Festival MED: segundo dia de música do mundo em Loulé
Sexta-feira, início de fim-de-semana, traz sempre uma maior enchente ao festival MED. Este ano não foi excepção, verificando-se uma maior afluência ao festival, resultando em momentos em que algumas das ruas estreitas do centro histórico de Loulé se tornam praticamente intransitáveis. Apesar do vento, que soprou mais forte ontem, os louletanos e demais povo não quiseram deixar de assistir aos concertos de artistas como Lura, Rodrigo Leão, Throes + the Shine, Bnegão, Oquestrada ou Boogat. Fazendo a inevitável comparação com o primeiro dia do certame, diríamos que este segundo teve um nível de qualidade ligeiramente superior. Para além disso, houve um encadeamento e fluidez na sequência dos concertos que proporcionou uma experiência musical muito interessante.
Geralmente bem representado neste festival, o fado voltou a marcar presença neste segundo dia, pela voz de Hélder Moutinho. Notoriamente mais tradicional que a colega de profissão Ana Moura, que actuou no dia anterior, faz-se rodear de um trio de guitarra portuguesa, viola de fado e baixo acústico. Equilibrando o fado menor e maior – cujo melhor exemplo é o “Fado Menor Maior” – Hélder Moutinho envolve o público na sua voz possante, cantando num crescendo sonoro até atingir o clímax emocional, que arranca interjeições de admiração e fortes aplausos do público que o ouve atentamente. Faz referências aos diversos autores das canções que vai apresentando, das quais a mais importante dirige-se ao grande Alfredo Marceneiro, homenageado por Moutinho de forma competente.
À mesma hora do dia anterior, o Palco Cerca não via metade das pessoas que marcaram presença no concerto de Lura, a cabo-verdiana encarregue de inaugurar o palco no último dia de Junho de 2017. A sua presença carismática inspira o público a bambolear-se como searas ao sabor do vento. Diz-nos que o seu último álbum, Herança, é dedicado à força da mulher, algo que a mesma personifica aguerridamente. Dança freneticamente e canta a plenos pulmões. Inspirada pelo que a mãe lhe dizia quando era mais pequena, que “meninas não podem assobiar”, assobia como se a sua vida dependesse disso, pois tem a liberdade de o poder fazer. Ajuda o público a aquecer a voz para se juntar a si a cantar o seu maior êxito, “Na Ri Na”, num dos momentos de maior comunhão deste segundo dia de MED.
Antes de irmos ver Rodrigo Leão, espreitamos o final da actuação dos Mawwál no palco localizado no Jardim dos Amuados. Fechamos os olhos e imaginamos as cores do nascer-do-sol no céu, por detrás da Mãe Soberana de Loulé, ao mesmo tempo que ouvimos esta música levíssima, deste projecto marroquino/espanhol.
Rodrigo Leão levou a sua ensemble ao Palco Matriz para interpretar a sua música cinemática, que nos faz pensar que ele é o nosso Yann Tiersen. As peças pegam em diferentes estilos, usando-os a seu proveito para atingir o seu objectivo, provocar emoção nas pessoas. Mesmo um pequeno interlúdio que o conjunto apresenta tem uma carga emocional formidável, que infelizmente caiu em saco roto, fazendo-se ouvir um burburinho desagradável enquanto a banda o toca. No entanto, quando a intensidade sonora se avoluma e o público se vê envolvido na música, o seu poder é inegável. Ana Vieira empresta a sua voz aveludada às composições do artista e mostra-se à altura da tarefa, especialmente na incrível “A Corda”.
Chegamos ao Palco Castelo no início da actuação dos Oquestrada, que fazem o aquecimento, com cada instrumentista a demonstrar os seus dotes musicais. Quando o acordeão, contrabaixo e guitarra portuguesa se juntam em amena comunhão, o público responde abanando o corpo ao ritmo do contrabaixo, embalado pelas melodias castiças das canções. Marta Miranda, a magnética vocalista, diz-nos “gosto tanto desta canção que nem me apetece cantar”, contentando-se com fechar os olhos, sorrir desmesuradamente e dançar uma valsa solipsista. É por isso que os Oquestrada funcionam tão bem, há uma naturalidade e felicidade genuínas de quem já anda na estrada desde 2001, e isso passa para quem os ouve.
Seguindo o registo de orquestra inusitada, os italianos Canzoniere Grecanico Salentino enchem o espaço do Palco Cerca com som. Muito som, vindo da concertina, da gaita-de-foles, do violino, dos elementos de percussão e das inúmeras vozes, ao qual se junta o som surdo da dançarina Silvia Perrone. O público salta e faz a festa com estas canções tão cheias, que se inspiram na típica tarantela italiana, ao mesmo tempo que adicionam variados elementos. Gostamos bastante, mas chega a altura de ir fazer a festa para outro lado.
Boogat – mexicano nascido no Canadá – e a sua banda apresentam no Palco Matriz o seu hip-hop infundido de música latina. Pergunta-nos se conhecemos a cumbia. Nós perguntamo-nos quem não conhece a cumbia. As canções vão passando ainda pela bachata ou pelo reggaeton, sempre regadas com um trompete bastante mexicano. Dedica uma canção aos solteiros, porque “toda a gente precisa de carinho”; leva-nos numa viagem musical a Montreal, onde diz haver muitos portugueses, “pessoas lindas”. Todos estes pequenos mimos são-nos dados no seu português imperfeito, mas bastante competente, e ajudam o público a ligar-se a Boogat.
Para quem já viu os Throes + the Shine, torna-se divertido ver a reacção de estreantes nos seus concertos ao ver os dois MCs angolanos, André do Poster e Diron Romão, invadir aquilo que aparenta ser o concerto de uma banda de rock experimental, à primeira vista. Esta colisão de dois mundos torna-se tão natural, que a cadência matemática da bateria de Igor Domingues toma logo contornos de kuduro, resultando na fusão a que a banda chama ‘rockuduro’. Independentemente do nome, funciona, pois o público salta, dança, faz moches, aplaude, uiva, e a banda não se fica atrás na festa.
Simultaneamente, no Palco Cerca, o brasileiro Bernardo Santos, ou Bnegão, faz o seu rap interventivo ao som de canções que passam pelo funk, reggae ou dub, sempre com muito boa onda. Faz-se acompanhar dos Selectores de Frequência, a banda que, possivelmente, apresentou o som mais coeso do festival até agora, em que tudo encaixava na perfeição, até dando azo a alguma experimentação. Esperámos até ouvir o discurso político que já se antevia e não desiludiu. Bnegão falou de que havia um vampiro entre nós, um presidente que não é o nosso (do povo brasileiro) presidente, e urgiu a nós, portugueses, que não o reconhecêssemos como tal e desprezássemos a sua opinião. O público do MED não pareceu estar dentro da narrativa política do Brasil, mas a importância da mensagem ofusca a sua recepção morna.
Para terminar a noite, o Discossauro voltou a atacar o Palco Bica com o seu arraial tropical, mas desta vez fez-se acompanhar do Chewbacca Latino – cujo aspecto não preciso de descrever, pois o nome é suficiente – que levou o seu kit de tímbales, adicionando ainda mais ritmo às canções latinas. Por outro lado, no palco Matriz, o marroquino H.A.T. traz a música tradicional africana, brasileira ou asiática para a actualidade da EDM (electronic dance music). Às batidas techno apuradíssimas e baixo apocalíptico, adiciona camadas de samples de instrumentos tradicionais ilustrados em vídeos projectados atrás de si, numa perfeita sincronia com a música. Esta música electrónica intrincada não agradou a todos, alguns dos quais se mantinham por lá na expectativa de bater o pé, acabando por simplesmente usar a música como pano de fundo para as suas conversas.
Este segundo dia de festival MED trouxe mais consistência e qualidade, e mais público para assistir aos concertos – assim como as boas e más consequências deste facto. Resta o último dia, o que geralmente apresenta a maior enchente. Lá estaremos para verificar se o festival se mantém à altura e como o público reagirá aos concertos que decorrerão, depois de dois primeiros dias que muito satisfizeram o ouvido (confiram aqui a nossa reportagem do dia 29).
Fotografias cedidas pela organização do festival