Fólio. A literatura aproxima-nos
As ruas de Óbidos são veias onde pulsam turistas a caminhar sem destino estabelecido. Vagueiam entre ginja e artesanato, entre livros e lavores.
As ruas de Óbidos ainda não têm os passos de outrora, tolhidos pelo receio e destreinados pelo confinamento. Mas as pessoas já arejam os cantos onde o medo se esconde.
Nas ruas de Óbidos, passeiam novamente os autores do Fólio entre o público que os ouve.
Os leitores aproximam-se para um cumprimento laudatório, com ou sem máscara a sufocar as palavras, e juntam-se na Tenda Vila Literária, na Livraria Santiago, na Livraria do Mercado entre outros pontos de encontro. E aqui percebemos que as ruas de Óbidos voltaram a ser as ruas do Fólio, depois de um ano imobilizado pela pandemia.
As salas têm estado cheias, sem lugar disponível para sentar e agregar a necessidade de aproximação ao outro, às histórias que ficaram por contar durante o medo.
A Tenda Vila Literária, 150 lugares para os ansiosos dos livros, foi pequena para quase todas as conversas. Quando se aproximava as três da tarde de domingo, a fila ia da tenda, perto da Igreja (Matriz) de Santa Maria, até à Casa José Saramago, a cerca de 75 metros.
Alberto Manguel e Pedro Mexia preparavam-se para conversar, com moderação de Carlos Vaz Marques, sobre “Literatura – aproximação ou distanciamento”.
O antigo normal surpreendeu toda a gente. De repente, as pessoas esbateram a distância física e aproximaram-se e sentaram-se, umas ao pé das outras, para ouvir falar de livros, de literatura e de cinema.
A vacinação moderna, com a sua tecnologia, permite abandonar os dias de fracasso e juntar toda a gente a ouvir as palavras dos antigos a serem endossadas por dois bem conhecidos autores.
Na literatura, para Manguel, assiste-se tanto ao distanciamento como à aproximação. O leitor colide com o sujeito textual, em alguns casos, mas também há outros –nos romances históricos- em que é implementado um certo distanciamento. Seja como for, há cada vez uma maior tendência para o autor e o leitor se aproximarem até à identificação total. Por vezes, até níveis inauditos. O que era riqueza agora é visto, tantas vezes, como apropriação cultural, diluindo sujeito empírico com sujeito textual.
A criação é sempre ficção. Se damos regras à ficção, proibimos a entrada ao leitor e ao autor. Vai contra a definição de arte, afirmou Manguel. A literatura encoraja a poligamia; há relação entre autor, protagonista e leitor e quantos mais são, melhor é a descoberta do prazer.
A própria autobiografia é auto-ficção. A denominada “self-fiction”, transvestida em novidade, é praticada há séculos.
“Santo Agostinho é self-fiction”, afirmou.
Os professores e os críticos precisam destas etiquetas para ensinar. Para Manguel, o autor não pensa em fazer auto-ficção.
Pedro Mexia completou dizendo que a literatura é uma mentira que diz a verdade. Para isso, manipula as leis que nos regem (como o realismo mágico). Essa desobediência acontece tanto na literatura como no cinema. A suspensão dessas regras permite ao leitor/espectador ser sensibilizado, sem abdicar de um distanciamento de segurança. Quando esse distanciamento é anulado, passa de uma liberdade interpretativa a um absurdo interpretativo. E deu o exemplo do assassinato de John Lennon, devido a uma interpretação abusiva de “The Catcher in the Rye”, por Mark David Chapman.
O tempo foi sendo pontuado pelo sino da igreja e terminou demasiado cedo para quem assistia.
Aproximação e distanciamento: depois de um ano apartados, há cada vez mais do primeiro e menos do segundo. Estamos mais perto uns dos outros. O livro, mais uma vez, aproxima-nos.