‘First Reformed’: a descoberta religiosa do mundo moderno e a carta de amor ao cinema
Quando se fala de Paul Schrader é inevitável a referência a “Taxi Driver” e “Raging Bull”, cujos argumentos escreveu para Scorsese realizar aquelas que são, para muitos, as melhores obras do cineasta da Nova Hollywood.
Ao observar a palpável espiral descendente do pastor de igreja Ethan Hawke, e à medida que se vai interiorizando o mundo que o rodeia, vai-se criando um inevitável paralelismo com o veterano de guerra Travis Bickle, taxista em permanente solidão, absorvedor inconformado do mundo sujo que o rodeava nos anos 70. Esta presença torna-se espiritual, uma de várias características que norteia este “First Reformed”. O obra de Schrader pode-se rotular, sem pudores ou ansiedades, com o título de melhor filme da carreira do realizador. Não tapando o sol com a peneira, sempre se dirá que nesse campo a carreira do veterano Schrader está longe de ser luminosa. Dir-se-ia mesmo que atrás da câmara esse percurso tem roçado a mediocridade, com um certo recente cinema trash de mau gosto e que tem sido, a par de outras, uma das razões pelo descrédito de Nicolas Cage enquanto actor nos anos recentes. Provavelmente, desde 1997, com “Affliction”, que Schrader não filmava algo pelo menos vagamente interessante (“First Reformed”é já a 21.ª longa-metragem da sua carreira), e é curioso ver que, tal como o padre aqui interpretado por Ethan Hawke, parece que Schrader teve finalmente o seu momento de despertar, como se estivesse adormecido ao longo de décadas. E que forma de despertar!
Não se coibindo de dar campo de expansão às principais influências de “First Reformed”, e observamos a olho nu à partida um tal de Ingmar Bergman e uma das suas jóias, “Winter Light” (1963), Schrader assenta nas bases dos seus mestres para filmar um debate interior de personagem moderno que raramente se vê nos dias de hoje, indo buscar temas tão íntimos e abstractos como a religião e a culpa, e por outro lado temas tão contemporâneos e científico-filosóficos como o aquecimento global. É ao cruzar estes mundos, o da teologia moderna com as problemáticas científicas que raramente chegam à consciência e percepção de determinadas populações, numa tela de remorso e debate interior de personagem, que “First Reformed” se torna num objecto fílmico de excelência, refrescante na sua apresentação datada e nos seus diálogos ausentes de acção física.
Além da alusão Bergmaniana, Schrader invoca ainda os seus três “heróis”, os três mestres sobre os quais se apoiou para escrever “Transcendental Style in Film: Ozu, Bresson e Dreyer”, livro editado em 1972, tinha Paul Schrader apenas 26 anos, e que se mantém até hoje como um dos essenciais para o mundo do cinema. Em “First Reformed” observamos uma tela em 4:3, evocando esse enquadramento antigo, pré-anos 70, como filmavam os seus mestres. Suporte para os cenários rígidos e simétricos no cinema do mestre japonês Ozu, transposto para a tela de “First Reformed” pelo cinematógrafo Alexander Dynan, esse enquadramento permite encerrar nos seus pensamentos auto-destrutivos o pastor Toller – para muitos a melhor interpretação até ao momento da carreira de Ethan Hawke -, mas também para o libertar quando o coloca frente a frente, simetricamente lá está, com a grávida e sozinha Amanda Seyfried, membro da sua congregação, dizendo-lhe que adorava ir visitá-la a Buffalo, no Norte do Estado de Nova Iorque, e conhecer o seu filho, ou olhando o companheiro de Seyfried nos olhos, questionando a destruição ecológica que o Homem está a fazer à criação de Deus.
Será assim moralmente correcto trazer à Terra uma criança que viverá num mundo poluído e devastado pela fúria da indústria humana? Questiona-se Hawke, enquanto escrevinha no seu diário e se debate com uma misteriosa dor de estômago, invocando outro dos seus mestres, Bresson, e o seu “Diary of a Country Priest” (1951). Inesperadamente a dada altura, Schrader chama igualmente o cinema transcendental de Carl T. Dreyer, particularmente “Ordet” (1955), para um dos momentos mais enigmáticos do filme e um dos finais mais provocantes e desconcertantes do últimos anos. Sem dúvida “First Reformed” é obra maior que terá espaço próprio na história do cinema, no entanto a suas características mais cerebrais e auto-conscientes retiram-lhe alguma da visceralidade que podia atingir.
Em forma de conclusão, “First Reformed” não se fica apenas pelo esboço de ideias abstractas e contemplativas da natureza humana, como fazia Bergman, deixando o espectador em suspenso nos seus pensamentos durante e após o visionamento dos seus filmes. Aqui, Schrader concretiza essas ideias em acções das suas personagens, dá-lhes palpabilidade, como faz ao introduzir no seu texto a promiscuidade entre as grandes indústrias, a política e o aquecimento global e a destruição dos ecossistemas. É nessa variedade de tópicos, enumerados, que procuramos, por vezes sem sucesso, ver reflectido o estado de alma do pastor de Ethan Hawke. Vemo-lo sim a desintegrar-se e a sacrificar-se por nós como Jesus havia feito há 2 mil anos. No entanto, parece que falta alguma peça de puzzle específica, algo que complete o reverendo Toller para que possamos completar na perfeição a grande cruzada que é a filosofia de “First Reformed”, além da soberba carta de amor ao cinema e aos grandes mestres de Schrader que sem dúvida ficou bem entregue.