Filha de um Portugal menor
Confesso que receber a notícia de que a Sara Tavares havia partido deixou-me triste, e inquieto. A caminho de casa, recebo uma mensagem dos meus primos partilhando um link com a notícia da sua morte. Era fim de dia, e ele não podia terminar da pior forma. Tive contacto com a Sara Tavares ainda em São Tomé e Príncipe, país que me viu nascer e crescer, eu lá, ela cá. Mi ma bô. Quando me mudei para cá passei a ter acesso a mais músicas suas, ao poder das suas palavras, e às pessoas que desde cedo aprenderam a admirá-la e a ver nela um ponto de luz, o que me fez perceber também o poder da sua existência. Curioso ou não, a música “Ponto de luz” foi aquela que mais vi ser partilhada nas minhas redes sociais pelas pessoas que aprenderam a admirar a idolatrar a artista e o ser humano Sara Tavares. Foi ela o candelabro que iluminava o sonho de muitos e muitas que nasceram num país que os impedia — ainda o faz — de sonhar.
“Sara Tavares merecia mais. Muito mais do que notas de rodapé, tweets, uma nota de pesar vazia, e uma homenagem improvisada num programa de talentos. Merecia e merece mais.”
Após a notícia da sua morte, as redes sociais transformam-se numa espécie de ponto de encontro onde se fazia uma vigília em sua homenagem, à sua memória. Houve quem partilhasse áudios trocados com a Sara, onde era possível ver a sua doçura, houve quem partilhasse histórias, músicas e momentos vividos com a artista. Enquanto isso nos canais de televisão continuavam as mesmas notícias do costume, com os mesmos comentadores do costume, a dizer os mesmos nada de costume. Não fosse este um país de costumes. Era como se tivéssemos presentes dois países distintos. O que tinha perdido uma das figuras mais importantes da sua arte. E outro: o que não quer saber. Por muito menos interromperam-se emissões, fizeram-se diretos, e emissões especiais.
Sara Tavares era portuguesa. Nasceu em Portugal. Venceu um concurso de talentos em Portugal, participou no Festival da canção da RTP, em Portugal, e representou Portugal, ficando em oitavo lugar no Festival Eurovisão da Canção. Sara não pediu licença, não pediu favor. Entrou pela casa das pessoas através da televisão, e com o seu talento conquistou o coração de muitos e inspirou outros tantos que viam pela primeira vez uma artista negra a conquistar o seu espaço. A mesma televisão que anunciava a sua chegada é a mesma televisão que ignorava a sua partida.
É a mesma televisão que em 2018 decidiu pregar a Sara Tavares uma das armadilhas mais abjectas que já vi ser feita, quando no programa do Herman José, na RTP 1, este decide dizer “realmente Portugal não é um país racista, é um país verdadeiramente intercultural”, até porque o Matias Damásio havia-lhe dito que vê brancos a dançarem músicas africanas, forçando uma concordância por parte da Sara, visivelmente desconfortável, o mesmo Herman José decide perguntar a Margarida Rebelo Pinto se esta era dada a amores coloridos, que prontamente responde — “eu não sou dada a etnias” — para o contentamento dos outros convidados, e para o mais profundo desconforto de Sara Tavares. Razão tinha o Herman, Portugal não é um país racista por isso é que a Margarida Rebelo Pinto disse o que disse, por isso é que os outros se riram muito, e por isso é que se contam pelos dedos das mãos pessoas da cor da Sara nos lugares ocupados por Herman, e outros, durante anos. Não é, de facto.
“É cada vez mais claro que Portugal e as suas gentes não gostam que lhes apontem o dedo, mas é miserável a forma como este país trata aqueles que também são suas gentes, por muito que lhes custe a aceitar esta realidade.”
Já que no dia da sua morte as televisões pouco ou nada disseram sobre a sua morte, tive o cuidado de esperar pelo dia seguinte. Até à hora do Jornal da Tarde pouco ou nada se disse. E o que aconteceu foi o seguinte: a RTP 1 abriu o Jornal da Tarde com a eleição do novo presidente na Argentina, relegando para o fim a notícia da morte da Sara, depois das notícias sobre a seleção, afinal de contas os recordes de Ronaldo são importantes, e as bolas na trave do Otávio não ficam atrás; no Primeiro Jornal da SIC tive de esperar 1h16m para saber que a Sara já não estava entre nós. O canal dedicou-lhe uma peça de 9 minutos, ao contrário da RTP (4 min, sim, contei). Por fim, a TVI, no TVI Jornal, também relegou para o fim do jornal a notícia da sua morte, logo a seguir à notícia de que a Shakira tinha feito um acordo para não ir presa num crime de fraude fiscal. É cada vez mais claro que Portugal e as suas gentes não gostam que lhes apontem o dedo, mas é miserável a forma como este país trata aqueles que também são suas gentes, por muito que lhes custe a aceitar esta realidade.
Sara Tavares merecia mais. Muito mais do que notas de rodapé, tweets, uma nota de pesar vazia, e uma homenagem improvisada num programa de talentos. Merecia e merece mais. Lembro-me bem dos “obrigado Carlos do Carmo” espalhados por Lisboa. Azar teve Sara Tavares porque quis deus que fosse filha de um Portugal menor.