Flávio Ferreira: ‘Herzog fala da literatura como ponto de conhecimento obrigatório para se fazer cinema, Erice parte da pintura’
As portas do cinema – e do mundo – abriram-se para Flávio Ferreira quando, em 2016, venceu a “Bolsa EDP Manoel de Oliveira”. Depois de uma aventura por Cuba com Werner Herzog, com o qual filmou “Norley y Norley” que irá passar no DocLisboa, Flávio visitou Espanha para trabalhar com outra lenda do cinema: Víctor Erice.
Durante uma semana viveu, aprendeu e filmou com o mestre espanhol, realizador de “Spirit of the Beehive” (1973) e “El Sur” (1983). O resultado materializou-se numa curta-metragem de 11 minutos, um estudo da solidão e dos espaços abandonados de uma pequena cidade da província de Ourense.
A “Comunidade Cultura e Arte” tem o prazer de estrear aqui o novo trabalho do jovem realizador português: “Tóen” (2017). Antes de partir para outra viagem cinéfila – desta vez para a Costa do Marfim – o Flávio sentou-se à conversa connosco. Falou-se de Werner Herzog, Víctor Erice, de projectos passados e projectos futuros.
Como foi trabalhar com Víctor Erice?
Foi bastante interessante, este workshop tinha pontos em comum com o que tinha feito previamente em Cuba. Também exigia a produção de um filme sob alçada do mentor, no entanto, e infelizmente, também teve algumas diferenças notórias que certamente afetaram o processo drasticamente. Por exemplo, o facto de não estarmos alojados juntos veio trazer um certo distanciamento entre os colegas mas acima de tudo com o Erice.
Dito isto, o Erice revelou-se um verdadeiro conhecedor de cinema, alguém que já refletiu imenso sobre o que é cinema e como se faz cinema, alguém interessado e apaixonado pelo que estávamos a fazer.
Há comparação possível entre Erice e Herzog?
Enquanto o Herzog fala da literatura como ponto de conhecimento obrigatório para se fazer cinema, o Erice parte da pintura.
Os teus filmes de escola foram retratos humanos, mas com o filme em Cuba e este em Espanha, começas a explorar cada vez mais os locais em que filmas. É algo que tens interesse em fazer? Na Covilhã, por exemplo, uma cidade marcada pelo êxodo fabril.
Ambas as experiências, tanto em Cuba como Espanha, levaram-me a explorar locais novos para mim, o que se refletiu sempre na forma como filmei a minha reacção a esses locais. Penso que uma pessoa é marcada também pelo local onde está como tal, quando caracterizo alguém, também existe uma necessidade de contextualizá-la espacialmente, mostrar o seu ambiente, onde vive, onde convive.
Espero que seja uma tendência que se mantenha. Quanto à Covilhã, felizmente já existem dois documentários produzidos na UBI muito competentes sobre esse mesmo tema.
Porquê os temas da solidão e a escolha de filmar um sem-abrigo em espaços abandonados?
Eu tentei fazer uma reflexão do local que estava a filmar, o homem de Toén é como se fosse uma representação humana do local atual, um reflexo do sofrimento do local, da frustração com o estado deplorável de um sítio com tanta história, de um abandono de uma história rica e complexa. Um género de um fantasma a pairar ali.
Aqui tentei explorar não só o tema da solidão mas também do silêncio. Nestes workshops é interessante explorar algo novo, arriscar de alguma forma. Nos dois últimos filmes tentei fazê-lo, no entanto ambos acabaram por convergir num ponto: são filmes sem diálogos. Um retrata uma ligação tão forte entre dois irmãos que nem precisam de falar entre eles. Neste reflete-se a solidão do lugar e do homem.
Qual foi o teu processo para encontrar este filme?
Comecei por procurar locais interessantes fora de Ourense. Não tinha interesse em filmar na cidade, pois sabia que a maioria ia explorar esse local, por isso fui com um colega meu – também participante no workshop com Herzog – visitar uma série de aldeias nos arredores. As pessoas revelaram-se bastante fechadas e desconfiadas, sempre com receio de que fôssemos ladrões. Assim, abandonei o ângulo documental e procurei a ficção. Acabei por eventualmente descobrir Toén, um enorme hospital psiquiátrico abandonado.
Apesar do seu abandono ser recente, quase não havia janela intacta e a maioria das paredes estavam grafitadas. Num dos dias encontrei um grupo de homens a cortar pedaços de uma enorme estrutura de metal – que noutros tempos foi uma estufa. No dia seguinte quando lá voltei toda a estrutura tinha sido removida. Era habitual as pessoas retirarem de lá qualquer coisa que achassem de valor… eu tentei retirar um filme.