Fazer cinema do trauma: um encontro sobre assédio sexual em “The Case You”, de Alison Kuhn

por Alexandre Pinto,    7 Fevereiro, 2022
Fazer cinema do trauma: um encontro sobre assédio sexual em “The Case You”, de Alison Kuhn
“The Case You”, filme de Alison Kuhn
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Filme visto na plataforma Filmin, a convite do Goethe-Institut Portugal, no âmbito do KINO – Mostra de Cinema de Expressão Alemã. Está disponível na plataforma até dia 6 de Fevereiro

Foi há cerca de cinco anos (Outubro de 2017) que surgiram as primeiras alegações dos abusos sexuais perpetrados por Harvey Weinstein. Conheço a história — e consigo imaginar uma série de situações que a ilustrariam — mas guardo uma maior impressão da quantidade de casos semelhantes postos a descoberto nas semanas seguintes, regra geral por iniciativa das vítimas, que se uniam em torno de um silêncio finalmente quebrado. Não tenho à vontade suficiente no tema para abarcar tudo o que implica, mas obrigo-me a salientar, por todos: ninguém merece sentir-se insegure, nem com liberdade ou integridade diminuídas. Em qualquer contexto. Em lado nenhum. Em quaisquer circunstâncias.

Mas detenho-me a pensar que isto não é, obviamente, exclusivo ao cinema: isto não se esgota na definição de abuso sexual, que não é só aqui, nem de agora, nem muito menos se resolveu ainda. Na tentativa de demarcar, em definitivo, o que significa o movimento Me Too, socorro-me da Wikipedia: o interessante intróito na página aponta o tweet instigador da sua viralidade — “If all the women who have been sexually harassed or assaulted wrote ‘Me too’ as a status, we might give people a sense of the magnitude of the problem” — mas termina sugerindo uma reformulação em “international movement for justice for marginalized people”. E reparem, por fim, que isto vem a propósito de um filme: The Case You, realizado por Alison Kuhn e lançado originalmente em 2020. Chega agora a Portugal a propósito do Kino no Feminino, e pode ser visto até dia 6 de Fevereiro (próximo Domingo).

Para cenário basta um único palco, onde se dá um encontro físico; é o primeiro entre as seis actrizes que perceberam ter uma história comum na sequência de casting para um outro filme. Alison Kuhn está entre essas seis, mas ocupa agora o lado de trás de uma câmera, e propõe emular, num reenactment em improviso e verdadeiramente em bruto, o que se passou, com todas elas, sob o olhar de uma lente semelhante. E quanto ao resto, sugiro que assistam. A inexistente separação entre actor e personagem resvala o filme para um enquadramento documental, que se assemelha por vezes a uma espécie de processo terapêutico conjunto: assistimos a muitos diálogos e ensaios de situações, cujos pormenores revelam gestos de uma empatia especial, mas não se omite a tensão de um confronto que se intui em todas essas cenas, com as actrizes versus câmera, e o ambiente opressivo que relatam, e as mãos que lhes percorrem o corpo contravontade. E não só.

Vi-o há vários dias e tenho matutado algumas das cenas. Se por um lado não creio que na sua forma haja alguma característica que mereça assinalar, há um motivo muito específico que se repete num par de cenas, revelando uma intenção ousada: a câmera de Alison, que personifica o olhar violador e intrusivo do tal realizador que, de resto, nunca é nomeado (não consegui perceber quem era, nem de que filme se tratou, nem se alguma vez chegou a ter exposição pública), é então o centro das cinco actrizes, em torno do qual se movimentam agressivamente, sobressaltando esse olhar; noutro momento, verbalizam-se algumas palavras de ordem — “sou mais forte do que imaginas” —, mas o impacto é mais reduzido: parece faltar um choque imagético semelhante ao descrito anteriormente.

É claro que a intenção do filme, por tão declarada que é, mereça esquivar-se a desenvolver essa, digamos, dimensão estética. O ponto em questão é outro: estabelecer — definir! — uma prática abusiva e até criminal (o casting abusivo), completando a mensagem com depoimentos das actrizes sobre, por exemplo, expectativas para um local de trabalho são e digno; nesse sentido, cumpre exemplarmente o seu papel; quando arrisca, na própria linguagem do cinema, levar algumas boas ideias a cabo, obtém suficiente sucesso. Mas não é um filme para ser apreciado: é uma mensagem dura, para ser entendida.

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