Flores no cu
Por vezes, quando fico sem assunto para uma crónica, chafurdo nas notícias como um animal que chafurda em coisas à procura de algo. Nessas alturas costumo evidenciar pouca imaginação para metáforas. Vou almoçar sozinho e passo a hora a investigar. Há dias, numa dessas sessões, fiquei novamente à frente do “cara de assassino”, com quem tive uma pequena altercação que já aqui contei. Ignorei-o.
Encontrei uma notícia que já tinha mais de um ano: “Homem vai beber copos de vinho minutos depois de ser baleado na cabeça”. Aí está um tópico interessante. Como pegar nisto? Como torná-lo melhor do que é? Parece impossível. Por um lado, tem potencial para história infantil. Com final feliz. Na minha mente há aqui uma mistura de fábula de La Fontaine com quadro de Edward Hopper (com uma cabeça aberta). Melhor: La Fontaine com Hopper e Peter Jackson de início de carreira. Foi a empregada do café que o alertou que tinha “sangue na testa”, na qual se alojava a munição de calibre 6.35 mm, pelo que o homem se levantou e foi a pé para o centro de saúde. Também noto aqui referências a “The Black Night” dos Monty Python, claro, e um eventual John Wick passado em Trancoso. Desisto desta ideia. A história é boa demais para ser “trabalhada”.
Passo à seguinte, enquanto o outro me olha com ar de provocação.
“Recebe 416 mil euros após festa no trabalho desencadear ataque de pânico” — vamos lá ver isto melhor. Homem pede à empresa onde trabalha para que não seja comemorado o seu aniversário, uma vez que tem um transtorno de ansiedade. Contra a sua vontade, a empresa celebra a data, provocando-lhe um ataque de pânico. No dia seguinte, é confrontado pela gerência por causa da sua reação, o que leva a novo episódio paniqueiro. Passados alguns dias é despedido e, três anos depois, recebe uma indemnização. O que tem piada nesta notícia não é, como é óbvio, a doença do senhor. É a companhia querer forçá-lo a ter uma festa de aniversário. Só quem nunca trabalhou num “ambiente de escritório” desconhece as alturas “festivas” em que pessoas que nitidamente se odeiam posam juntas em fotos de “família feliz”, sobretudo se alguém da hierarquia de topo se encontra presente. Imagino o gerente daquela sociedade menosprezando a condição patológica do seu funcionário, pelo bem maior que é uma tarde de “celebração” no escritório, minutos antes ou depois de uma decisão corporativa que não olha a meios para atingir fins. Há aqui algo de Gato Fedorento, David Brent do “The Office” e também material para George Saunders. Mas talvez dê uma crónica mais ressabiada do que cómica. Acho que vou “desestimar”, como dizem no meu escritório.
O cara de assassino continua especado.
Encontro outra: “Queijo pode ajudar a combater doenças intestinais” — quero saber mais disto. Comer queijinho para evitar inflamações dos intestinos? Não me parece mau para prevenção. Produzido por investigadores da Universidade de Minas Gerais, no Brasil, “o queijo conta na sua composição com a presença da bactéria probiótica L. lactis NCDO 2118, naturalmente encontrada na flora intestinal humana” … Espera aí: “Flora Intestinal”. Isto é promissor… Flora nos intestinos; flores nos intestinos; flores no cu! Excelente título para uma crónica! Eu quereria logo ler um texto que tivesse como título “Flores no Cu”. Só falta mesmo fazer uma prosa digna de tão nobre epígrafe.
O cara de assassino mantém a atenção em mim enquanto eu rolo os olhos, pensando em assuntos que possa associar ao título da minha crónica e sussurro para mim mesmo “flores no cu”, “flores no cu…”. O desespero deve ter sido maior do que pretendia demonstrar, porquanto acabei por dizer alto o que não queria. Cara de assassino parecia aguardar pelo exato momento em que eu falasse para disparar sua resposta, que me deixou silenciado e sem vontade de continuar. Assim que, contra minha vontade, disse em voz alta “Flores no cu”, o meu rival disparou com um cínico e inibidor: “Hippie de merda!”.