“Folhas Caídas” de Aki Kaurismäki: um pertinente retrato sobre os obstáculos amorosos em vidas precárias
Este artigo pode conter spoilers.
No seu vigésimo e talvez último filme — Folhas Caídas (Kuolleet lehdet) — o cineasta finlandês Aki Kaurismäki exibe a sua marca de otimismo cínico sob talvez das melhores materializações da sua longa e reconhecida carreira.
Uma comédia-romântica inserida no solitário e instável contexto da precariedade socioeconómica, a mestria e confiança criativa do artista após décadas de aclamado trabalho revelam-se em largas doses aqui. Um refrescante e saboroso doce nórdico, capaz de se repetir vezes e vezes até esgotar o pacote. Excelente e dos melhores filmes do ano de 2023 e que estreia agora nos cinemas portugueses.
A película abre com a sua protagonista — Ansa (Alma Pöysti) — no seu precário ofício num supermercado. Fora do trabalho, exercido sob a constante vigilância de um segurança focado em garantir que nenhum empregado, entre várias intoleráveis matreirices, roube comida recém-expirada ao invés de a depositar no seu lógico lugar, o lixo, a vida de Ansa é passada na sua humilde barraquinha pela companhia da sua solidão mais telefonia, a ser bombardeada com relatos da barbárie russa na Ucrânia.
Por perto e igualmente solitário, mas sob contornos mais graves no que à saúde mental diz respeito, tem-se Holappa (Jussi Vatanen), um operador de jatos de areia. Quando não está no perigo do trabalho, a manusear equipamento falacioso para a salvaguarda de uns tostões ao patrão, o depressivo proletário jaz a solo no seu camarote, com os lábios agarrados à boca do frasco a beber os restos da sua vitalidade. Espera apaticamente o fim dos seus dias.
“Uma comédia-romântica inserida no solitário e instável contexto da precariedade socioeconómica, a mestria e confiança criativa do artista após décadas de aclamado trabalho revelam-se em largas doses aqui.”
A monotonia dos constantes serões de alcoolismo vê-se interrompida quando Huotari (Janne Hyytiäinen) um colega de trabalho e amigo de Holappa, lhe semelhante na solidão mas contrariamente otimista, o convida de modo insistente para uma sessão de karaoke. Tal proposta revela-se irrecusável face aos óculos a sangrarem em estilo por Huotari comportados. Após meter à prova as suas ambições musicais, o amigo fica à conversa com uma impressionada nova fã para o constrangimento da sua fria acompanhante, a nossa Ansa. Nas bermas da conversa, os nossos protagonistas não conseguem evitar sucessivos, envergonhados olhares. Faz-se faísca.
Uma delícia para os sentidos são também os planos das paisagens urbanas de Helsínquia sucedidos por imagens da tecnologia vintage e vivas cores do cenário da casinha de Ansa, a típica produção e atmosfera intemporais de Kaurismäki fazem-se aos olhos. A fotografia composta por fixos planos paisagísticos mais médios com os dois protagonistas ao centro da composição, ligados por uma montagem consistente e tímida, relembra a simplicidade caseira do cinema de Yasujiro Ozu ou Rainer Werner Fassbinder. Por sua vez, a atração pelo antigo e mergulhado em cores, presta influência a contemporâneos como Wes Anderson e à sua extravagância plástica. A artificialidade do áudio de fundo, exemplificado por ruídos brandos das pessoas nos bares e clubes, fomenta a sensação íntima, aconchegante da obra.
Do início ao fim, ao longo dos seus altos e baixos emocionais, o filme é permeado por um tom de leve absurdismo satírico, típico de Kaurismäki. Sem pretensões de subtileza na sua crítica e comentário antiguerra, trabalhista e multicultural, a escrita e direção colocam a sua cerrada mira sobre os frios protagonistas e o envergonhado romance que deles desenvolve. Esta assertiva compacidade não deixa o espectador descolar do filme. A direção e elenco primam por uma abordagem minimalista, de restrição na exposição de emoções e informação, num Show, don’t tell digno de Robert Bresson. Tal contenção permite criar autênticos golpes emocionais em cenas-chave, sem prejudicar a vitalidade do resto. Seguindo o mesmo método, a banda-sonora é utilizada de modo parco e metódico, com o habitual número musical dos filmes do cineasta guardado para o momento certíssimo. Desta vez na forma de um hino de synth e indie pop pelo duo Maustetytöt que pujantemente remata um dos arcos conclusivos. O liberto calculismo do veterano finlandês é palpável em tudo o que tenta.
Não obstante uma obra de excelência, verificam-se pequenas gralhas. Sobre a natureza distante e robótica das atuações, por norma, expressivas o suficiente, se nos momentos mais importantes disparam os necessários projéteis, noutros podem menorizar o desejado impacto e credibilidade de menores mas também importantes acontecimentos. Por sua vez, sendo a caracterização frutífera e fixante ao longo dos 81 minutos de duração, não atinge o pico de espontaneidade cicatrizante esperado.
Assim, a partir de um artista com décadas de talentosa experiência ao volante, Folhas Caídas presta um pertinente, rebelde e caloroso retrato dos obstáculos amorosos em vidas precárias. Da instabilidade financeira e laboral mais solidão instada pela impossibilidade em socializar, a todo o peso em saúde mental e personalidade cuja árdua e humilhante situação toma. Das pequenas escapatórias face à crueldade externa da condição humana, desde as que destroem vidas como o álcool, às que oferecem salvação como a música e o cinema. Da paixão amorosa como força derradeira, que toda e qualquer adversidade derruba.
Caso Kaurismäki fique por aqui, termina com uma delicada e magistral pérola. Tanto eficaz como ponto de partida para reticentes estreantes da sua filmografia, como derradeira conclusão para os fãs mais entusiásticos. Fundamentalmente, um digno ponto final na linda história que é o seu lustroso currículo artístico.