“#FFFFFF” de ProfJam é um exercício de espiritualidade
Conversão. A palavra remete-nos para uma mudança de identidade, um ritual de purificação, um absorver de uma doutrina. É um momento em que nos despimos do passado para entrar numa nova etapa, em busca de tranquilidade e paz interior. Há um misticismo inerente a este processo, algo que requer uma fé inabalável, uma confiança em algo superior à nossa existência a três dimensões. #FFFFFF é um álbum onde ProfJam almeja a conversão. É algo diferente, uma nova etapa no percurso do rapper Mário Cotrim, um momento em que se entrega a algo superior, mostrando-o com convicção.
Ao longo do seu álbum de estreia produzido maioritariamente por Lhast, ProfJam guia-nos pelos vários passos da sua viagem espiritual. Depois de The Big Banger Theory e da reservada Mixtakes o artista aposta em algo mais maduro, com uma vertente conceptual mais desenvolvida. “À Palavra” abre o projecto a discutir a sua vocação e a música é uma introdução forte, aliando 808’s destruidores a uma sonoridade mais expansiva e misteriosa, algo de ritualístico provém das teclas. ProfJam desabafa sobre o passado, o beat é o seu “sofá”, até ter uma epifania explosiva de espiritualidade e de consciência cósmica, e com este tema dedicado à palavra mostra que ela continua a ser uma peça central na sua música.
Mas é em “O Hino” que mostra exactamente como é que essa peça se encaixa, exibindo com veemência a destreza e a facilidade que tem na arte fonética e na conjunção silábica. Esta música é o seu conjunto de mandamentos, e as barras disparadas são testemunhas de Jeová que arrombam a porta ao pontapé. O beat silenciosamente ameaçador de Holly oferece um lugar de destaque para uma das virtudes de Cotrim: abraçar as tendências actuais com entusiasmo e sem nunca esquecer que tem flows e barras para o mais ágil dos adversários. “Nasci ‘pa me tornar texto!” ouvimo-lo brandir sob uma batida sem tempo a perder em “Na Minha”, uma canção primária e pouco assertiva com um bom hook. Com essa frase resume a máxima que continuamente abraça, algo bem evidente na sua cadência.
Egotrip e flows avassaladores à parte, o rapper prima pela sua honestidade. Em “Água de Coco” vemo-lo despedir-se das banalidades, mostrando-se cosmicamente superior. Canta a sua alma, a sua meta, num tom a roçar o grito e suportado pelo auto tune, um sucesso que se mostra agridoce devido à batida emotiva e pensativa, um belo momento de reflexão e o single mais emocional de #FFFFFF. “Na Zona” mostra a outra face da moeda: preso numa rotina pouco saudável, discute o lugar isolado onde se encontra, refugiado em drogas e na solidão da sua mente entorpecida. A batida, com pratos mais “descalços” e uma energia menos digital, é dançável e leve, contrastando os temas pesados que discute e demonstrando uma dualidade interessante. Depois de rejeitar aquilo que é trivial, conta-nos histórias de momentos em que se afunda num mar de dormência.
Cotrim desabafa sobre o que deseja, sobre o que espera alcançar depois da sua conversão e sobre momentos que o fizeram questionar a caminhada. Mas há coisas que não mudam, especialmente no que toca à sua família. Munida de umas congas solarengas e despreocupadas, “À Vontade” é um tributo à família de Cotrim, e como o rapper sente que é a sua vez de providenciar para eles. Numa música sobre a sua família de sangue o rapper apresenta a única feature do álbum, Fínix MG, membro da sua família encontrada na Think Music. O flow do convidado é recatado, mais escondido para compensar a emoção que mostra nas suas palavras, direccionadas especialmente para ProfJam. Mas num dos momentos mais emocionais do projecto, o flow e temas discutidos de Cotrim não espelham o carinho e emoção da música.
A energia do discurso final do tema – embelezado por bonitas cordas – deveria estar presente no verso, a sinceridade e timidez que ouvimos não transparece no resto da canção. Ainda assim, o final de “À Vontade” peca por um motivo: o uso de auto tune. O desabafo final perde intimidade ao dotar de um tom metálico as palavras de amor de Cotrim, nem num momento tão catártico o rapper se põe à vontade. Há momentos em que o auto tune é usado com critério – no refrão possante da esmagadora “Caveira”, nos “berros de louco” ao longo de “Água de Coco” ou no final tresloucado da última estrofe de “Na Minha” – mas neste caso é uma má aposta, torna artificial algo que devia ser natural e despido de efeitos.
Critério é o que notamos que por vezes falta. Vemos vontade mas a sua aplicação nem sempre se traduz como o rapper deseja. Há empenho em tornar o projecto mais conceitual e coeso, algo visível em “Se Calhar”, a música que encerra o álbum. O hook é arrastado, como se estivesse sem fôlego no fim da viagem transformativa, e questiona tudo à sua volta, é ambíguo, e o final de bloquear supremo de frequências sonoras é um excelente detalhe que por um lado pode simbolizar a união com tudo ou por outro a ausência de tudo. De forma contrária, o interlúdio que ouvimos no último terço do álbum surge completamente deslocado do restante ambiente, uma gota hidrofóbica e pouco eficaz num mar de bangers, emoções e questões interiores, sem grande propósito ou ligação com o que o precede ou com o que vem a seguir.
#FFFFFF é um exercício de espiritualidade. É uma comunhão entre o terreno e o celeste e sentimos que de facto Cotrim se converteu em algo diferente, sem esquecer o passado e de olhos cerrados no futuro. Mas depois de ouvirmos o álbum não é claro o que essa transformação foi. Transparecem as ambições do artista mas falta-lhe conteúdo, anda à volta dos mesmos temas e nem sempre os explora da melhor forma. Estamos perante um homem novo e uma nova interpretação do propósito central da sua existência, a música. Mas ainda que seja clara a mudança, não é claro que Cotrim tenha encontrado o que quer que seja que está à procura.