“Flee”, de Jonas Poher Rasmussen: um retrato urgente de humanidade
Este artigo pode conter spoilers.
O burburinho mediático em torno de “Flee”, que há algumas semanas estreou em território nacional, foi intensificado pelo seu relativo sucesso nos Óscares: esteve nomeado para melhor filme internacional — co-produção entre Dinamarca, Suécia, Noruega e França — mas também melhor animação e documentário: são duas categorias que intuem, à primeira vista, uma contradição formal, mas que constitui apenas parte do que poderá explicar este bom fenómeno.
“Tanto humana como técnica, da equipa de realização do filme: construíram tudo a partir de memórias alheias, criaram uma linguagem própria para a sua representação, e empreenderam esforços para respeitar a identidade e as histórias de Amin.”
“Flee” narra a jornada de um cidadão afegão, Amin Nawabi, nascido algures na década de 90, que pretende fugir do seu país e da guerra na qual seria obrigado a participar; mas não só foge deste conflito numa condição precária de emigrante/refugiado, como trava, ao longo de tudo isto, um permanente diálogo íntimo com a sua secreta homosexualidade — é, por isso, uma dupla marginalização, que define os traços fundadores do sujeito a quem se dedica um arco especial, em retrospectiva, de coming-of-age.
O relato a partir do qual “Flee” se constrói sobrevém numa série de entrevistas que Amin dá ao realizador Jonas Poher Rasmussen, francas e íntimas e de uma energia algo terapêutica, e que posteriormente ouviremos acompanhadas por imagens animadas — tomou-se esta decisão formal por forma a manter anónima a identidade do protagonista, que aliás se apresenta com um pseudónimo. O momento presente do filme é esta vida adulta que recorda memórias, cujo desenrolar será posteriormente interpretado pela equipa de animação e realização, reconstruindo apartamentos onde viveu, paisagens por onde passou, e episódios da infância passada no Afeganistão; em simultâneo, também se recorre a imagens de arquivo que documentam a guerra nesse país e outros momentos chave da narrativa, essenciais para relembrar a veracidade do que, em paralelo, se passa na macro-narrativa.
A ultra-positiva recepção a “Flee” não se explica apenas pela eventual novidade do formato documentário animado, que não é inédito; reside também na humanização de vários episódios secretos e clandestinos, inerentes à condição de quem escapa, desesperado, e entrega as suas vidas a redes de tráfico humano. A violência desses relatos não se apazigua com a animação; é, de resto, a única forma de lhes dar imagem, e trazê-los ao ecrâ de cinema.
Fica a nota da sensibilidade, tanto humana como técnica, da equipa de realização do filme: construíram tudo a partir de memórias alheias, criaram uma linguagem própria para a sua representação, e empreenderam esforços para respeitar a identidade e as histórias de Amin. Como resultado do exercício, além do notável feito biográfico, fica também um pungente relato da condição geral de refugiado, marginalizado da básica e fundamental condição humana — e é por tudo isto que “Flee”, agora, no passado e nos próximos tempos, é um filme urgente.