessária nos edifícios a conferir forma, está uma linha austera e padronizada de desenvolver os seus trabalhos. Porém, isso mudaria quando se tornou responsável por dar forma a edifícios habitacionais e comerciais urbanos, onde se mostrou mais funcional e disposto a deixar um importante legado para os seus sucessores. Os ideais iluministas assentariam e amadureciam consoante se dedicava aos diversos projetos que encarou durante o seu percurso profissional.
Casando-se em 1747, com D. Francisca Teresa, descendente de uma família importante de arquitetos da corte, tornou-se membro da Irmandade de São Lucas, afiliando-se a uma linha de posições católicas, pois a este se juntou a capitania e a cavalaria pela Ordem de Cristo. Com o crescimento da sua família, viu-se obrigado, pouco tempo depois, a abdicar das suas funções religiosas, mantendo-se somente como arquiteto, e potenciando as valências dos seus recém-familiares. Em 1750, recebeu uma carta de propriedade relacionada com obras nos Paços da Ribeira, na cidade de Lisboa. Seria, além disso, arquiteto do Senado de Lisboa, dos Paços Reais, e diretor da Casa do Risco, onde estaria a coordenar as funções dos vários participantes nos trabalhos realizados na capital portuguesa. Foi precisamente pelas suas funções no Senado que foi recurso mais depressa convocado pelas partes responsáveis no que se viria a suceder naquele lugar.
Com um pecúlio bastante abonatório da sua credibilidade e fiabilidade, e assumindo a função de chefe de engenheiros, foi nomeado inspetor das obras da Corte no ano de 1750, incluindo diversas empreitadas nos paços reais. Porém, foi pouco depois, em 1755, que o seu papel seria ainda mais valorizado. Estimado pelo engenheiro-mor do Reino Manuel da Maia, e secundado pelo húngaro Carlos Mardel, foi convidado a desenhar e a erigir a Praça do Comércio numa Lisboa fustigada pela Natureza, no auge de um revolto maremoto e de um pujante terramoto. Esta incluiu a realização de uma estátua equestre, dedicada à figura do monarca de então D. José I, circundada por uma fila de arcos ampliada e reforçada pelas fachadas uniformizadas dos quarteirões aí plasmados. Isto não foi possível sem antes inventariar os estragos que ocorreram na baixa lisboeta, e na listagem de medidas preventivas e de providências a serem tomadas. É este o espaço que acolhe o arco da Rua Augusta, e o Terreiro do Paço, ampliando as vistas lisboetas para o rio Tejo. Para além desta empreitada, foi arquiteto e diretor da Alfândega Interina, e da Nova Alfândega, sendo responsável pela reconstrução do Tribunal e Cadeia da Relação, na cidade do Porto, ainda no ano de 1750. Este, um edifício dos tempos da dinastia filipina, contou com a cientificidade e o rigor de Santos, capacitando o edifício de caraterísticas suficientes para ser aclamado como a maior obra civil da cidade invicta à data, apesar da grande afluência de arquitetos italianos no norte do país.
Edifício do Tribunal e Cadeia da Relação (renovado em 1865), agora Centro Português de Fotografia
Quanto ao plano urbanista lisboeta propriamente dito, este norteou-se por regras bem estipuladas, num pragmatismo muito ortodoxo e quase científico. A cidade foi totalmente reformulada, e assumiu uma estrutura bem mais organizada e regularizada. Assim, as ruas planificam-se de forma ortogonal, desdobrando-se em traçados e eixos numa simetria perpendicular quase perfeita. A Praça do Comércio foi um dos pontos de referência dessa posição, que se alargou até ao próprio Rossio. As ruas foram meticulosamente preparadas para evitar danos catastróficos de calamidades futuras, seguindo uma apresentação que não prejudicasse o enquadramento antissísmico do planeado. Preocupações com a higiene pública, com o combate estrutural aos incêndios, e com a ligação dos espaços à rede de esgotos foram prioridades assumidas na própria construção formal e funcional dos edifícios. Este plano foi preferido em detrimento de um, que visava a regeneração arquitetónica de Lisboa; e do de Manuel da Maia, que abdicaria de reerguê-la, e que planeava a criação de um novo núcleo citadino, na zona da Ajuda.
Em algumas edificações, o usado para conseguir a feitura desse enquadramento prendia-se com o uso de uma espécie da gaiola feita de madeira, com flexibilidade suficiente para se manter ereta em caso de variações climáticas bruscas. Para além disso, fazia-se rodear de pedras caídas para o lado exterior à casa, evitando males maiores para o interior. Esta proposta urbanística de grande rigor e de linhas norteadoras perfeitamente delineadas serviram como um baluarte de referência para as futuras abordagens citadinas, em especial no que toca ao trabalho arquitetónico. No prisma dos projetos desenvolvidos na capital do país, dirigiu as várias fases do projeto do Mosteiro de São Bento da Saúde, onde atualmente está situada a Assembleia da República. A baixa contaria com somente oito igrejas, as chamadas então “igrejas salão”, despojadas de torres, mas de elevado requinte e ornamentação no seu interior. Este novo modelo não caiu bem no goto do clero, que criticou e manifestou o seu desagrado para com essa futurista experiência.
Planta Topográfica da Lisboa planeada e arquitetada por Eugénio dos Santos e Carlos Mardel
O arquiteto viria a falecer a 25 de agosto de 1760, aos 49 anos, na cidade de Lisboa, onde seria homenageado com uma escola homónima em Alvalade. A sua morte seria um tanto ou quanto abrupta, tendo caído no esquecimento poucos anos depois, e só recebendo novas honras investigativas e de reconhecimento no século XX. Não obstante, emprestou o seu nome a várias referências toponómicas da cidade pela qual tanto fez. Tal como a retumbância que a catástrofe conheceu nacional e internacionalmente, também os esforços de reconstituir a cidade que tão bem observa o Tejo chegou longe, sendo associados principalmente à figura do Marquês de Pombal, Sebastião de Carvalho e Melo, que ordenou que as obras seguissem as intenções do malogrado arquiteto.
Eugénio dos Santos foi um importante mestre-de-obras num contexto determinante, tanto no que toca à problemática que assolou Lisboa, como numa fase de grande aposta em obras públicas, onde a arquitetura conhecia uma série de mudanças temporais. Assumido como precursor do urbanismo arquitetónico, apresentou um currículo com diversas intervenções de vulto, e vários empreendimentos de relevo no desenvolvimento de uma nova geração de edifícios. Estes, caraterizados por serem mais estáveis, seguros, e consistentes, não viram a sua vertente estética beliscada, adaptando-se à função e ao contexto de cada um. Dessa forma, e muito antes do movimento da Escola do Porto surgir, o Iluminismo presentava Portugal com um arquiteto de escala e de reconhecimento real.
A foto de destaque apresenta a Praça do Comércio, onde se destaca o Arco da Rua Augusta, e a estátua equestre de D. José I (1775), de Joaquim Machado de Castro