Foi uma noite sem sono

por Hélder Verdade Fontes,    14 Fevereiro, 2025
Foi uma noite sem sono

Olho para o telemóvel. Quase quatro da manhã. Só mais duas horas e meia para me poder levantar a uma hora que acham aceitável. A almofada está demasiado quente — viro-a ao contrário. Nem um minuto de sonho, nem um pingo de sono. Na realidade, já não sei bem o que é ter sono na cama. Fora dela não penso noutra coisa. E no saber que na cama não o terei.

Podia ser uma adaptação a um novo ritmo. Podia ser uma dessincronização de horários. Podia ser um caso isolado. Podia ter uma origem num qualquer momento atroz. Mas é apenas uma ânsia constante. É um cérebro que não quer parar de pensar. É uma vontade imensa de (re)viver todos os momentos. É uma máquina que quer ser produtiva durante todo o tempo. É uma máquina que tem de ser produtiva durante todo o tempo: foi essa a liberdade que se comprou.

“O eu-trabalhador é hiper-produtivo, o eu-cidadão encontra-se asfixiado. O ideal seria dividir-nos, como na distopia da série Severance.”

Generalizou-se o burnout. Aliás, “estou a burnoutar” parece já ter entrado no nosso léxico. É uma espécie de processo de ruptura em curso. Um precipício, mas com a queda estendida no tempo, como se conseguíssemos sentir cada metro da descida. Como se a cada segundo víssemos a vida a escapar-nos por entre os dedos. Até nisto há competição. Já tiveste algum? Pois, eu já. Quantos sintomas tens? Tenho esses e mais dois. São crachás de mérito que se ostentam: não tarda e estão nos currículos, junto aos dois mestrados, três pós-graduações e quatro outros mini-cursos da treta.

Ninguém quer saber, na realidade. Já é tão banal que nem se tenta resolver. Dizemos “A sério? Ah, ok… e já viste o e-mail que te enviei?” Isto está tudo ligado. Do modo de produção, da vida frenética pós-moderna, do neoliberalismo asfixiante. Mas não vale a pena mexer em nada. Afinal, somos ou não somos resilientes? Somos ou não somos das gerações mais qualificadas? Somos ou não somos das gerações mais disruptivas de sempre — inclusive no nosso interior? Somos ou não somos uma das gerações mais mercantilizadas da humanidade? 

“Nas matérias iniciais de física, aprende-se que a pressão é a força a dividir pela área de aplicação. Se assim é, e ocupamos cada vez menos espaço na nossa própria vida, a pressão torna-se insuportável.”

O eu-trabalhador é hiper-produtivo, o eu-cidadão encontra-se asfixiado. O ideal seria dividir-nos, como na distopia da série Severance. Mas se somos múltiplos, diz o poeta, a compartimentação através da dicotomia trabalhador-cidadão seria insuficiente. E a divisão entre o familiar e o social? Entre o desportista e o reservado? Seríamos mera soma das partes? Não estaria cada uma delas igualmente sujeita à pressão mercantil, num lado vendendo activamente as suas horas, noutra despendendo horas em consumo e publicidade entre reels? Não seria a soma das partes mera mercadoria, como gado para abate?

Nas matérias iniciais de física, aprende-se que a pressão é a força a dividir pela área de aplicação. Se assim é, e ocupamos cada vez menos espaço na nossa própria vida, a pressão torna-se insuportável. Quando é que damos conta de que somos nós a aplicar a força sobre nós próprios? Quando é que damos conta de que é essa força que nos está a partir em múltiplos? Deixa as respostas para amanhã. E de amanhã em amanhã vamos caminhando até fraturar de vez. De noite sem sono em noite sem sono até não ter mais sono de vez.

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