Fernando Pessoa, Edgar Pêra, café e emergências no primeiro dia do Festival Caminhos

por Diogo Lucena e Vale,    25 Novembro, 2018
Fernando Pessoa, Edgar Pêra, café e emergências no primeiro dia do Festival Caminhos
“Caminhos Magnétykos” (2018), de Edgar Pêra
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Caminhos do Cinema Português, Caminhos Magnétykos (2018). O trocadilho seria fácil, pelo que, desta forma, lhe resisto. O filme de Edgar Pêra que foi apresentado na sessão de abertura do festival juntamente com Como Fernando Pessoa Salvou Portugal (2018), de Eugène Green, segue um homem, ferozmente interpretado por Dominique Pinon, que, num Portugal onde a extrema-direita sobe ao poder, erra à noite por Lisboa, inóspita, após o casamento da sua filha com um magnata próximo do governo. Este homem, vindo de França aquando da Revolução dos Cravos, faz o luto do projeto socialista de Abril, incarnado pela ingenuidade da filha, fatalmente vendido aos interesses do capital, cruzando-se com revolucionários, liderados por Ney Matogrosso, e pelo caminho aprende que “o dinheiro não é tudo”, sem contudo deixar a sua chama revolucionária reacender. Este angustioso transe existencialista é dado forma pelo caraterístico estilo psicadélico de Pêra, que, porém, concomitantemente atrapalha a intenção política da obra, devido à sua tendência para repetir certos elementos como mantras, ao invés de o levar ao desenvolvimento das suas ideias. Não obstante, alguns elementos destacam-se, como a utilização de drones e a câmara fotográfica oferecida pelo magnata ao sogro, uma lembrança da passividade do olhar fotográfico perante os problemas, assim de como a sociedade de imagens em que nos encontramos é fruto de uma imposição, em larga parte, vinda de cima.

Se Caminhos Magnétykos apresentava uma ficção futurista, já a curta de Eugène Green, que teve a sua estreia mundial este verão em Vila do Conde, antes de viajar até Locarno, remete-nos para os anos 20 do século passado, quando Fernando Pessoa escreve o slogan “primeiro estranha-se, depois entranha-se” para a primeira campanha publicitária da Coca-Cola em Portugal. O conceito trabalha em prol de muitos dos pontos fortes de Green, o que é desde logo evidente pelo seu mergulho na arquitetura portuguesa ao som de Camané nos minutos iniciais do filme, mas se há um que se destaca, este é sem dúvida o seu sentido de humor, o que se reflete na expressividade facial de Carloto Cotta, bem acima daquilo que se espera de um ator num filme de Green, embora mantenha a dicção fria e seca. Na sua simplicidade, Como Fernando Pessoa Salvou Portugal é extremamente incisivo, levantando muito interessantes questões sobre o papel da linguagem poética numa sociedade capitalista tardia; isto é, no contexto do espetáculo, de que forma podemos diferenciá-la da linguagem publicitária, se é que o podemos fazer de todo? Na cerimónia de abertura houve ainda lugar para uma performance algo desconfortável e inadvertidamente cómica, uma espécie de dança com glow sticks glorificada, acompanhada musicalmente por nada mais, nada menos que um arranjo orquestral de “Faded”.

Contudo, antes de toda esta azáfama, por altura da cerimónia de abertura, já o dia ia longo. A nova secção do festival, Outros Olhares, dedicada a cinema experimental, havia estreado com uma eclética seleção de curtas-metragens, entre as quais Os Motivos de Reinaldo (2018), de Ricardo Vieira Lisboa, um vídeo-ensaio construído a partir de imagens dos recentes restauros de dois filmes de Reinaldo Ferreira, às quais foram adicionados sons que se repetem com os gestos, conferindo ao filme uma agradável aura cómica. Um curioso, ainda que leviano, exercício em cinefilia, ao qual se seguiu Cimbalino (2018), de Jerónimo Rocha. Este apresenta imagens muito aproximadas de diferentes fases do processo de tirar um café, às quais é sobreposta uma narração de uma senhora que descreve os diferentes sítios onde tomava a bebida. A obra assemelha-se a um vídeo do género dos da Buzzfeed, não conseguindo ir além do exercício estético, mas a sua escolha do cimbalino como ponto de partida confere-lhe alguma humildade que a muitas obras contemporâneas abstratas falta. Destaque ainda para Onde o Verão Vai (Episódios da Juventude) (2018), exibido na seleção Ensaios. O filme de David Pinheiro Vicente, em competição no festival de Berlim deste ano, retrata um grupo de jovens numa viagem até a um rio, onde passam a tarde. A cuidadosa observação salienta a crescente tensão sexual entre eles, como se naquele recanto houvessem encontrado um pequeno paraíso hedónico, onde os corpos latejam a cada gesto e a sensualidade transborda para a própria natureza. Uma obra muito promissora.

Na primeira sessão do dia foi apresentado Turno do Dia (2018), de Pedro Florêncio, estreado no último DocLisboa, que observa a central de emergência médica da linha 112, na sede do INEM. Uma tapeçaria de pequenas histórias que percebemos apenas através das falas dos trabalhadores do INEM, este filme é tanto sobre eles como sobre a fragilidade do sistema e o seu uso desinformado pelas pessoas do outro lado da linha. Destes trabalhadores, vemos tanto o esforço para lidar com situações em que alguém se encontra em perigo de vida, como a sua frustração perante pessoas não colaborantes, telefonemas para pedir informações ou ainda situações médicas que não constituem qualquer tipo de emergência, às quais é enviada ajuda, apesar de tudo. Um filme semelhante poderia ser feito nas urgências de um qualquer hospital, sobre pessoas que recorrem a este serviço com problemas que não requeriam este tipo de ação. Turno do Dia pretende assim consciencializar, pelo que merece todo o público que lhe possa ser dado. Ao mesmo tempo, pelo foco ser precisamente nestas chamadas e nos profissionais envolvidos, não se percebe a necessidade que o realizador terá sentido para incluir o primeiro e último planos do filme, que não servem qualquer propósito. Felizmente, em pouco isto fere a pertinência da obra.

O primeiro dia do Festival Caminhos do Cinema Português deu, assim, o mote para a atual edição, onde se poderá encontrar uma seleção eclética de muito do cinema produzido em Portugal – e não só –, tanto apresentado ao longo do último ano, como aqui em estreia. É pena, por isso, que a pequena mancha das dificuldades técnicas tenha também marcado este primeiro dia de um festival de resto cheio de vitalidade: a somar à habitual fraca qualidade do projetor do Teatro Académico Gil Vicente, que faz as projeções assemelhar streams vistas com uma lenta ligação à Internet – nesse sentido, o pacato Mini-Auditório Salgado Zenha apresenta condições bem melhores -, na sessão de abertura, Caminhos Magnétykos foi visto com parcial dessincronização do som.

A 24.ª edição do Festival Caminhos do Cinema Português toma lugar em Coimbra de 23 de novembro até dia 1 de dezembro.

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